25/10/2003
CASSIANO ELEK
MACHADO
da Folha de S.Paulo
Existe um rio que nasce em Recife
para só abrir em delta lá no sudoeste da Espanha. Esse rio, de mais
cascalhos que águas caudalosas, se chama João Cabral de Melo Neto, e seu
curso sem sinuosidades, reto, toma hoje uma tela da 27ª Mostra de São Paulo.
"Recife/Sevilha", documentário sobre
o poeta pernambucano de "O Cão sem Plumas", faz a navegação entre o
Capibaribe pernambucano e o Bétis, que corta a cidade andaluza, sem
solavancos.
O porto de chegada, Sevilha, é o
ponto de partida do filme dirigido por Bebeto Abrantes, produtor do
antológico "Três Antonios e Um Jobim" --com os "antonios" Callado, Houaiss,
Candido e Jobim.
Sevilha não foi pouco para João
Cabral (1920-99), diplomata em dez cidades mundo afora. Seu poema
"Auto-Crítica" dá a medida: "Só duas coisas conseguiram/ (des)feri-lo até a
poesia:/o Pernambuco de onde veio/ e o aonde foi, a Andaluzia./Um, o vacinou
do falar rico/e deu-lhe a outra fêmea e viva,/desafio demente: em verso/ dar
a ver Sertão e Sevilha".
Foram dois períodos breves na terra
do flamenco, de 1956 a 1958 e de 1962 a 1964, mas bastaram para que lá
Cabral tivesse um de seus mais férteis periodos criativos.
O documentário de 52 minutos recupera
as lembranças desse momento de forma privilegiada. É o próprio Cabral quem
narra, em parte do filme, os bares que gostava de frequentar, seu amor pelas
andanças pela cidade, sua relação de amor com o flamenco. "Tenho tendência
para a sonolência. A música me faz dormir. O flamenco me faz acordar",
lembra o poeta, em depoimento colhido semanas antes de sua morte.
Depoimentos de muitos outros, de
Inês, filha do escritor, de seus tradutores, de um toureiro, do mais
importante pintor espanhol vivo, Antoni Tàpies, vão costurando
"Recife/Sevilha", acompanhando imagens mais espanholas que pernambucanas.
O excesso de "castanholas" da
produção é, por sinal, dos seus poucos pontos baixos. A bailarina de
sevilhana, o cantor de "palo seco" (flamenco sem guitarra), as imagens de
bares de tapas transbordam, passando por vezes do caráter de geografia
sentimental para o de guia turístico.
Mas os goles a mais de "jerez" não
comprometem. Logo vem o poeta dizer que "a medida da vida não é a morte, é a
vida" --e aí as imagens cheias de vida da Andaluzia até voltam a ganhar
prumo.
Mas não serão essas as cenas
prediletas dos "cabralzófilos". Pontuando "Recife/Sevilha" estão imagens
inéditas de super-8 com o escritor em cenas cotidianas: se divertindo em um
balanço, brincando com um arco-e-flecha, saindo de uma caverna.
E no meio dessas "expedições" há
ainda outras histórias saborosas, nem espanholas, nem pernambucanas. O
escritor relembra, por exemplo, um encontro que teve com Vinicius de Moraes
na Suíça, nos anos 60. O "poetinha" estava declamando seus versos líricos
quando Cabral lhe dá uma espetada, com voz marota (o filme tem o áudio
disso): "Sem ser de amor você não sabe fazer, né?".
João Cabral, já velho, reafirma:
"Temos de escrever sobre copo de água, não emoção ou saudade".
(©
Folha Online)
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