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22/10/2000 Um pequeno tratado da cozinha sertaneja Mesmo aos 90 anos, no alto de uma enérgica existência, Rachel de Queiroz não gosta muito de lembrar da "carne sepultada", que considera a receita culinária mais estranha que já conheceu. O nome, em particular, lhe causa grande repulsa. Aprendeu a fazê-la com Antônia, sua velha babá que, depois, se tornou governanta e por fim cozinheira da família. Antônia, por sua vez, chegou folheando, sem pressa, as páginas amareladas de O Cozinheiro Nacional, um antigo livro de cozinha que pertenceu à mãe de Rachel, publicado ainda no século 19. Depois de mergulhada em vinha-d'alhos e devidamente recheada com lascas de toucinho, uma boa posta de chã deve ser envolvida em folhas de bananeira e, em seguida, enterrada, em um buraco cavado para esse propósito a 40 centímetros do chão. Uma vez coberto com pedras e terra, sobre ele se acende uma fogueira, que deve arder por algumas horas. Quando a carne, por fim, é desenterrada, Rachel recorda, a aparência até pode não ser das melhores, mas o aroma é irresistível. Apesar disso, a escritora dispensa a iguaria sertaneja, indisposta com o nome agourento que lhe dão. Para rememorar histórias assim, íntimas, pequenas, mas de delicioso sabor, Rachel de Queiroz escreveu O não Me Deixes - livro batizado com o nome de sua fazenda, no Quixadá, sertão cearense, onde ainda hoje a escritora passa boa parte de sua vida. E que se tornou, ao longo das décadas, uma espécie de oficina da culinária nordestina. Em vez de heróis sertanejos, moças cheias de fibra, desbravadores, os personagens de O não Me Deixes nem sempre são pessoas, mas sim objetos, como um velho fogão de ferro alimentado a lenha, ou iguarias, como o queijo que sua mãe fazia com 30 litros de leite. E, quando são, vêm do anonimato, como as cozinheiras mestiças, Antônia, a pioneira, e depois sua discípula Nise, empregada de Rachel, que com suas receitas caseiras, a ajudaram a compor esse inventário da cozinha sertaneja. O cuscuz, a paçoca, o queijo coalho, a pamonha, o baião-a-dois desempenham o indispensável papel de coadjuvantes, num livro que deve ser lido sem pressa, saboreado, à beira do fogão. Contudo, para fazer seu pequeno tratado de cozinha sertaneja, Rachel não pôde (nem quis) se afastar de própria história, do cenário sagrado de sua fazenda, e até mesmo (apesar de considerar a culinária mais importante que a escrita) de sua conturbada relação com a literatura. Paixão - Os odores e sabores que emanam de O não Me Deixes, em conseqüência, vêm permeados e, mais que isso, fundados, sobre essa relação muito pessoal que Rachel tem com o mundo, sua maneira límpida - seca mesmo, o que não exclui o tônus apaixonado - de ver não só o Brasil (em particular o Nordeste em que nasceu), mas sua literatura, seu empenho em não desviar-se de si, não permitindo que a imagem da escritora, ou que as lições de culinária ministradas pelos grandes mestres, a intimidassem, ou mesmo amordaçassem. E, em particular, método que vale tanto para seus livros como para sua cozinha, Rachel afiou-se em desprezar os excessos, os ornamentos, as misturas perigosas, recusou os floreios e atavios que, em geral, marcam não só a cozinha considerada nobre, mas também a literatura que ostenta esse adjetivo. Num livro dedicado aos netos, a apresentação fica por conta de um deles, Flávio de Queiroz Salek, que nada tem de literato. Um tanto perplexo, ele lembra que, até hoje, a cozinha de sua infância, a mesma cozinha em que almoçava quando, ainda de calças curtas, passava as férias escolares na fazenda, essa cozinha lá está, exatamente no mesmo lugar, nos fundos da casa, intacta, preservada como um monumento pessoal, com a única alteração de uma luz elétrica que agora pende do teto. Nessa velhíssima cozinha, devassada por janelões, lugar que considera o mais animado da casa, Rachel de Queiroz, escoltada por suas cozinheiras de sertão, fixou, com o passar dos anos, os limites de uma culinária que mistura a herança portuguesa com uma tradição na verdade inexistente (pois os índios, a rigor, não cozinhavam), mas nem por isso menos forte, que ela chama, simplesmente, de "indígena". Misturadas, as heranças lusitana e tapuia desembocaram no que, agora, se pode chamar de cozinha sertaneja, essa mesma que o leitor recebe sintetizada num livro. No lugar do fogão de ferro de hoje havia, é verdade, um fogão de tijolos, que resistiu por décadas seguidas. No mais, a cozinha pode ser vista como um pequeno museu, intocada, indiferente aos chamados da modernização. E é assim que Rachel de Queiroz se sente bem. Invertendo a direção do tempo, Rachel pula dos netos para a própria avó, dona Rachel, e sua Fazenda Califórnia, onde o queijo de coalho, salgado, feito em fôrmas numa prensa, era a peça de resistência. E, em duas páginas dedicadas para a receita (pois o leitor não deve esquecer que esse é, mais que tudo, um livro de culinária), ela ensina que, se o queijo vier a rachar, talvez o leite usado seja muito forte e, nesse caso, o mais prudente é simplesmente dissolvê-lo em um pouco de água. Com paciência, a escritora embrulha suas receitas em recordações pessoais, o que é quase inevitável para uma mulher que tanto valoriza a memória; lembranças de seu primeiro marido, o poeta bissexto José Auto, e do segundo, o médico Oyama de Macedo, ambos já falecidos, recordações da infância no sertão, cenas de uma força imensa - que quase nos fazem esquecer da gula. A elas se agregam fotografias, desenhos, breves registros desse santuário em que Rachel converteu sua fazenda, de modo que o livro ganha um ar etnográfico, fazendo uma espécie suave de antropologia do sertão. Na cozinha sertaneja, a farinha de mandioca ocupa o mesmo lugar que o pão nas outras culturas, Rachel recorda. É um complemento obrigatório em todas as refeições. Por isso, ela se detém em descrever, com detalhes, a casa da farinha, até hoje equipada com utensílios pouco diferentes daqueles que os tapuias usavam, a mais apenas a roda motora introduzida pelos portugueses. Detém-se, ainda, no momento mais alegre que é quando as mulheres se reúnem para formar a roda das raspadeiras de mandioca - "10 ou 15 mulheres sentadas em círculo ocupadas em raspar a casca preta da mandioca para entregá-la ao caititu". Pois, da cozinha, mais que do fruto, Rachel (como uma tapuia) parece desfrutar do ritual. Há receitas clássicas, como a do feijão-de-corda, o feijão seco, comum, de grão pequeno e arredondado, que marca a cozinha do sertão. Receitas que lhe servem de prova de que a cozinha sertaneja, se comparada com aquela outra que lhe faz ombro, a baiana, não fica em desvantagem. Ao contrário, assegura. Rachel recorda que, enquanto a cozinha baiana é obra dos escravos, a sertaneja foi criada pelos caboclos, descendentes de índios. E que, por isso, ela é menos sofisticada, mas muito mais substancial - atributos que aparecem, por exemplo, em seu enorme desprezo pelos molhos, adereços que, em todas as culturas, fazem a distinção de uma culinária. Lá está o milho, que leva quase que mecanicamente à canjica (feita à base de espigas de milho verde raladas) e, mais ainda, ao mugunzá, temperado com leite de coco, erva-doce, canela. A carne nobre do sertão é o carneiro - e logo se pensa na buchada (o estômago do bicho recheado com as vísceras bem temperadas), na panelada (uma espécie de ensopadinho de tripas), no sarrabulho (à base de sangue coagulado). Paçoca - Muitas outras receitas se desfiam, como as da paçoca, da feijoada de peru, da galinha de cabidela (temperada com o próprio sangue), de doces caseiros à base de castanha de caju, de gergelim, os bolos de milho, além das bebidas sertanejas como o aluá (fermentada e alcoólica que mistura a água de chuva com a rapadura) e a cajuína (não alcoólica, à base de caju). Tudo muito substancioso, sem enfeites, sem temperos exagerados (que, em vez de sofisticação, indicam, ela pensa, o cozinheiro inexperiente, ou exibido). Na comida sertaneja, Rachel diz, está sintetizado o espírito do homem do Nordeste. "Só comparo o Nordeste à Terra Santa", ela escreve, enlevada. "A carne de bode, o queijo duro, a fruta de lavra seca, o grão cozido em água e sal." (José Castelo, OESP) |
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