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Na volta, o múltiplo Zé Ramalho é outro

22/10/2002

‘O Gosto da Criação’: as 12 faixas inéditas assinadas por Zé Ramalho vem com roupagem mais pop do que rock da nova geração que vem do Nordeste

Com o lançamento de seu novo CD, 'O Gosto da Criação', o cantor e compositor paraibano apresenta uma poesia diferente, mas ainda de boa qualidade. As letras são mais curtas, embora não necessariamente tenham menos fôlego. Mas Zé Ramalho ainda mantém o estilo introspectivo e auto-reflexivo

   E pois não é que o poeta voltou? Quando já se pensava que a polêmica sobre o plágio de 'Força Verde' (de um poema de W. B. Yeats) lhe havia esgotado a veia; que tinha sido um rebate falso a recuperação, ensaiada com a inclusão da canção 'Admirável Gado Novo' na trilha sonora da telenovela 'Rei do Gado', estrondoso sucesso de Benedito Ruy Barbosa no horário nobre da Globo, o que a tornou uma espécie de hino preferencial dos sem-terra em voga; que ele estava reservando o melhor de seu talento para dar nova roupagem interpretativa a clássicos regionais (como o fez no álbum duplo 'Nação Nordestina'); que ele havia virado uma espécie de Raul Seixas reciclado (no CD 'Zé Ramalho canta Raul Seixas'); e que sua cacimba tinha pouca água da própria lavra, como denotava 'Eu Sou Todos Nós', José Ramalho Neto tornou a ser o único autor das melodias e letras registradas num CD por sua voz rouca e agressiva.

   Sim, leitores. 'O Gosto da Criação' é um CD autoral do criador da 'Peleja do Diabo Com O Dono do Céu': todas as 12 faixas são assinadas por ele. E todas elas trazem a marca indelével de sua poesia. Ela não tem mais aquele apreço pelo inusitado que encantou o mercado do Sudeste na estréia, quando ele deixou de ser o violeiro do Alceu Valença para gravar obras-primas como 'Avohai', 'Chão de Giz" e "Vila do Sossego".

   Nem aquele ímpeto de "épater le bourgeois", que fundia os modos da viola sertaneja (que ouvira nos desafios atravessando as noites na fazenda de seu avô, também Zé Ramalho, que o criou como se pai fora - daí "Avohai, avô e pai"), com os solos de guitarra do "blueseiro" Robert Johnson e do mestiço Jimi Hendrix, que ele clonava nas festas animadas pelos Quatro Loucos, conjunto de rock de João Pessoa, do qual era o solista.

   O Zé violeiro e do iê-iê-iê escrevia como se fosse o primo pau-de-arara, pobre e próximo de Bob Dylan: suas letras eram longas, delirantes, apocalípticas e ele as cantava abrindo as pernas e os braços, como um profeta da Bíblia a denunciar as mazelas da civilização e a chorar pelas filhas das novas Jerusaléns do Planeta - a aldeia de Mc Luhan agora globalizada.

   Desse velho (com o perdão da má palavra) Zé o álbum novo registra 'O Apocalipse de Zé Limeira', sua mais recente homenagem ao bardo do absurdo do repente sertanejo, permanente marco de inspiração desse misturador de mitos.

   Outra citação do passado (só que mais recente) fica por conta do arranjo para cítara, violino e percussão, entrelaçados com samplers, do frevo árabe 'Modificando o Olhar', no qual o guitarrista Robertinho do Recife praticamente reproduz sua própria versão de 'Frevo Mulher' para o primoroso álbum duplo (aquele com uma xilogravura de Ciro de Uiraúna, outra referência obrigatória no trajeto do menestrel, na capa) com que Zé marcou os 20 anos de carreira.

Os delírios proféticos foram abandonados

   No mais, o poeta de volta é na prática outro: as letras são mais curtas, embora não necessariamente tenham menos fôlego. E os delírios proféticos e surrealistas do princípio foram substituídos por lições introspectivas e auto-reflexivas: o ímpeto do jovem dando vez às lições do homem maduro. Essa transição fica clara, transparente até, na faixa de trabalho do CD, 'Tudo Que Fiz Foi Viver', na qual o poeta revive as paixões do adolescente ("Quando alguém pegou minha mão, trouxe o mar e um furacão") para desembocar na madureza ("Eu vou ter que ficar a fim de consumar o que iniciei").

   Quanto à roupagem musical, esse novo trabalho do poeta de Brejo do Cruz ao Leblon é mais pop do que o rock da nova geração que vem do Nordeste (Lenine, Siba, Silvério Pessoa e Lirinha), graças sobretudo aos arranjos de Robertinho do Recife, que manda no som de seus álbuns já faz um bom tempo.

   E daí? Quem há-de jogar a primeira pedra no violeiro que já era pop no tempo em que solava a guitarra dos Gentleman nos bailes da vida no interior da Paraíba?

   O que importa de fato ao ouvinte de sempre é que sua nova poesia, embora não tenho o impacto nem a fúria das primícias, aquela santa ira velha de guerra, continua de excelente cepa. "Somos o muito e o pouco da múltipla sensação quando sacode a poeira do sagrado chão", reza na faixa-título. "Você pensou que era imenso na fortaleza dos antigos e vai levar dentro dos olhos a multidão de seus amigos", filosofa na balada "Fissura".

   Sendo outro, o múltiplo Zé Ramalho pop, filósofo, autocrítico, introspectivo de 'O Gosto da Criação' - não mais o profético e delirante caldeireiro de mitos de antanho - segue sua trilha nas alturas daquele de 'Terceira Lâmina' e outros lampejos de tope de quando assombrou o mercado com sua obra. JOSÉ NEUMANNE

SERVIÇO: 'O Gosto da Criação' - CD de Zé Ramalho (Gravadora BMG). Preço médio R$ 24.

(© Jornal da Tarde)

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