Jackson
do Pandeiro, o rei de todos os ritmos
Jackson do Pandeiro (1919-1982) era o estereótipo do
matuto moldado pelo preconceito que se estabeleceu contra o migrante nordestino nos
estados do Sul e Sudeste. Baixinho, bigode ralo, moreno e com um inconfundível chapéu de
sertanejo, sua aparência revelava uma origem humilde, de pobreza e de fome. Se não
bastasse, chegou à idade adulta analfabeto. Enfim, trazia consigo uma série de
"desvantagens" para quem sonhava ser cantor e compositor de sucesso no rádio.
Nada disso, porém, inibiu o artista de mostrar seu talento musical. Com apenas um
instrumento rústico e aparentemente de fácil manuseio, o pandeiro, Jackson lutou por
quase duas décadas na Paraíba e em Pernambuco até conquistar o Rio de Janeiro,
principal centro produtor de cultura do país, a partir de 1953.
Tinha, então, 34 anos. Gravara em Recife seu
primeiro disco, em 78 rpm, com duas faixas, ambas de sucesso retumbante, graças ao seu
ritmo e originalidade: Sebastiana e Forró em Limoeiro. A aceitação da
primeira nas rádios cariocas levou a gravadora Copacabana a levá-lo com urgência à
capital do país. Se alguém apostou que se tratava de mais um artista de um hit só, não
deve ter demorado para perceber o equívoco. A música brasileira ganhava então um dos
mais versáteis autores e um dos mais influentes compositores. Seu talento se apoiava na
sensibilidade musical acima da média que lhe permitia, de ouvido, memorizar e digerir
quase instantaneamente um mundo de riqueza musical soberbo que sempre foi o Nordeste. Seu
estilo dançante inventava e recriava das mais diversas maneiras, como observou Zuza Homem
de Mello - fazia retardos e antecipações, redobradas e desdobradas, contrações,
breques, acentuações, pausas, pontuações e ligaduras. Não foi um mero difusor da
cultura musical nordestina, mas inventor moderno e sofisticado.
Talvez pela diversidade de experiências, suas
influências estejam ainda tão diluídas em tudo que se fez de música nas últimas
quatro décadas. Para tentar explicar a relevância desse artista, os jornalistas Fernando
Moura e Antonio Vicente escreveram o livro Jackson do Pandeiro - O Rei do Ritmo,
que a editora 34 acaba de mandar para as livrarias. É a primeira biografia do ritmista e
consumiu oito anos de pesquisas e mais de 150 entrevistas e 200 horas de gravações.
Tamanho esforço permite ao leitor conhecer um pouco o rico universo musical nordestino,
distribuído com peculiaridades na Bahia, Pernambuco e Paraíba.
Outro mérito do livro está em relevar o quanto era
fascinante a personalidade desse artista que, ao lado de Luiz Gonzaga, tornou-se um dos
dois mais marcantes nomes da música nordestina - e brasileira. Havia um contraste nessa
fama: diferentemente do astuto Gonzagão, Jackson parece ter demorado a perceber o quanto
seu trabalho era admirado. Não foi por isso, claro, que viveu até sua morte, em 1982,
num estilo de surpreendente humildade. Como conta Fernando Moura, no auge da carreira,
aceitava sem orgulho participar de incontáveis discos como pandeirista. O resultado era
perceptível. Não raro, seu instrumento virava o centro rítmico das gravações.
Até ter reconhecimento, a luta foi árdua. Jackson
tocou e cantou até com cego em feiras. Nesse aspecto, os autores forçam a barra quando
romanceiam passagens da infância e da formação do ritmista para forjar a imagem de uma
criança predestinada e consciente disso. Faltam, no entanto, elementos que confirmem
isso. Diz o livro: "Via-se a tocá-los (ganzá e zabumba) na mesma pancada dos
mestres. Estava tudo plantado no juízo, germinando. Não era sonho, na verdade, mas
apenas uma realidade adiada. Até que tivesse o tamanho justo para alcançar os objetos
inacessíveis".
Com nome de batismo José Gomes Filho, Jackson nasceu
na cidade de Alagoa Grande, um importante pólo produtor de açúcar da Paraíba, com seus
26 engenhos. Era filho do funcionário de olaria José Gomes e da cantora de coco Flora
Maria da Conceição - que teria influência fundamental em sua carreira. "Ele herdou
uma surpreendente aptidão ritmica, calcada nos floreios percussivos e coreográficos da
mãe, uma das mais respeitadas coquistas (ou coqueiras) de sua região, entre o final da
década de 1910 e começo da década de 1930". Apaixonado por cinema, em especial
filmes de faroeste, José Gomes Filho gostava de dizer que era o ator Jack Perrin. E
passou a se nomear de Zé Jack, depois Jack do Pandeiro e, por fim, Jackson do Pandeiro.
A morte prematura do pai e as dificuldades
financeiras levaram a família a Campina Grande, então com 100 mil habitantes e um
importante ponto de desenvolvimento regional. Ali, Jackson descobriu a vida urbana formada
por retirantes, comerciantes, tropeiros, aventureiros, vaqueiros e prostitutas. Vivia como
entregador de pães e ajudante de pedreiro, mas seu universo era noturno, marcado pela
tríplice aliança música, cachaça e mulher. As adversidades poderiam tê-lo levado a
passar despercebido como muitos artistas talentosos que jamais saíram do anonimato, se
não tivesse contado com um pouco de sorte de estar no lugar certo.
Entre 1939 e 1944, atuou como artista do cassino
Eldorado, onde teve acesso a vários gêneros musicais, não somente brasileiros - blues,
jazz, choro, maxixe, rumba, tango e samba. Na mesma cidade, atuou na rádio Tabajara, como
membro de sua orquestra. A popularidade resultou num convite para atuar na futura rádio
Jornal do Commercio, de Recife, que seria inaugurada em 1948. Começou como intérprete de
sambas e marchas do repertório de Jorge Veiga. Em seguida, encontrou o caminho definitivo
nos maracatus, caboclinhos, bumbas-meu-boi, fandangos, escolas de samba, blocos e troças.
"Exímio instrumentista, mungangueiro, com jeitão amatutado, e reconhecendo um
intérprete singular, ele era dono de uma forma cosmopolita de cantar do povo
nordestino", escrevem os autores. Segundo eles, o ritmista pontuava suas narrativas
com expressões, corruptelas e anomalias específicas de sua região, embora no dia a dia
falasse corretamente, aplicando a sonoridade do "r" como poucos.
De Recife para o Brasil. No Carnaval de 1953, seu
coco Sebastiana virou o hit da folia, cantada por ele, em parceria com a radioatriz
Luíza de Oliveira. O sucesso rende um convite da gravadora Copacabana. Nessa mesma
época, conhece Almira, com quem forma o "casal matuto", que fazia encenações
e números musicais carregados de humor. A aceitação do primeiro disco nas rádios
cariocas rende dois êxitos imediatos - Sebastiana e Forró em Limoeiro - e
levou o casal para o Rio, onde se instalaram em definitivo, a partir de 1955.
Ninguém melhor que o maestro Manezinho Araújo, que
o conheceu na Paraíba, para descrever a receptividade de seu disco de estréia:
"Jackson é puramente típico. Não sofreu ainda nenhum burilado, é água da fonte,
é pedra bruta, é luz de carbureto. Suas melodias não passaram pela ciência dos
eruditos, são originais, têm cheiro do mato, sabor de engenho, pinceladas de Nordeste
brabo". Na sua opinião, enquanto no Rio todos aprendiam a fazer o melhor, Jackson
não se preocupava com isso. "Aprende o refrão de um coco bruto, abre a garganta e
sai uma gostosura: simples, sem máscara, sem artifícios. Aí, então, todo mundo
gosta".
No Rio, Jackson criou um tipo característico com
manga de camisa arregaçada a meio-pau, paletó pendurado no braço, lenço no pescoço e
chapéu de banda. No coração da vida urbana brasileira, ele e sua esposa - e companheira
de palco - Almira iniciaram uma carreira vitoriosa, até terminar com a separação do
casal, em 1967. Nesse período, o casal gravou regularmente cocos, rojões, baiões,
frevos, marchas, batuques, xotes, maracatus e rancheiras. Revelou sua versatilidade
também ao incorpar em suas composições elementos do candomblé. Também se apresentou
nas principais emissoras de rádio do Rio - Nacional e Tupi (onde teve um programa
próprio, Forró do Jackson) - e de São Paulo - Record, Bandeirantes e Nacional.
Jackson gravou 137 discos, num total de 415 músicas
- foram cerca de 20 discos em 78 rotações e mais de cem entre inéditos e coletâneas. O
último deles saiu em 1981, quando sua saúde estava debilitada pela diabetes. O
compositor, antes disso, passou por um longo período de altos e baixos, desde a segunda
metade da década de 60, quando novos ritmos musicais como a jovem guarda praticamente o
jogaram no limbo. Foram tempos difíceis, quando faltava dinheiro até para pegar ônibus
e procurar emprego. Viveu o suficiente, porém, para ver suas músicas nas paradas nas
vozes de Gilberto Gil, Alceu Valença e Gal Costa. A morte o levou em julho de 1982,
depois de um show em Brasília. No aeroporto da cidade, quando se preparava para voar rumo
a sua casa, Jackson sofreu uma descompensação diabética e entrou em coma. Só teve
tempo para perguntar qual havia sido o placar do jogo entre Brasil e Itália, na Copa de
1982. Ficou triste ao saber que sua seleção havia sido eliminada da competição.
Apesar das boas intenções, predomina em todo o
livro de Moura e Vicente uma narrativa irregular e mal costurada. Dois problemas, em
especial, atrapalham a obra: o excesso de bairrismo e o deslumbramento exagerado dos
autores em relação ao biografado. Diz-se, por exemplo, que o cassino Eldorado, de
Campina Grande, não tinha, de acordo com os autores, similar no país. "O que mais
se aproximava, a distância, era o Assírio, que funcionava no subsolo do Teatro
Municipal, no Rio de Janeiro". Os elogios gratuitos e adjetivos totalmente
desnecessários acabam por comprometer a sinceridade do trabalho. Essas deficiências, no
entanto, não tornam a biografia de Jackson descartável. Há um conteúdo importante
sobre os tempos áureos do rádio na Paraíba e em Pernambuco, por exemplo, e oferece uma
série de pistas e dicas para se estudar melhor sua produção musical - os autores
prometem um novo volume com a análise das composições do ritmista.
Jackson do Pandeiro se tornou uma espécie de top de
linha da música popular brasileira pela versatilidade e inventividade. Assimilou em suas
composições frevo, bossa nova, marchas carnavalescas e até músicas juninas. Só não
fez samba canção. Além de descoberto por novas gerações após sua morte, como
Paralamas do Sucesso (gravaram 1 x 1), sua marca aparece em composições de
Gilberto Gil, Alceu Valença, Geraldo Azevedo e João Bosco, a Paulinho da Viola, Zeca
Pagodinho, Djavan, Elba e Zé Ramalho e nos recentes Mestre Ambrósio e Cascabulho. A
lista inclui contemporâneos como Hermeto Paschoal, Sivuca, Elino Julião, Jacinto Silva,
Marinês, Genival Lacerda.
Era um nacionalista no sentido de preservar a cultura
e o folclore nacionais e contra a presença americana na música brasileira. Chegou a
implicar com o rock e o soul. As transformações surgidas nos anos de 1960 e 1970, no
entanto, não o transformaram num sectário. Tanto que incluiu acordes de guitarras em
algumas composições. Seu amplo repertório - ainda por descoberto pela tecnologia do CD
- surpreende a cada audição pela riqueza com que interpreta as raízes de uma região
que soube representar de todas as maneiras possíveis. Até mesmo no seu jeito malandro e
alegre de levar a vida. Música para ele, parecia ser algo fácil, sempre uma grande
brincadeira de roda. (© Terra Diversão) |