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Bethânia quitandeira

04/10/2003

Maria Bethânia

 

Maria Bethânia lança selo próprio, Quitanda, e um novo disco que resgata a tradição musical do Recôncavo Baiano. A estréia do selo reedita também Edith do Prato, sambista da velha guarda de Santo Amaro gravada por Caetano na década de 70

Edson Wander

   Maria Bethânia dá mais um passo em direção à independência total aos 40 anos de carreira. A cantora está estreando o selo próprio Quitanda com um novo disco de carreira, "Brasileirinho", e o relançamento do disco de Edith do Prato, "Vozes da Purificação", produzido pelo sobrinho de Bethânia J. Velloso. Edith é sambista e percussionista baiana de 87 anos, lançada por Caetano Veloso no disco Araçá Azul (1973).

   Produzido por ela com arranjos do violonista Jaime Alem, Brasileirinho traz 12 canções que resgatam a tradição musical do Recôncavo Baiano. Mistura sincretismo religioso e cultural, canta o índio, o negro, o sertanejo. O disco tem várias participações especiais, incluindo Ferreira Gullar e Denise Stoklos recitando textos de Mário de Andrade.

   A independência de Bethânia, no entanto, não rompe com a Biscoito Fino, gravadora pela qual lançou seus dois últimos discos: "Maricotinha ao Vivo" e "Cânticos, Preces, Súplicas à Nossa Senhora dos Jardins do Céu"). O lançamento do selo, na sede da Biscoito Fino, no Rio, marcou também o primeiro disco de ouro da gravadora da banqueira Kati Almeida Braga (grupo Icatu)com Maria Bethânia. "Maricotinha ao Vivo" atingiu 120 mil cópias vendidas, o melhor resultado da gravadora.

   O selo de Bethânia será distribuído pela Biscoito Fino e a cantora mantém seu contrato com a gravadora. "Para mim é um presente essa possibilidade de poder fazer com mais liberdade ainda o que tenho feito aqui. Quero experimentar, misturar literatura, teatro, música instrumental e a força da nossa terra brasileira. A Quitanda é para isso, é ‘off‘, é atrás", disse a cantora na segunda-feira, em entrevista coletiva na sede da Biscoito Fino, em Botafogo.

Música e poesia

   Para montar o repertório, Maria Bethânia disse que retomou algumas de suas lembranças, a infância em Santo Amaro da Purificação e contou com ajuda de Cláudio Olivotto e dicas do cantor Chico César. "Foi Chico quem me lembrou dos aboios, das cantigas românticas ligadas aos índios", disse, derramando-se em elogios ao artista paraibano.

   Como convidados, Bethânia listou os mineiros experimentalistas do Uakti, os garotos do choro carioca Tira Poeira, Miúcha (que dividiu com ela uma faixa de domínio público - "Cabocla Jurema"), Nana Caymmi (fez em duo "Sussuarana"). O poeta Ferreira Gullar e a atriz Denise Stoklos recitam "O Descobrimento" e "O Poeta Come Amendoim", respectivamente (ambos poemas de Mário de Andrade). Bethânia também recita ao longo do disco frases soltas de Guimarães Rosa. De música inédita no repertório, só "Yayá Massemba", samba de Roberto Mendes e Capinam, retornando a compor depois de anos de molho. "Não escolhi inéditas agora, não era o caso, só essa [Yayá] é, mas veio por acaso, para eu gravar no disco do Roberto Mendes", afirmou.

   Nos arranjos, Jaime Alem optou por uma formação enxuta de violão e viola (dele), contrabaixo (Jorge Helder) e percussão (Marcelo Costa). "O máximo a que chego musicalmente é assim: eu gostaria que tivesse uma sonoridade assim ou assado e Jaime é que traduz isso em música. Mas gostei muito desse resultado, não fazia um disco assim desde 1971. Esse veio com um cara meio de CPC, pobrinho", contou em referência ao Centro Popular de Cultura, nos anos 60, núcleo de resistência cultural. De novos projetos, Bethânia prepara um disco- tributo aos 90 anos de Vinicius de Moraes, a sair pela Biscoito Fino no final do ano. O disco já está sendo gravado e a cantora parte para Portugal (com Gilberto Gil) e África (sozinha) nos próximos dias para nova turnê.

Edith

   Além de seu novo disco, Bethânia optou por um lançamento "de casa" para a estréia de seu selo com o relançamento do disco da sambista Edith do Prato, "Vozes da Purificação". "Acho esse trabalho de Edith um concentrado de Recôncavo incrível e o disco estava pronto, era só relançar", justificou. Produzido por J. Velloso (sobrinho de Bethânia; o mesmo que produziu os discos de Riachão e Batatinha, sambistas baianos tão históricos quanto desconhecidos), o disco contou com apoio do governo da Bahia.

   "O que eu não queria era fazer um disco para pesquisadores, queria mostrar sem muita produção a espontaneidade do samba de roda na Bahia, coisa para fazer festa", contou Velloso num jeito de falar parecido com o do tio Caetano. São 13 sambas que Edith canta acompanhada de um coletivo de cantores que a acompanham na tradição (as Vozes da Purificação). Apenas três das 13 músicas não são de domínio público, como é de domínio público a tradição do canto primitivo e coletivo no Brasil. Caetano Veloso canta com ela (sempre raspando faca no prato nas execuções) "Minha Senhora, How Beautiful" (do filho Moreno Veloso), Roque Ferreira divide "Ariri Vaqueiro" e a própria Bethânia aparece em outras três faixas.

Liberdade rima com tradição

   Com Quitanda e "Brasileirinho", Maria Bethânia mostra que liberdade de gravar pode significar muita coisa, inclusive apego à tradição. E uma ponte entre essa tradição e a inovação. Celebrar os primeiros povos do Brasil, o negro pelo samba, o índio pelo aboio, soa tão natural quanto entremeá-los com narrativas poéticas.

   Os arranjos do disco repetem uma fórmula concisa que Bethânia experimentou no disco "santo" anterior. Jaime Alem bota cordas em pizzicatos em "Senhor da Floresta" e a devoção sincrética de Bethânia se repete com a trindade Jorge, João e Santo Antônio (esta última faixa do sobrinho J. Velloso, uma das melhores do disco).

   De inovação, vem o bom gosto que Bethânia cultiva tanto para repertório quanto para convidados. É em Uakti ("Salve as Folhas") e no choro novo do Tira Poeira (em "Padroeiro do Brasil") que Bethânia tem amainada o gosto pelo repeteco de um "Boiadeiro" (famosa com Gonzagão), um "São João Xangô Menino" (revés de Doces Bárbaros) ou numa "Melodia Sentimental de Villa-Lobos". Mas é assim, do binóculo multicultural baiano, que a cantora não se cansa de ver o Brasil. Acaba se mexendo mais pelo novo do que seus doces e bárbaros companheiros.

DISCOS

Brasileirinho
Artista: Maria Bethânia
Gravadora: Quitanda/Biscoito Fino
Preço médio: R$ 25,00

Vozes da Purificação
Artista: Edith do Prato
Gravadora: Quitanda/Biscoito Fino
Preço médio: R$ 22,50

(© Agência Carta Maior)

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