22/10/2002
O grupo
pernambucano Cordel do Fogo Encantado chega de turnê pela Europa e lança, em Fortaleza,
o segundo CD, ''O Palhaço do Circo Sem Futuro''. Revelação no Rec-Beat de 1997, o
quinteto junta narrativa, percussão densa e recitativos, em mistura consistente e
saborosa que dá o regional com o mundo
Eleuda de Carvalho
da Redação
Arcoverde, entrada do sertão pernambucano. O trupé
dos xucurus, a narrativa ritmada e melodiosa do folheto, o coco, o candomblé, o aboio,
tudo o que não passa na tevê e o que vem de lá. Lirinha, neto de sertanejos do agreste,
vivia uma infância entre o urbano e o rural, e ambos marcaram suas retinas. Buliçosa
alma, brincando de fazer teatro, ele e amigos se danando num musical que contava a
história do Fogo Encantado. O espetáculo Cordel do Fogo Encantado dá nome
ao grupo, que começa sua caminhada pelo agreste. Foi quando, no anticarnaval do Rec-Beat,
em 97, eles chegam por fim na capital.
Rolava a onda Mangue-Bit e outras ondas se alevantavam, o som
pesado dos Devotos do Ódio, a turma do Mestre Ambrósio. Naná Vasconcelos viu Lirinha
recitando Zé da Luz, Inácio da Catingueira, outros poetas do improviso, sob o troar dos
pés batendo no palco, como cavalos doidos no chão pedregoso e pardo da caatinga.
Primeiro disco, independente, mais de 20 mil cópias por aí. Depois, São Paulo, e de
lá, além do mar. Foi destas viagens que nasceu o segundo disco, também independente,
que eles lançam nacionalmente em dois shows no Dragão: O Palhaço do Circo sem
Futuro.
''O circo é a metáfora de nossa condição e o palhaço é a nossa
situação de atuante no mundo'', diz Lirinha, o palhaço do improviso, da voz, do
pandeiro, sampleando aboios de Arcoverde e o esmoler do metrô de Berlim. Com Clayton
Barros (violão e voz), Emerson Calado, Rafa Almeida e Nêgo Henrique, nos vocais e
percussões, Lirinha baixa no Dragão do Mar para cantar a vertigem da falta de futuro. E
a esperança.
O POVO - Como vai ser o show aqui, vocês cantam as músicas do primeiro
disco?
Lirinha - A gente fez O Palhaço do Circo Sem Futuro e ficou
impossibilitado, devido à nossa tradição, de levar o espetáculo anterior pra
Fortaleza, embora ainda desse bastante certo, porque fomos só duas vezes e as músicas do
disco passado são mais conhecidas. Mas resolvemos levar o novo espetáculo, que vai
estrear nacionalmente aí. Ainda não tocamos as músicas do novo disco para o público,
estamos trazendo uma série de novidades, no cenário, na iluminação. É uma estréia,
mesmo, inclusive, estamos vivendo a mesma tensão.
OP - A linha do grupo é muito teatral. Você começou como ator?
Lirinha - Fiz teatro na adolescência, em Arcoverde. Quando o Cordel do Fogo
Encantado surgiu, não era caracterizado como teatro devido já usarmos microfone em cena.
Mas as características cênicas, a gente utiliza até hoje, o roteiro, que a gente sempre
segue, a iluminação, porque mesmo tocando em palcos, esta coisa mais grandiosa, o nosso
iluminador vem do teatro. A luz não é movida pelo ritmo das músicas e sim pelas cenas,
pelas sensações, pelo que queremos passar através das cores. O repertório é escolhido
não por uma questão da música, mas de acordo com a história que vamos contar.
OP - A tradição popular do teatro nordestino, com os autos, o
bumba-meu-boi, o pastoril, já traz esta mescla de narração, música...
Lirinha - Fui uma criança bastante influenciada pela tevê, o rádio.
Também os meus amigos, todo mundo tem praticamente a mesma idade, 25 anos no máximo.
Nquele momento, em 97, por aí, devido a essa coisa da globalização, em várias regiões
do país (e depois, na viagem ao exterior, descobri que foi no mundo inteiro), existiu uma
ligação maior com as particularidades. Algumas pessoas começaram a olhar o que fazia
delas diferentes neste mundo tão igual e homogêneo. Em Recife, já acontecia o Movimento
Mangue, descobrindo Mestre Salustiano, os maracatus, aquilo tudo, embora essas
manifestações existissem, independente de algum artista ir lá, existiam com a mesma
força que existem, isso não se modificou em nada, eles sempre se expressaram. Começamos
a descobrir uma série de coisas nos bairros mais marginalizados, no subúrbio, no qual
incluo a zona rural da minha cidade. A gente começou a se identificar com aquele som que
já tocava sem a gente nem saber o que seria de fato, ouvido desde a infância, as bandas
de pífano, o samba de coco de Arcoverde que é muito forte, o som dos índios da nossa
região, tudo aquilo foi preenchendo o buraco que a gente estava sentindo na nossa
existência.
OP - Aí veio o Rec-Beat e o Cordel aconteceu. Foi difícil sair de
Arcoverde?
Lirinha - O mundo tem uma tendência a não olhar pro seu interior. E os
jornais, que se dizem estaduais, são na verdade das grandes capitais, das metrópoles,
também as televisões. O Cordel não era notícia e enchia lugares, no interior de
Pernambuco, provocava movimentações muito fortes em Arcoverde, mas ainda não tinha
tocado em Recife. Quando tocamos na capital, foi aquele negócio. Não foi uma ascensão
meteórica, existe todo um passado não documentado. A grande dificuldade foi esse
caminho, Arcoverde - Recife. No mesmo ano em que a gente chega em Recife já vem pra São
Paulo, passa quatro meses logo de cara. No outro ano, depois que a gente gravou o primeiro
disco com Naná, viajamos pra Europa. Fizemos oito apresentações em Paris, passamos nove
dias. Depois, apresentações em três cidades da Alemanha e em Antuérpia, na Bélgica,
duas apresentações num grandce festival. Isso tem a ver com Naná, um nome bastante
considerado no mundo inteiro.
OP - Então, o disco novo tem tudo a ver com estas viagens?
Lirinha - O disco é o registro desse momento em que a gente sai de
Arcoverde até hoje. Porque o primeiro foi composto todo em Arcoverde, quando chegamos em
Recife pra gravar, a gente tinha todas aquelas composições, que nasceram daquela visão
de quem morava em Arcoverde e ainda não tinha saído. O Palhaço do Circo Sem
Futuro é justamente este olhar de quem se desterrou, é o olhar retirante, de
quem saiu não por opção e sim por falta. Engraçado... No primeiro disco, a gente abre
com um aboiador lá da fazenda dos meus avós. Neste disco, a gente abre com um alemão
pedindo esmola no metrô de Berlim.
OP - E esse circo-mundo é sem futuro mesmo?
Lirinha - Rê-rê! É uma liberdade poética. Com o passar do tempo, a gente
vai descobrindo várias coisas nesse título, inclusive nas conversas com as pessoas. A
música-tema surgiu de um sentimento presente em todo o disco, de ausência de
perspectiva, de segurança. É bastante complicada esta virada de milênio, tudo está
muito confuso em relação ao mundo, o grande circo. A gente utiliza a idéia do palhaço
como um ser atuante, o ator, o que move o espetáculo, que faz as ligações, o que
começa e encerra. A música diz: ''Sou palhaço de um circo sem futuro/ um sorriso
pintado a noite inteira/ o cinema de fogo numa tarde embalada de poeira''. E aí, diz: ''a
lona rasgada no alto/ no globo, os artistas da morte/ e essa tragédia que é viver/ e
essa tragédia/ tanto amor que fere e cansa''. Seria esta a metáfora: o circo, nosso
mundo; o palhaço, esse ser que atua no mundo, e o sem-futuro, a nossa condição atual.
Agora, tudo apontará também um desejo de modificação.
OP - Este título do disco novo é bárbaro!
Lirinha - O disco passou por outros dois títulos. Antes era ''A guerra do
fim do mundo''. Quando viajamos pra Europa, o espetáculo estava montado neste tema. Só
que não era a guerra de bala, mas a idéia filosófica da guerra, rainha e mãe de todas
as coisas. Só que aconteceu o ataque ao World Trade Center e a gente desistiu
imediatamente. Porque falar em guerra, agora, neste momento, todo mundo vai ter bin Laden
e Estados Unidos na cabeça, Afeganistão ou o Iraque. E isso era muito pequeno para o que
a gente queria. Cai este título, sobe outro, também presente no disco, ''Tempestade'',
porque o som está muito trovão neste novo disco, bem mais agressivo na percussão,
parecendo uma grande tempestade. Numa entrevista, a gente descobre que foi título de um
disco do Legião Urbana. Meu Deus do céu! Aí o palhaço apareceu e disse, olha eu aqui,
eu tanto abraço a guerra quanto a tempestade.
OP - ''A guerra do fim do mundo'' é o romance do Vargas Llosa...
Lirinha - ...lançado no centenário do fim de Canudos. A gente estava até
entrando em contato com Vargas Llosa pra pedir permissão, porque o espetáculo é baseado
mesmo no romance dele, várias músicas fazem referência, como ''A Matadeira'', onde a
gente traz sons de tiros junto com nossa percussão, é uma música bastante forte. As
pessoas que também não conheciam a história de Canudos não ficariam perdidas nem
precisaria que a gente contasse a história porque as referências já caíram nesse
momento atual: ''a matadeira vem chegando/ lá no Alto da Favela/ no balanço da justiça/
do seu criador/ salitre, pólvora, enxofre, chumbo/ o banquete da terra/ o teatro do céu/
Diga aí, quem vem lá?/ - o velho soldado/ O que traz no seu peito?/ - a vida e a morte/
O que traz na cabeça? - a matadeira/ E o que veio falar? - Fogo!''. A gente se identifica
muito com o sonho de Antônio Conselheiro em Canudos. É com a utopia mesmo, que a gente
se identifica, nada a ver com a história real. Até porque é muito complicado saber
dela, mesmo.
(© NoOlhar.com.br)
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