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Tom Zé: a tropicália me enterrou

10/11/2003

Tom Zé não pára mais depois de duas décadas no ostracismo La Costa/ÉPOCA

Tom Zé não pára mais depois de duas décadas no ostracismo La Costa/ÉPOCA

Tom Zé ataca a censura e revela como a turma baiana o expulsou do tropicalismo

CLÉBER EDUARDO

   Tom Zé, hoje, está na moda. Tem apresentações lotadas, viaja o mundo, é uma unanimidade. Está lançando disco novo, um livro composto de letras de músicas, artigos e de uma longa entrevista, mais um DVD com o show Jogos de Armar. Nem sempre foi assim. Durante seu ostracismo entre o início dos anos 70 e o fim dos 80, depois de ser colocado para a lateral pelos tropicalistas e resignar-se com a perda da vaga na cena luminosa do movimento, conviveu com vaias, depressões, falta de dinheiro e com a ausência de ouvidos para escutarem sua voz. Só voltou a ter imagem e som depois de ser descoberto por David Byrne e ganhar a legitimação por críticos americanos e europeus. Na entrevista abaixo, ele fala do novo disco, Cantando a Imprensa, no qual debruça-se com irreverência sobre questões atuais, e passa a limpo o passado.

ÉPOCA - As canções desse disco não foram compostas para ele, mas em ocasiões esparsas e com finalidades diversas. No entanto, há um conceito. Você canta questões do presente, com uma urgência de reportagem.
Tom Zé É isso mesmo. Pensamos esse disco, eu e Jair Oliveira, produtor, como manchete de jornal. Esse ano foi rico em misérias e desastres, em censuras e guerras. Era uma boa oportunidade de fazer uma imprensa cantada, com músicas sobre vários temas do momento. Aproveitei para regravar São Paulo Meu Amor, que não tinha gravação boa. Eu já tinha sido chamado para cantar nos 450 anos da cidade, que será comemorado em janeiro, e isso é até curioso porque o governo do PT nunca me chama nas festas de São Paulo.

ÉPOCA - E você votou na Marta Suplicy?
Tom Zé Naturalmente. E quando o PT é governo, em consideração ao partido, eu paro de cobrar o prêmio de 'São Paulo Meu Amor', o prêmio do Festival da Record, para não causar confusão nas finanças municipais. Na época, valia três Fuscas. Hoje só tem valor moral.

ÉPOCA - Nenhuma figura política tinha sido tema de música sua antes de George Bush. Ele tem esse mérito?
Tom Zé É minha musa mais inspiradora do Olimpo. Ele se sobressaiu em estupidez, prepotência e truculência. No caso do governo militar brasileiro, que também fez isso bastante, não ia sonhar em botar personagem em música, pois era provocação suicida. Mas cantei uma canção, 'No Jardim da Política', que falava de um conceito do Geisel, de democracia relativa, e comparava ao conceito de Paulo Freire, de hospedar o opressor. É uma idéia bonita. Paulo Freire diz que o oprimido, depois de tanto ver os métodos e as estratégias do opressor, age como o próprio opressor.

ÉPOCA - Você tem duas canções sobre censura. Por quê?
Tom Zé Esse foi o ano internacional da censura. Na entrega do Grammy, tomaram o microfone de Erica Badu e Sheryl Crowl, e não permitiram os cubanos concorrentes de entrar no recinto. Nos Estados Unidos, as passeatas contra a invasão do Iraque foram noticiadas com timidez, com número de participantes diminuído na imprensa, como se fossem meia dúzia de gatos censurados.

ÉPOCA - E aqui no Brasil?
Tom Zé No meu disco, teve censura. Todos as críticas, as positivas e negativas, trataram-no como chulo. Eu percebi que tinha exagerado na dose. Não sou apocalíptico, nem quero fazer nada para ser chamado de maldito. Quero tratar de assuntos que a sociedade não quer tratar, mas quero tratar de uma forma que ela não possa fugir do assunto. Entendi que errei. Não precisava usar palavrão, mas os meninos da Trama, a gravadora, disseram para ficar, porque os rapazes dos raps falam sempre, sem nenhum problema. As emissoras de rádio não me entrevistaram e uma acadêmica disse que não ia escrever, porque havia uma canção chamado 'Prostituir', na qual há palavrão. E depois os rapazes que comandam rádios, em conversa comigo, admitiram que, como estavam sendo pressionados, não tocavam o disco. Eu não quero causar mal estar assim. Quero incomodar é quando a sociedade não quer tratar de suas coisas podres, que apodrecem muito mais se você não trata das feridas. Não quero usar palavrão para mostrar como sou bacana e a sociedade é pateta. Não faz parte de meu caráter. Eu podia ter trocado por uma palavra mais bonita. Tenho ética. Tirei de meu livro o título Tropicália Jacta Est, nome sensacional, uma jóia incrustada, um achado, para evitar que dissessem que eu tinha lançado a Tropicália. Tropicalista Lenta Luta é muito mais fracote.

ÉPOCA - Não há hipocrisia em se implicar com palavrão em uma mesma sociedade que legitima a veiculação espetacularizada de violência?
Tom Zé Claro. Hollywood é uma escola de crimes. Mas isso é normal. Bretch dizia que, quando fala de arte, classe média fala de moral. Mas eu não quero posar de vítima e chorão. Não tenho mania de censura. Quantos compositores não iam para shows de estudantes e diziam que aquela canção tinha de ser ouvida ali porque logo seria censurada. Nunca fiz isso. Nunca fiz proselitismo, propaganda de perseguição. Nunca fiz queixa de gravadora, de multinacional ou de censura. Vou virar pateta depois de velho?

ÉPOCA - Sua turma chegou ao poder, como Gilberto Gil e Orlando Senna no Ministério da Cultura. Como você essa passagem para o lado de lá?
Tom Zé Vi Gil fazendo um discurso e fiquei admirado com a maneira com que ele falava equilibradamente dos problemas, sem o rompante de um comandante. Transparecia na fala dele a pequenês e a fraqueza que o homem sente quando quer defender causas justas em qualquer tipo de governo. Eu sou fã de Gil como músico e como político. Convivi com ele e vi que era capaz de decisões, de olho clínico, de saber fazer a volta, contornar, para não fazer enfrentamento fora de hora, para não jogar final nas oitavas de final, deixar o jogo mais duro para depois, que é habilidade do homem que estudou administração de empresas como ele. Quando cheguei a São Paulo para fazer 'Arena Canta a Bahia', ele me disse que a vida profissional era diferente da amadora, que a resposabilidade era outra. Ele falou isso com aquele jeito de pai que ele possui. E me impressiona como camarada larga o conforto, seu Grammy, para ir lá dar cara para bater, sabendo que lutar contra poderosos é batalha perdida. Minha geração não pode se queixar. Aquele que tinha capacidade aceitou o desafio. É claro que o homem tem orgulho e vaidade, mas as vezes isso serve a todos. Não sou bom de julgar políticos e pode ser até que esteja errado quanto a Gil, mas eu estou dando minha impressão.

ÉPOCA - Em um de seus textos, você fala que, na divisão do espólio tropicalista, você foi enterrado. O que foi essa divisão?
Tom Zé Nossa senhora. Quando os meninos foram para a Europa, parecia que foi anunciado que tinha uma vaga no tropicalismo, porque o Tom Zé saiu. E aí o que apareceu de candidato. Eu estava em uma fase que ou largava aquela coisa toda ou não chegava ao projeto que estou apresentando, desde 1990, quando fui descoberto por David Byrne. Em 1975, o produtor Guilherme Araújo, um pouco protetor, sugeriu de eu cantar música caipira. Eu seria uma novidade naquele tempo, mas nem pensei nisso porque estava mergulhado na loucura de fazer Estudando o Samba. Não fui tentado por esse recurso fácil. Outra coisa. Quando começou os fuxicos contra mim, em Londres e no Brasil, em 1969, Gil chegou no show meu e da Gal, no Rio, e já havia um clima para me expulsar dali. Sentou todo mundo em volta de Gil depois do show e ele começou a dizer: 'O que há de errado com você?' Repetiu isso algumas vezes Tomei um susto porque Gil é muito objetivo. Ele disse: 'as duas músicas que ouvi você cantar são músicas aqui, em Nova York, em qualquer lugar, então o que há de errado com você?' Entendi o que estava acontecendo. O fuxico estava pesado e ele não era de entrar em fuxico. Aliás, não quero interpretar. Interprete vocês. E aí Gil mudou: 'Não há nada errado com você'. Quando um lugar está disponível, as pessoas tentam chegar mesmo, e o tropicalismo dava muito dinheiro. Todo mundo queria o seu também. É natural, humano. Não tem problema.

ÉPOCA - Mas qual era o fuxico?
Tom Zé Se você me pede isso estraga o que eu estou dizendo. Ninguém vai arrancar de mim mais nada do que estou dizendo aqui. Estou apenas respondendo algo que nunca disse a ninguém. Ficou parecendo que eu estava saindo, porque estava dedicado a outro projeto. Todo mundo que estava perto, humanamente, achou que podia pegar o lugar. Quando a mentira é doce a verdade é um coice. Se eu estava desaparecendo, então era melhor, porque fica eles diziam: 'fica esse cara aí, que fez esse negócio antes, e quando a gente o encontrou ele já tinha essa forma na mão, ele não disputa nada, não defende o dele'.

ÉPOCA - Mas você não servia para a cena tropicalista?
Tom Zé Não sei. Nunca pensei nisso.

ÉPOCA - Você não era muito acanhado para o tropicalismo?
Tom Zé Era acanhado em meu procedimento social, mas no artístico era super desacanhado, o desinibido que fui a vida toda. O objeto arte em minha mão sempre foi tratado na fronteira.

ÉPOCA - Mas o tropicalismo tinha uma presença extra-musical também.
Tom Zé Pode ser. É uma boa pergunta. Tomo até um susto com ela. Discussões assim são dignas. Mas em relação a isso só faço comentários colaterais. Agora sem dúvida que fui enterrado. Era o Trostky do Tropicalismo e fui tirado do retrato. Me lembro que, nas reportagens de cinco anos do tropicalismo, Tom Zé estava em todas. Reportagem de 10 anos, Tom Zé estava na metade. Na de 15 anos, não estava em nenhuma. E aí na de 25 anos eu voltei. Mas volto por que? Passei a fazer alguma coisa que não fiz ou volto por que a América mandou um recado que existo. Que diabo é isso? Ou não existo ou existo.

ÉPOCA - Luiz Tati diz que o tropicalismo foi contingência em sua vida. Seu interesse era outro, não música popular?
Tom Zé Vamos falar pura e simplesmente. Ainda não estou capaz de ter uma visão sensata de tudo que aconteceu em minha vida, do que foi culpa minha e de fora de mim, do que não tomei a responsabilidade de assumir a defesa de meus direitos, não estou preparado para julgar isso com isenção. E a pessoa tem fraquezas. Determinadas épocas já posso trabalhar com afinco e tirar dali algo de instrutivo para outras pessoas. É o caso do período entre 1950-1955, do qual trato no livro. Eu escrevi esse livro para meus patrões. Não sou compositor livre, eu tenho patrões. Graças a Deus. Esses patrões são jovens, precisam dessa rebeldia que produzo, que é minha principal proteína, e eles me alimentam. Minha casa é mantida pelos jovens. Meu penúltimo disco, vendeu para público com idade média de 20 anos. O último, baixou para 18. Tenho responsabilidade com essas pessoas. Sinto vontade de atender a eles. Não sou herói. Sou medroso, fraco, covarde. Sou igual a qualquer criatura do mundo. Defino algumas coisas e outras não. Venho de uma infância difícil, fui criança oprimida, por circunstâncias que não foi pobreza, mas contratempos do destino, e nunca me queixei. A Continental em 1979 não podia mais me ter, estava sem conseguir vender disco, é natural que não me quisessem. Eu fiz o Estudando o Samba, que foi um disco mais caro que o normal. E não vendeu apesar de Chacrinha ter roubado uma coisa dele. Tem um provérbio oriental que diz que, quando você tem muito, a esse muito lhe será acrescentado, mas, quando você tem pouco, a esse pouco lhe será subtraído. Eu não tinha nada e faço esse verso 'eu estou te explicando para te confundir'. Duas semanas depois o Chacrinha aparece com 'Eu vim para confundir'. Esse quadro é ótimo para mostrar o que minha personalidade tem de fraco. Quando vi isso, fiquei assustado, com medo. Quando você não toma conta do seu, o mundo acha que está disponível. Me responsabilizo pelos meus erros. Não culpo ninguém.

ÉPOCA - Para um jovem que teve infância oprimida, rejeitado, a música é uma afirmação de identidade?
Tom Zé Isso. Eu passei a existir a partir da música. Eu me sentia uma nulidade, à margem, um rejeitado, tanto na família como na sociedade. Quando você recebe uma informação na célula inicial, você coloca ela nos olhos de todo mundo. Isso em psicanálise chama-se projeção. Não sou um compositor certinho, que aprende na universidade do bom procedimento como é que só se fala o certo e como se escapa dos assuntos dolorosos, como se mostrar poderoso. Sou uma alma nua. Sinto que minha platéia não precisa de um guia, de um deus ou de um guru. Sempre lutei contra as palavras de ordem. Houve um tempo em que me cobravam heroísmo. Mas isso não é comigo. Herói não ajuda em nada grupos sociais.

ÉPOCA - Seu estilo baseado na incompletude e imperfeição da canção é determinado pela insuficiência como instrumentista, compositor e cantor?
Tom Zé É fato. Essa limitação gerou um Deus nos acuda e a luta para libertar a fera que reside em mim. Eu precisava procurar um buraco para viver porque a vida insistia em mim com forças inimagináveis. Parece verso clássico de poeta português.

ÉPOCA - Mas sua música não é também uma rebelião contra o fazer o certo?
Tom Zé O ser humano tem intuições, principalmente o artista que tem útero, porque o artista é muito feminino. Essa pergunta é o diabo. Eu posso ter apenas arrumado o pretexto para ir para onde eu queria. É possível. Desmancha até minha história, de fazer como faço por deficiência, mas é uma possibilidade maravilhosa. Uma vez eu fui fazer uma harmonia para 'A Noite do Meu Bem', de Dolores Duran, e depois de dias consegui algo medíocre. Tive então o seguinte raciocínio: 'Quando vou para o imprevisível e para o estado do bárbaro rebelde, consigo muito mais resultado em menos tempo'. Em dois dias, teria feito quatro ou cinco versões da Dolores Duran. Desde então direcionei meu trabalho para a rebeldia. Compreendi que era melhor fazendo o que não está no livro. E olha que essa versão me valeu uma vaia em um show. Vinte anos depois, Gil tentou me salvar de nova vaia. Ele estava presente na primeira vaia e, em seu show de 25 anos de carreira, me chamou para fazer um canção. Perguntou como estava minha vida, eu disse que David Byrne ia lançar um disco meu, ele tomou um assusto, mas me chamou para cantar. Gil ficou com tanto medo de eu ser vaiado que sentou na primeira fila do público aprovando minha participação com a cabeça. Quando acabei e ele subiu ao palco, disse que tinha ficado contente pelo público ter gostado de mim. Então eu não tenho mágoa de nada. Acho importante ter vivido com pessoas que ajudaram a tirar o Brasil da fossa na ditadura. Vamos considerar isso. Não precisa esperar eles morrerem. Vamos dar valor, amigos e inimigos, esses que trabalham febrilmente. Quem tem inimigos como Caetano não precisa ser amigo. Os inimigos dele se reúnem regularmente, cobram um do outro a atividade de militância constante, dizem 'você faz um mês que não manda bomba, está passando para o lado dele seu sem vergonha', ou seja, Caetano é o diabo mais perfeito que existe para ser atacado.

ÉPOCA - Você parece unir, em seu processo criativo, a teorização e o conceito, esse seu apreço aos planejamentos, à uma abertura para o acidente da realização.
Tom Zé Assino embaixo. Mas geralmente faço a teria depois. Primeiro acontece uma coisa. Às vezes, você pode planejar antes, porque sem plano você fica perdido. Mas no geral primeiro acontece alguma coisa e depois eu dou o conceito para me guiar. O redemoinho do acaso e da necessidade ganha um aspecto de protótipo. Tenho de correr risco para me dar bem. Mas nesse sentido não se pode fazer nada sem falar de Hermeto Paschoal e Luiz Tati. Nos tempos pós-históricos, são as coisas desgarradas, passaram pela relatividade e já estão em outra coisa. Hermeto faz essas brincadeiras que eu faço, mas ele faz começando pelo lado oposto, porque é um dos maiores músicos do mundo e, se despreza o musicalmente certo, é porque tem autoridade para isso. E eu desprezo porque não sei fazer. E o Luiz Tati é o que faz teorias, passa por cima, joga fora, só faz músicas com teses. E quero dizer isso mesmo: Luiz Tati é hoje o maior compositor que conheço hoje. Faz a platéia virar torcida.

ÉPOCA - Por que você decidiu ficar em São Paulo em vez de radicar-se no Rio?
Tom Zé Muito simples. Quando mergulhei no ostracismo, em 1973, depois de Todos os Olhos, a população estudantil em São Paulo era muito grande, na capital e no interior, e esses jovens me mantinham na profissão de artista. Ligavam para mim diretamente e eu saia com uma Brasília, ia para os diretórios estudantis, cortando esse Estado umas 40 vezes, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Os universitários me mantiveram artista. Depois me casei aqui em São Paulo, minha mulher trabalhava aqui, fui me fixando. Eu não tinha condições de sair daqui. Na divisão das despesas, muitas vezes, era ela que pagava mais. Ou eu ficava aqui, ou ficava aqui. O que eu faria no Rio? Nem os universitários de lá tinham intimidade comigo.

ÉPOCA - Mas sua música tem muito mais a ver com a multiplicidade cultural de São Paulo do que com o ambiente musical do Rio.
Tom Zé Isso. São Paulo dá mais corda, tem o ambiente múltiplo. Me sinto paulistano nesse sentido. Tudo aqui é uma linguagem, a roupa, o cumprimento de horários, o trabalho mais devotado, a cidade menos solar. Eu não gostava de Salvador. São Paulo tem o sol que eu consigo suportar. A cidade estimula mais o trabalho, a criação e a concentração. Estimula e permite mais. No Rio, todos vão para casa. Em São Paulo, a gente se interioriza.

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Trecho do livro Tropicalista Lenta Luta, de Tom Zé
 

   Considerado um dos maiores compositores da música popular brasileira, o baiano Tom Zé fez algumas incursões pela literatura, escrevendo artigos para jornais, revista e sites. Alguns desses textos estão reunidos em livro que o compositor lança pela Publifolha. Organizado em quatro partes, Tropicalista Lenta Luta traz a história da vida e da carreira do artista. A primeira parte, um texto autobiográfico que dá título ao conjunto, conta algumas dessas lembranças. 25 artigos, que percorrem da música à política, compõem a segunda parte. A terceira reúne todas as letras já escritas em seus mais de 30 anos de estrada. Uma longa entrevista concedida a Luiz Tatit e Arthur Nestrovski, discografia e biografia musical encerram o livro. A composição visual, com fotos e documentos, ajudam o autor a contar a sua história. Leia alguns trechos de Tropicalista Lenta Luta a seguir:

(...)

Eis a instituição física do pânico: o palco. O sucesso de "Maria Bago-Mole", que toda a cidade aprendeu de repente e passou uma tarde cantando na rua, deu-me num calafrio, uma intuição: um dia vou ter de enfrentar um palco. Diante dessa conclusão, tomei uma providência radical:entrei numa Universidade de Palco, a mais categorizada: o conhecido e popular "Homem da Mala".

A feira de Irará é no sábado. Sempre apareciam um ou dois. Semanas e semanas seguidas eu acordava cedo para vê-los chegar e atuar. Ia para o lugar em que trabalhavam. Nas primeiras vezes, tentava adivinhar, na chegada, quem poderia ser um deles. Naturalmente, quando chegavam de Alagoinhas ou de Feira de Santana, num daqueles paus-de-arara, ninguém adivinharia qual daqueles cidadãos se converteria no "artista". Pareciam, todos, pessoas comuns. Chegavam despercebidos. Com o tempo, passei a conhecê-los. Os recursos, a manha e a habilidade, se encapuzavam na máscara de um "zé das couves" qualquer. Na melhor das hipóteses, tinham um jeitão de funcionário público, carregando aquela mala meio grande, como quem vende rendas do Ceará na repartição.

O que havia de radical na minha opção universitária eram certas especificidades daquele gênero de arte de rua. Sabemos que os artistas convencionais – atores, cantores e o próprio leiloeiro da Lavagem –, quando atuam, já contam com um espaço marcado e instituído como palco. E principalmente, o que muito lhes facilita a vida, há o acordo tácito: um apresenta o espetáculo, outros assistem. Já é o esperado. Todos já conhecem a forma e a idéia central. E se dividem em papéis pré-estabelecidos.

Mas na praça não há nada disso. No primeiro momento o Homem da Mala tem um desafio múltiplo e complicado: transformar um território comum, uma pequena área da praça em palco e sua conseqüente platéia. À exigüidade de seus recursos materiais soma-se o desconhecimento dos circunstantes. Entretanto, nas suas mãos, o espaço e até a singeleza do nosso tempo sertanejo estão prestes a sofrer uma metamorfose. Dentro do homem a ignição já foi ligada; já se ensandeceu nele o artista e sua convicção do: "é agora!". Nesse entrepasso, a distância entre o gatilho acionado e o tiro é tão instantânea e extensa como aquela entre a semente e a árvore: uma coisa já é a outra a todo o momento, e a todo o momento a espera é uma eternidade. No local, uma indefinição de corpos e movimentos – a voz alteia –, átimos de incerteza entre os passantes – uma roda em volta, o bater na mala, o abri-la, os frascos de ungüentos mostrados – um cachorro curioso é afastado – alguém compra um – a mãe levanta a criança no colo para poder olhar. Olhos e caras: dentro desse "é" nada mais "foi": espaço, seres, relações, mergulham no relâmpago da transformação. O pedaço de praça sempre foi aquilo. O Arquiteto agiu: a totalidade veio do nada. Sem madeira, pregos, cordéis e cortinas, temos a separação das águas, o fiat lux, e o marceneiro descuidado da gênese do palco está em função.

Revista Época)


Trechos da entrevista de Tom Zé a Arthur Nestrovski e Luiz Tatit, em Tropicalista Lenta Luta

Tom Zé: Quando deixo minha outra coisa, que não quero chamar de maluquice, minha outra coisa entrar no negócio, acabo achando um resultado que é muito melhor do que o correto.

É um reconhecimento dos defeitos. Quer dizer, conheço pessoas que fariam harmonia para uma música em 15 minutos, de chorar de beleza, e dos mais variados tipos; mas eu, eu podia me arrebentar que não saía.

(...)

Meu negócio era saber que não sabia fazer o certo. E quem não sabe fazer o certo, você há de imaginar, fica trabalhando no limite... Tem uma fronteira aqui: o universo "música" está aqui, um círculo, e existe uma fronteira, com coisas que estão fora e outras dentro. A pessoa trabalha nessa fronteira.

No princípio, o que mais me movia mesmo a procurar outra coisa era a incapacidade de me mostrar cantando. Aquilo de eu não ser cantor, de dizer claramente: "Isso aqui não é uma música", mesmo quando eu maquiava um canto, isso era vital.

E teria algumas conseqüências.

(...)

Tom Zé: E eu já ouvira falar muito nos Sertões, nas conversas toda noite na casa de meu avô. Os Sertões para lá, Os Sertões para cá.

Eu tinha trazido três ou quatro gibis [de Salvador] para minhas férias, que eu devia passar estudando. Minha mãe me trancava no quarto à uma e me tirava de lá às seis da tarde. "Agora você estuda, seu vagabundo!" Mas o piso da casa enorme era todo de táboas corridas sobre um porão, quando minha mãe caminhava lá dentro, eu ouvia, escondia o gibi, pegava o livro da escola. Até que acabaram os gibis. E lá em Irará não tem banca de revista, não tem nada. Então vi Os Sertões...

Aquelas partes intermináveis... Para você olhar era bom, não é? Então, comecei: os "terrenos terciários", o início de "A Terra." Quando o viajante se aproxima, parece que os contrafortes da Serra do Mar se tornam uma barreira para que ele não tenha acesso ao continente. Depois essa defensa se arrefece mas realmente só em Pernambuco se vê, estando no mar, uma grande área do continente. Isso eu ainda me lembro, rapaz, de lê-lo uma vez só, porque nunca mais li "A Terra".

Mas lá vou eu saltando, até chegar em "O Homem". Aí, foi uma coisa! No balcão da loja, eu lidava com aquela criatura. E não podia pensar que ia ver uma descrição de algo que estava tão perto de mim. Porque livro, naquele mundo nosso, só falava de lugares distantes e coisas remotas. De súbito, em certo ponto, comecei a desconfiar. Já deu aquela tremedeira nas pernas, não é? "Está falando de uma coisa que eu conheço."

Também não sentia isso só pela escrita, mas pelo cheiro das palavras. Até chegar à conclusão de que o que eu gostava na loja, sem saber, era de aprender uma nova língua. Uma nova tudo, que uma língua tem metafísica nova, filosofia nova, parará, parará. Além de aprender tudo isso, eu gostava daquela coisa de que o sertanejo é um homem que só pensa em cultura. Isso é um negócio que ninguém pode entender, não é? Como é que um analfabeto só pensa em cultura? O sertanejo, o povo do mato; é isso que o Euclides diz.

Revista Época)


Letra da música Vaia de Bêbado Não Vale, de Tom Zé

Primeira edição
No dia em que a bossa nova inventou o Brasil
No dia em que a bossa nova pariu o Brasil
Teve que fazer direito
Teve que fazer Brasil

Criando a bossa nova em 58
O Brasil foi protagonista
De coisa que jamais aconteceu
Pra toda a humanidade
Seja na moderna história
Seja na história da antiguidade
E por isso, meu nego,
Vaia de bebo não vale
De bebo vaia não vale

Segunda edição
No dia em que a bossa nova inventou o Brasil
No dia em que a bossa nova pariu o Brasil
Teve que fazer direito
Teve que fazer Brasil

Quando aquele ano começou, nas Águas de Março de 58,
O Brasil só exportava matéria-prima
Essa tisana
Isto é o mais baixo grau da capacidade humana
E o mundo dizia
Que povinho retardado
Que povo mais atrasado

Terceira edição
No dia em que a bossa nova inventou o Brasil
No dia em que a bossa nova pariu o Brasil
Teve que fazer direito
Teve que fazer Brasil

A surpresa foi que no fim daquele mesmo ano
Para toda a parte

O Brasil d'O Pato
Com a bossa nova, exportava arte
O grau mais alto da capacidade humana
E a Europa, assombrada
Que povinho audacioso
Que povo civilizado

Pato ziguepato ziguepato Pato
Pato ziguepato ziguepato Pato

Tratou com desacato o nosso amado Pato

Viva a vaia, seu Augusto
Viva a vaia, seu João
Viva a vaia, viva a vaia
Viva a vaia com Diós, amor
Porque me soy argentino
Gentino, gentino, gentino   

Revista Época)

Anticanção tropicalista de Tom Zé


O gênio de Irará lança de uma só vez: livro com seus escritos, letras de música e entrevista sobre sua sua vida e carreira, CD Imprensa Cantada e DVD Jogos de Armar

JOSÉ TELES

   O touro mais temido numa arena é o vesgo. A deficiência acaba tornando-se uma qualidade: o toureiro nunca sabe para onde o animal está olhando. As pernas tortas de Garrincha, deficiência que o ajudou a criar dribles desconcertantes. Antônio José Santana Martins, Tom Zé, baiano de Irará, da classe de 1936, é, ao mesmo tempo, o touro vesgo e o Garrincha da música popular brasileira. Sua incapacidade de emocionar com belas melodias foi contornada quando aprendeu a reinventar a música popular.

   Desde um dia em julho de 1955, quando quis cantar uma canção para a primeira namorada e não conseguiu emitir uma única nota, Tom Zé descobriu a própria deficiência para as canções convencionais. “Naquele dia desisti de música. Minha carreira entrou em crise antes de nascer. Abandonar foi o que resolvi. Nunca mais fiz uma canção”. A confissão está no livro Tropicalista Lenta Luta (Publifolha, 287 páginas, R$ 39), que ele acaba de lançar, simultaneamente com o disco Imprensa Cantada e o DVD Jogos de Armar (ambos pela Trama). Nada mal, para quem, tal um Matias Pascal, o personagem de Pirandello, amargou uma “morte” precoce.

   “Eu era muito acanhado, daqueles meninos que apanhavam dos colegas na escola. Nessa minha primeira tentativa de fazer música sai derrotado. Foi a partir daí que me surgiu essa coisa de fazer a anticanção. O meu livro abrange um espaço de tempo que vai de quando não consegui cantar para a namorada até um dia em 1960, quando me apresentei na TV da Bahia, no programa Escada para o Sucesso com uma música chamada Rampa para o fracasso”, conta Tom Zé, em entrevista por telefone.

   A verdade tropical de Tom Zé partiu de um texto de 30 laudas encomendado pela Folha de S. Paulo, e complementa-se com letras de todas suas composições, textos escritos para diversas publicações, e uma esclarecedora entrevista, conduzida por Luiz Tatit e Artur Nestrovski). Não se espere uma história cartesiana do tropicalismo, ou da carreira de Tom Zé. Tem-se aqui muito mais uma análise do que o levou à composição, ou melhor, à des-composição: “Passou-me despercebido que a partir de certo momento não era mais a música que eu odiava e sim a grande perda que sairia de braço dado com a nova idéia. Uma vez que para praticar uma des-canção, uma anticanção, eu teria que renunciar à beleza – beleza ligada a tudo que era do canto e do cantar”.

   Tom Zé passou a fazer a antimúsica utilizando-se do verbo no presente do indicativo, abordando seu universo, o das pessoas de Irará (seu primeiro, e censurado sucesso, foi inspirado por Maria Bago-Mole, uma moça dadivosa, que cumpria a tarefa de iniciar sexualmente os rapazes da cidade). Para se livrar do acanhamento, Tom Zé conta que se espelhou no “Homem de mala”, vendedores de mezinhas, com as quais prometem curar a teratologia de males que aflige o ser humano. “No primeiro momento o Homem da Mala tem um desafio múltiplo e complicado: transformar um território comum, uma pequena área da praça em palco e sua conseqüente platéia”, explica.

   Doutor em música, aluno de Koellreutter, desprovido dos mesmos dotes de cantor de rádio de Gilberto Gil e Caetano Veloso, a partir de 1973, Tom Zé enfrentou 15 anos de ostracismo. Em alguns momento esteve para antecipar o ressuscitamento (que só aconteceria em 1988, pelas mãos do americano David Byrne), mas se desentendeu com Mariozinho Rocha, um dos poderosos da Globo: “Eu fui de uma covardia! Poderia ter colocado minha música no festival da Tupi. Quem sabe o Brasil não teria tido a primazia de lançar para o mundo os instrumentos que construí durante minha primeira morte?”, pergunta.

   Instrumentos semelhantes foram elogiados quando mostrados por um grupo alemão, que se apresentou no Instituto Goethe, em São Paulo. Eles hoje são parte dos shows de Tom Zé (e detalhados no DVD). O início foi uma enceradeira emperrada. Em seguida, foram incorporando aparelhos domésticos a inusitada cozinha rítmica: “Eles me inspiraram a fazer o Estudando o Samba”, ressalta. Este foi o disco que David Byrne, então no Talking Heads, descobriu num sebo, no Rio. Imediatamente procurou o “falecido” Tom Zé, e lançou o baiano nos Estados Unidos. Primeiro com a coletânea, The Best of Tom Zé, e depois com o antológico The Hips of Tradition. Em 1993, o baiano de Irará “ressuscitou”, naconal e internacionalmente.

   Foi assim que pôde, em meio à crise braba da indústria fonográfica, esnobar: leia o livro, veja o vídeo, ouça o disco. O livro já se comentou, o vídeo registra o show Jogos de Armar, o CD reúne canções circustanciais, uma herança dos folhetos de feira, que registram o fato assim que acontecem: “Foi daí que comecei a fazer este tipo de música. Copiei também um sujeito chamado Zé Fidélis, que fez muito sucesso com paródias de sucesso da época. Algumas músicas são novas, outras do meu tempo de ostracismo, tenho um baú cheio de coisas dessa fase”.

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Jornal do Commercio-PE) 

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