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30/07/2001

O frei Joaquim do Amor Caneca (em óleo de T. Mário), condenado à morte e vítima de equívocos, segundo historiador

Um brasileiro chamado Caneca

Frei Caneca, personagem de um poema épico de João Cabral, tem agora uma revisão de sua trajetória política escrita pelo historiador Evaldo Cabral de Mello, irmão do poeta, para um volume da Editora 34 com os textos políticos deixados pelo sacerdote

MOACIR AMÂNCIO

   O frei Joaquim do Amor Divino Caneca, participante da "revolução republicana" de 1817, da revolta contra a dissolução da Assembléia determinada por d. Pedro I e da "separatista" Confederação do Equador, em 1824, que ao ser executado no ano seguinte teve o nome inscrito no martirológio brasileiro, virou assunto dos irmãos Cabral de Mello: o poeta João e o historiador Evaldo. O primeiro publicou, em 1984, o Auto do Frade, uma espécie de roteiro cinematográfico ou texto teatral, na verdade um protesto provocado pelos equívocos em torno de Caneca, tão grandioso quanto incompreendido. A incompreensão chegou ao ponto de darem o nome do mártir a um presídio no Rio, mais um resultado triste da indiferença e da ignorância de rotina, de acordo com o historiador Evaldo, que de certa forma também escreveu um desagravo do conterrâneo antigo e da memória pernambucana.

   Trata-se de um ensaio introdutório aos escritos políticos de Caneca, num volume que será lançado pela Editora 34, dentro da coleção Formadores do Brasil.

   O ponto de partida dos irmãos Cabral de Mello, portanto, é o mesmo: a intriga movida pelos carrascos indiretos de Caneca, a partir do Sudeste movido a interesses "totalitários", conforme o historiador. Para Evaldo, "Caneca é mártir do processo de independência do Nordeste" e não um separatista, como aparece em enciclopédia. O termo torna-se também anacrônico quando aplicado ao frei. A cortina de acusações levantada a partir do Rio, com articulação em Minas e São Paulo, acabou por envolver até mesmo estudiosos nordestinos, como Oliveira Lima, num processo repetitivo.

   "Ninguém contesta a versão, seja de direita seja de esquerda", diz. A idéia de Caneca para o Brasil era a da monarquia constitucional, liberal, com "amplo reconhecimento dos poderes públicos".

   Em seu estudo, afirma que o separatismo, do qual Pernambuco, à sombra do frei, ficou sob suspeita dos dirigentes monárquicos, "implica a preexistência da nação e entre 1817 e 1824 a nação brasileira distava de estar constituída, a não ser em sentido formal". Da mesma forma que o Rio neutralizou os liberais fluminenses - Gonçalves Ledo e outros -, liquidou coerentemente o sonho pernambucano de diálogo com a Corte, de acordo com a reconstituição de Evaldo. Esse diálogo, para usarmos um termo da hora, dependeria, para Caneca, do comportamento da Corte, pois "se o Rio fizer conosco, o que Deus não permita, o mesmo que Portugal fez com o Brasil", os pernambucanos, "não tendo nascido para escravos", jamais se sujeitariam, nas palavras do frei citadas por Evaldo, "ao despotismo ministerial, qualquer que ele fosse e pudesse reviver", mesmo que para isso tivessem de recorrer às armas.

   Erro - A intenção separatista não está presente nos escritos de Caneca, observa Evaldo. "O separatismo dos que promoveram 1817 só poderia ser designado por tal a partir de duas qualificações: primeiro, a de que se tratava de secessão não do Brasil, mas do Reino Unido, que era a única construção estatal então existente no Império lusitano; e, segundo, que, em última análise, ele não passara de um subproduto das circunstâncias a que se viu confrontada a região. Já Armitage havia chamado a atenção para o fato de que, tendo a elevação do Brasil a Reino Unido resultado da preocupação da Coroa com que o descontentamento na América Portuguesa a levasse a imitar os vizinhos da América Espanhola, a medida fora bastante para contentar a moderação do centro-sul, mas insuficiente para satisfazer o Nordeste, onde as reivindicações visavam também à adoção de instituições representativas."

   Conforme Evaldo, para Caneca e seus companheiros, "escarmentados pelo fracasso republicano de 1817, era evidente que a autonomia provincial tinha prioridade sobre a forma de governo. Eles estavam, portanto, prontos a entrarem num compromisso com o Rio, o qual, em troca da aceitação do regime monárquico, daria amplas franquias às províncias". O historiador corrige a história. "O que se chamava então e se continuaria a chamar ao longo do Império, utilizando um argumento ad terrorem, o republicanismo pernambucano, poderia ser mais apropriadamente designado por autonomismo. Em 1817, o federalismo norte-americano era uma doutrina para iniciados, mas a tradição autonomista da província era passível de sensibilizar uma população ainda embalada pelo grande mito da restauração pernambucana." Nessa direção, Pernambuco poderia ser liberal como a Bahia totalitária, explica, colocando o pensamento político de Caneca, antes um herói intelectual do que homem de ação, no âmbito dos debates permanentes da formação do País.

   Mas o País seguiu outro rumo. "A partir da independência, impunha-se uma noção territorial de que o Brasil tinha sido fadado a ser um país. Para os fluminenses, a concepção era de um país grande, com potencial correspondente da arrecadação tributária, sob regime centralizado." Além disso, já estava presente a idéia de que, corja de xucros, os brasileiros precisavam de mão pesada e forte. Ele cita livremente Armitage, que assinalou "a diferença entre o Sudeste e o Nordeste", nesse sentido como uma oposição entre centralizadores totalitários e descentralizadores liberalizantes.

   Evaldo acrescenta que d. Pedro e a Corte "sabiam ser difícil fazer a independência sem verniz brasileiro. Trouxeram o José Bonifácio, pois, como esse verniz. Depois neutralizaram os liberais fluminenses e se livraram dos Andradas". Caneca, filho de tanoeiro, descendente de portugueses, com algum possível sangue indígena, brilhante, publicista, educado pelos carmelitas, frade e padrinho de uma prole de "afilhados", surpreendentemente culto, ainda mais para quem só deixara a província pernambucana quando fora levado preso para a Bahia, teve o fim conhecido. A sentença era o enforcamento degradante. No entanto, como aqueles que deveriam fazer o trabalho sujo se negassem a cumprir a determinação legal, acabou recebendo a involuntária honra de levar uns balaços a palo seco.

   Evaldo reconstitui o processo histórico que culminou com o fuzilamento. Seu irmão consagrou a Caneca uma celebração do dia de sua morte, encenando o cortejo, a procissão que foi sua trajetória até o fim, como espetáculo diante da população entoando em coro a oração do sacrifício que nada tem de religioso. No entanto, de ambos os textos emerge uma história que poderia ser incluída no manual de infâmia perpetrado por Borges, com a ressalva de que o personagem central é a personificação da dignidade, a eterna vítima. O historiador lembra-se do irmão, incomodado com a figura incompreendida de Caneca, mas conta que só passou a se preocupar com ele para redigir o ensaio introdutório aos seus textos políticos. Um lembrete para os estudiosos da obra do autor de Pedra do Sono. É sobre Mário Melo, autor de um artigo sobre Caneca que o poeta descobrira no Instituto Arqueológico e Histórico do Recife. "Uma figura folclórica", lembra Evaldo. De qualquer modo, para o poeta, Melo falava da morte de Caneca num texto redigido em medida cinematográfica.

   Poder - Foi a opção seguida no Auto do Frade, que começa com o despertar de Caneca e termina com seu cadáver jogado numa igreja. Como ocorre agora no ensaio de Evaldo, como ocorreu em Morte e Vida Severina, a peça dedicada ao frei também é uma elaboração a propósito do poder. Em um dos poemas, temos Severino sendo transformado de trabalhador de engenho em bagaço de cana, enquanto nascem outros Severinos. Severino deixa de ser um retirante anônimo para dar nome à tragédia nordestina, enquanto frei Caneca, passando pelo processo de "dessacralização", com seus paramentos retirados à maneira de uma excomunhão, após o strip-tease imposto, transforma-se no chamado homem comum, no indivíduo sem nome ou distinção, num brasileiro apenas.

   Como um retábulo, o "auto" sugere movimento e paralisia, peso e leveza. O ritmo lento do cerimonial de humilhação e morte em contraste com a riqueza das idéias, dúvidas, esperanças contidas nos discursos do frei e nos diálogos das gentes. O sacrifício avança com as imagens anunciadas pelo discurso. A paisagem recifense entra como elemento de sugestão das possibilidades futuras, seus verdes, azuis e perguntas sobre as quais Caneca medita em sua caminhada.

   Agora, o estudo histórico de outro Cabral junta-se a essa saga. Ambos recuperam o mesmo personagem, num momento em que o assunto de família vira emblematicamente tema nacional. O investigador, abrindo uma clareira na história, o poeta, digno da profissão, conferindo autonomia e eficácia ao recriar os movimentos do real, conferindo-lhe a organicidade necessária para a permanência no mito, expondo essa realidade ao entendimento e à emoção. (O ESTADO DE S. PAULO)


Com relação a este tema, veja também:

Sites de história nordestina, na seção HISTÓRIA
Sites de autores nordestinos, inclusive de Cordel, na seção LITERATURA

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