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Morre no Rio a escritora Rachel de Queiroz

04/11/2003

 

da Folha Online

   Morreu hoje no Rio de Janeiro a escritora cearense Rachel de Queiroz, que completaria 93 anos no dia 17 de novembro. Ela foi vítima de um infarto do miocárdio, por volta das 6h, enquanto dormia em sua casa no bairro do Leblon, na zona sul, segundo a família. A escritora já havia sofrido um derrame em agosto de 1999.

   O velório vai ser na ABL (Academia Brasileira de Letras) e o corpo estava previsto para chegar às 11h ao local. Diferentemente do que havia sido inicialmente informado pela assessoria da ABL, o enterro será feito somente amanhã, no mausoléu da família da escritora no Cemitério São João Batista, em Botafogo (zona sul).

   Entre suas principais obras estão os livros "As Três Marias" (1939) e "Memorial de Maria Moura" (1992), que virou minissérie na TV Globo.
A escritora foi a primeira mulher a entrar para Academia Brasileira de Letras e ocupava a cadeira número 5, para a qual foi eleita em 4 de agosto de 1977.

   Rachel de Queiroz começou a escrever cedo e, em 1930, aos 20 anos de idade, publicou o romance "O Quinze", onde narrava o drama da seca no Nordeste. Ela descendia pelo lado materno do escritor José de Alencar, autor de "O Guarani", e foi professora, jornalista, romancista, cronista e teatróloga.

   Ela colaborou durante vários anos para jornais como o "Diário de Notícias" e "O Jornal", e para a revista "O Cruzeiro".

Folha Online)


Saiba quais foram as principais obras de Rachel de Queiroz

   A escritora cearense Rachel de Queiroz, que morreu hoje no Rio de Janeiro, aos 92 anos, foi a primeira mulher a entrar para Academia Brasileira de Letras e ocupava a cadeira número 5, para a qual foi eleita em 4 de agosto de 1977.

   Tendo publicado seu primeiro livro aos 20 anos de idade --o romance "O Quinze"--, a escritora produziu obras como "As Três Marias" e "Memorial de Maria Moura", que virou minissérie na TV Globo.

   Veja a relação das principais obras de Rachel de Queiroz:

- "O Quinze" (1930), romance
- "João Miguel" (1932), romance
- "Caminho de Pedras" (1937), romance
- "As Três Marias" (1939), romance
- "A Donzela e a Moura Torta" (1948), crônicas
- "O Galo de Ouro" (1950), romance - folhetins na revista "O Cruzeiro"
- "Lampião" (1953), teatro
- "A Beata Maria do Egito" (1958), teatro
- "100 Crônicas Escolhidas" (1958)
- "O Brasileiro Perplexo" (1964), crônicas
- "O Caçador de Tatu" (1967), crônicas
- "O Menino Mágico" (1969), infanto-juvenil
- "As Menininhas e Outras Crônicas" (1976)
- "O Jogador de Sinuca e Mais Historinhas" (1980)
- "Cafute e Pena-de-Prata" (1986), infanto-juvenil
- "Memorial de Maria Moura" (1992), romance

Obras Reunidas de Ficção:

- "Três Romances" (1948)
- "Quatro Romances" (1960)
- "Seleta", seleção de Paulo Rónai; notas e estudos de Renato Cordeiro Gomes (1973)

Folha Online)


Leia entrevista de Rachel de Queiroz concedida à Folha em 1998

   Por ocasião do lançamento de seu livro de memórias "Tantos Anos", a escritora Rachel de Queiroz, morta hoje aos 92 anos, concedeu uma entrevista à Folha de S.Paulo em setembro de 1998 e falou sobre a militância comunista, o apoio ao golpe de 64 e também sobre a morte

Veja a reportagem abaixo:

CYNARA MENEZES
da Folha de S.Paulo, Enviada Especial a Quixadá (CE)

Aos 87 anos, autora de "O Quinze" lança livro de memórias, em que fala da militância comunista, o apoio ao golpe de 64 e os amigos escritores; "agora, quero ir para o céu", disse à Folha de S.Paulo.

Quando chegamos à fazenda Não-me-Deixes, o pedaço de terra que Rachel de Queiroz herdou no meio da caatinga, a quase 200 km de Fortaleza, a escritora está na rede, em seu quarto, lendo um livro com a ajuda de uma lupa.

Enxerga com dificuldade --só foi descobrir a forte miopia que tem aos 18 anos. Também se confunde com velhas datas e, às vezes, repete algumas histórias. Mas sua memória em geral permanece intacta, apesar dos 88 anos que vai completar em novembro.

É uma senhora de cabelos grisalhos jamais maculados com tinta, de voz poderosa, porém afável, divertida e provocadora, nem sempre sincera. A crítica de opiniões ácidas se curva à acadêmica adepta da boa vizinhança: não atinge ninguém, além dos políticos, em seu livro de memórias, "Tantos Anos", que chega às livrarias na próxima semana pela editora Siciliano. Sobretudo os que ainda estão vivos.

O livro, talvez o último que escreva --diz que seu próximo projeto é "ir para o céu o mais rápido possível"--, é uma obra despretensiosa, cheia de antigos "causos" de família e de relatos sobre sua trajetória pessoal, do comunismo ao apoio ao golpe de 64, passando pela convivência com amigos vários, escritores que fizeram a história literária do Brasil deste século.

Que, pelo visto, não passou pelo Não-me-Deixes. Lá o tempo pára. Como Rachel, a fazenda é um retrato vivo da época de sua primeira novela, "O Quinze", história ambientada na grande seca vivida pelo Ceará no ano de 1915.

As árvores secas e esbranquiçadas dão uma atmosfera extraterrena --para Rachel, européia-- à fazenda, não há água no açude e o gado da região tem as ancas ossudas de todas as secas. Na casa antiga, com forno a lenha, os criados todavia se escondem na cozinha.

"É um feudo", reconhece Rachel, desvendando a origem nordestina privilegiada, descendente de políticos republicanos. Ela conta que a servidão dos empregados foi passando de pais para filhos.

Foi assim, inebriados neste cenário, que Rachel de Queiroz falou à Folha de S.Paulo sobre os mais diversos assuntos --menos, como no livro de memórias, sobre sua vida íntima, que faz questão de preservar, embora aqui tenha aberto mais o coração forte de sertaneja.

A irmã, Maria Luíza, incentivadora das memórias, que recolheu com a ajuda de um gravador e redigiu, também participa da conversa em que tratamos a escritora, a seu pedido, na segunda pessoa do singular. "Por favor, me trate de você e me chame de Rachel."

Folha de S.Paulo - Como foi a feitura das memórias?

Maria Luíza de Queiroz - Eu sou a única responsável.

Rachel de Queiroz - Tomara que metam o pau.

Maria Luíza - Foi um trabalho muito penoso. Enfrentei uma resistência e só porque sou muito teimosa...

Rachel - Manda em mim...

Maria Luíza - Ela usava todo tipo de truque para não escrever, uma porção de malcriação. E eu achava que era uma obrigação minha porque a vida da Rachel foi mais ou menos paralela à vida política do Brasil. Ela acompanhou todos os movimentos e participou deles. Minha irmã esteve sempre envolvida na história.

Rachel - Não magnifiquemos.

Folha de S.Paulo - Vocês sempre se provocaram assim?

Rachel - Não, isso aqui é só para uso das visitas. Mas ela extraiu esse livro de mim a fórceps. Não fiquem esperando muito, que não é lá essas coisas.

Folha de S.Paulo - Você foi, é uma pessoa feliz?

Rachel - Feliz, propriamente, não. Tenho uma natureza conformada com as circunstâncias.

Folha de S.Paulo - Então por que, nas fotos, está sempre sorrindo?

Rachel - Porque fico muito feia quando estou séria. Tenho duas rugas grandes ao redor da boca.

Folha de S.Paulo - A mulher é uma flor que não aceita murchar?

Rachel - Pode não aceitar, mas a vida é implacável. O melhor é aceitar graciosamente. O (Ivo) Pitanguy diz sempre: "Você é a única mulher que tem Pitanguy de graça e não usa". Outro dia, alguém me perguntou na frente dele por que eu não fazia plástica. Eu disse: "Minha filha, o Pitanguy estica, mas não renova. Você puxa aqui, ali, mas a velhice tem a sua harmonia, o queixo fica mais pesado, os olhos ficam mais fundos, e a cirurgia interrompe esse processo".

Folha de S.Paulo - Tem medo de morrer?

Rachel - Não, para mim a morte é a libertação. O que seria de nós se não fosse a morte? É a grande irmã, a grande amiga.

Folha de S.Paulo - Sendo atéia é mais fácil?

Rachel - É muito ruim isso, não ter uma crença, porque nas fases ruins você não tem em que se apegar. Tem que se encolher em si mesma e aguentar a pancadaria. Invejo profundamente quem tem uma boa fé. O Helder (d. Helder Câmara) ainda tem esperança de me converter, diz que quer morrer um dia depois de mim só para rezar a extrema-unção junto comigo.

Folha de S.Paulo - Como foi seu apoio aos militares em 64?

Rachel - Aceitamos o golpe militar para derrubar o Jango (João Goulart). Quando degenerou em ditadura, nos afastamos. Não tivemos cargos. Conhecia eles todos por chamar de "você", mas nunca me aproveitei. Olhando desapaixonadamente, a ação dos generais não foi tão ruim quanto dizem nem tão boa quanto os generais pretendem. Foi um governo de ocasião, mas que tentou conciliar e, assim que foi possível abandonar, abandonaram e entregaram para os civis.

Folha de S.Paulo - O que houve de bom?

Rachel - Principalmente ter derrubado o governo de Jango, que foi uma limpeza. Sempre tive o maior desprezo pelo Jango intelectualmente, como pessoa, além do desconforto de ver na Presidência o grupo getulista, que já era por si fascista. Patrulharam-me muito porque aprovei o golpe e até hoje aprovo. Com o Jango, o Brasil teria emborcado. Era um idiota manobrado por aquela gente.

Folha de S.Paulo - Você acha que o que um escritor pensa politicamente influi sobre o que escreve?

Rachel - Nunca envolvi o que escrevo literariamente --artigo de jornal é outra coisa, porque é para isso mesmo-- com ideologia nenhuma. Você pode apresentar o fato político num romance, o que você não pode é fazer pregação política. Romance não é para isso.

Folha de S.Paulo - Como você avalia sua obra?

Rachel - Nunca releio um livro meu. Tenho um pouco de vergonha de todos os meus livros, de "O Quinze" tenho uma antipatia mortal, esse livro me persegue há 60 anos. Detesto eles todos.

Folha de S.Paulo - Nas suas memórias, há uma predileção por livros policiais, considerados subliteratura...

Rachel - Eu adoro literatura policial. Não existe literatura e subliteratura, depende do autor.

Folha de S.Paulo - Nunca quis se aventurar pelo policial?

Rachel - Eu que fui 'comuna' e muito reprimida por policial jamais iria criar um policial fabuloso. Não há uma tradição no Brasil de polícia intelectual. Alguns policiais do Sul tentam fazer o gênero Sherlock, mas o que a gente tem é o policial que prende e bate.

Folha de S.Paulo - Você foi comunista, trotskista...

Rachel - Pertenci ao Partido Comunista durante 24 horas. Era simpatizante, fui admitida, mas no dia seguinte tive uma grande briga e abandonei o partido. Ideologicamente continuo trotskista, o camarada Trotski ainda é uma personalidade muito importante para mim. Era um grande escritor.

Folha de S.Paulo - Que autores mais lhe influenciaram?

Rachel - Difícil dizer, porque minha mãe era uma intelectual muito lida, foi formando meu gosto de pequena. Ia me dando o Eça, o menos pesado do Eça --sem dizer isso, porque aí eu ficava curiosa pelo mais pesado. Gosto muito dos autores ingleses, mas fui criada nos franceses, nos portugueses. Dos brasileiros, Machado, que é meu ídolo, meu deus literário.

Folha de S.Paulo - Lê filosofia, também?

Rachel - Só gosto de ficção. Li filosofia quando marxista porque era obrigada. Filosofia é chato que é danado.

Folha de S.Paulo - Sua irmã diz que você censurou muitas partes do livro que contavam de sua própria vida íntima. Por quê?

Rachel - Porque minha vida pessoal é minha, não do público. Essas coisas a gente fala em romance. Nas biografias não se deve contar.

Folha de S.Paulo - Uma pessoa que não gosta de falar de coisas íntimas se espanta com o mundo de hoje?

Rachel - Fazer parte da vida pública tem esse calvário. O pobre do Clinton, coitado, por aquele namorinho dele fizeram aquela onda, quando todo presidente aí tem casa montada com amante, filho e tudo. Getúlio tinha amantes sucessivas, todo presidente tem, né?

Folha de S.Paulo - Como foi sua história de amor com Oyama de Macedo?

Rachel - Foi esse negócio de paixão à primeira vista, fomos viver juntos, ele era desquitado e eu também. Não havia divórcio. Toda vez que no Congresso não passava a lei do divórcio, a mãe dele tinha uma enxaqueca. Quando chegou, acho que um dos primeiros casamentos do Brasil foi o nosso. Oyama deu esse presente para a mãe. Ele foi meu único grande amor.

Folha de S.Paulo - Como é sobreviver a praticamente todos os seus amigos?

Rachel - Tem sido uma das grandes mágoas da minha vida. Meus amigos eram todos mais velhos que eu, de forma que fui perdendo todos eles, de um em um. (Pedro) Nava, Graciliano (Ramos), Zé Lins (do Rego), amigos queridos que eram como irmãos, a gente se via todo dia. O Zé Lins acordava a gente de noite porque tinha escrito uma página e estava em dúvida e acordava a gente para ouvir o diabo da página.

Folha de S.Paulo - Do seu grupo de Alagoas, quem era seu favorito?

Rachel - Graciliano. Era um homem muito inteligente, fiel às amizades. Acompanhei-o até morrer. Tinha um gênio ruim. Quando implicava com alguém dizia umas coisas ferinas. E cultivava o mau humor como uma característica.

Folha de S.Paulo - No livro, a senhora diz que Mário de Andrade teria sido mais feliz se tivesse assumido sua homossexualidade. Por quê?

Rachel - Creio que ele era um homem profundamente infeliz. Acho que sou a primeira pessoa que faz alusão escrita a isso, mas era um fato notório entre todos nós. A gente sentia isso nele, era visível.

Folha de S.Paulo - E Manuel Bandeira, era um solteirão convicto?

Rachel - Manuel era um amor, as moças adoravam. Agarravam Manuel, beijavam. E ele adorava ser adorado. Um dia, estava nos mostrando o novo apartamento dele. Tinha uma cama grande, eu fiz uma brincadeira. E ele disse: "Nunca uma mulher dormiu a noite inteira na minha cama". Alguém perguntou a razão, e ele disse: "Tuberculose". Não sei se era complexo ou cautela, porque até então tuberculose era uma doença incurável. Mas tinha namoradas, amantes, inspirava paixões.

Folha de S.Paulo - Por que você não se refere à homossexualidade de seu primo Pedro Nava?

Rachel - Porque foi muito recente sua morte, porque éramos ligadíssimos e porque ele se matou para esconder isso. Então, todos nós respeitamos. Ele se matou para não ser desmascarado por um sujeito que estava fazendo chantagem.

Folha de S.Paulo - A maioria de seus amigos era homem, não?

Rachel - Minha roda sempre foi mais masculina, mas não por escolha. Dizem que mulher tem mais tendência à rivalidade, mas talvez sejam os homens que espalhem isso.

Folha de S.Paulo - Clarice Lispector era sua amiga?

Rachel - Gostava muito dela e ela gostava muito de mim. Era uma pessoa estranha, muito fechada, cheia de fragilidades. Você magoava a Clarice sem saber, era uma pessoa extremamente difícil. Como escritora, era a maior de todas nós.

Folha de S.Paulo - E qual seria sua posição?

Rachel - Acho que a última.

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Morre no Rio a escritora Rachel de Queiroz

 

Autora de O Quinze e Memorial de Maria Moura, Rachel foi a primeira mulher a entrar para a ABL. Morreu dormindo, aos 92 anos

   Rio de Janeiro - Morreu hoje a escritora Rachel de Queiroz, aos 92 anos, vítima de enfarte, em seu apartamento no Leblon, zona sul do Rio. Segundo sua irmã, Maria Luiza, Rachel passou bem o dia de ontem e amanheceu morta. "Foi melhor assim, porque ela não sofreu. Ontem mesmo perguntei como ela estava, e ela respondeu que só não estava melhor porque não estava no Ceará".

   Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza, Ceará, em 17 de novembro de 1910 e teve seu primeiro livro, O Quinze, publicado em agosto 1930. Escrito durante uma suspeita de tuberculose e publicado com a ajuda financeira do pai, o livro causou grande impacto nos círculos literários. É uma das obras inaugurais do romance regionalista brasileiro. Mas a própria escritora jurava tratar-se de "uma obra juvenil": "Eu era quase uma garota, e isso se reflete no livro", disse certaz vez ao Estado, jornal em que assinava uma coluna semanal.

   Assim como O Quinze, também suas obras seguintes não chegavam a contentá-la. E foram muitas, entre romances, contos e crônicas: Memorial de Maria Moura, Três Marias, Dôra, Doralina, O Galo de Ouro, O Homem e o Tempo, Andira, A Casa do Morro Branco, Falso Mar, Falso Mundo, João Miguel, Xerimbabo e, entre outras, Memórias de Menina, lançado em 2003. "Encontro má disposição de frases, subliteratura; sou uma crítica muito feroz do meu trabalho", dizia.

   A despeito de suas próprias censuras, já com O Quinze Rachel alcançou lugar de destaque na literatura brasileira. Acabou tornando-se a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras, em 1977, ocupando a cadeira de número 5. É na ABL que seu corpo será velado hoje. O enterro, contudo, não será no mausoléu da casa, mas sim no cemitério São João Baptista, junto ao túmulo do marido, o médico Oyama de Macedo, morto em 1982.

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Leia sua última crônica publicada no Estado

A "inspiração" não vem para todos

Por Rachel de Queiroz

   Rio - A noção comum que se tem a respeito do escritor é que pessoas excepcionais, nascidas com o dom de escrever bem o belo, são periodicamente visitadas por uma espécie de iluminação das musas, ou do Espírito Santo, ou de um outro espírito propriamente dito - fenômeno a que se dá o nome de "inspiração". O escritor fica sendo assim uma espécie de agente ou médium, que apenas capta as inspirações sobre ele descidas, manipulando-as no papel graças "aquela" dom de nascimento que é a sua marca.

   Pode ser que existam esses privilegiados - mas os que conheço são diferentes. Não há nada de súbito, nem de claro, nem de fácil. O processo todo é penoso e dolorido - e se pode comparar a alguma coisa, digamos que se parece muito com um processo fisiológico -, que se assemelha terrivelmente a uma gestação, cujo parto se arrastasse por muitos meses e até anos.

   Começa você sentindo vagamente que tem umas coisas para dizer ou uma história para contar. Ou, às vezes, ambas. Fica aquilo lá dentro, meio incômodo, meio inchado (na minha terra se diria como "uma dor incausada"), quando um belo dia a coisa dá para se mexer. Surgem frases já inteiras, surgem indefinições que, se você for ladino bastante, anota para depois aproveitar; mas se for o contumaz preguiçoso confia-as à memória e depois as esquece. Dentro da enxurrada de frases e de idéias aparecem, então, as pessoas. Surgem como desencarnados numa sessão espírita - timidamente, imprecisamente. São uma cabeça, um silhueta, uma voz. Neste ponto, com as frases, pensamentos e criaturas (e mormente com o cenário, embora ainda não se haja falado nele), nessa altura, a história já se está arrumando. Você sabe mais ou menos o que contar. Os autores meticulosos, nessa fase dos acontecimentos, já delinearem o que eles costumam chamar de "o plano de obras", ou seja, um esqueleto do enredo. Se é um romance, o esquema será mais amplo - os claros serão facilmente preenchíveis. A história corre a bem dizer por si. Mas se se trata de teatro, o esquema bem linear é imperioso: aquilo tem de ser como um pingue-pongue, ter um crescente constante, uma economia, uma nitidez...

   E então chega um dos piores momentos nessa fase embrionária da obra por escrever. O autor enguiça. Falta-lhe imaginação para desenrolar o resto da história, falta a centelha necessária para criar a situação única, indispensável, climática, que será como a tônica do trabalho. E a gente fica numa irritabilidade característica, e numa pena enorme de Deus Nosso Senhor, que é obrigado a dirigir as histórias não apenas de um punhado de personagens mas os milhões de viventes que andam pelo mundo - e se concebe um respeito trêmulo pela divina capacidade de intenção, que tão pouco se repete e tão invariavelmente cria...

Talvez com autores de imaginação rica o fenômeno se passe diferente. É provável que eles, ao contrário de nós, os terra-a-terra, primeiro imaginem um enredo e depois, segundo as necessidades desse enredo, vão criando os personagens e os situando no tempo e no espaço. Aí a sensação criadora deve ser de plenitude e gratificação. Mas esses são os estrelos. A arraia miúda escrevente - ai de nós - é mesmo assim como eu disse: pena, padece e só então escreve.

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