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A luta corporal de Carrero

05-06-2008

 

O escritor lança hoje seu novo livro, Ao Redor do Escorpião... Uma Tarântula?, na Pernambooks

SCHNEIDER CARPEGGIANI

   Há quem chame, justa ou injustamente, o orgasmo de pequena morte. A partir dessa relação, Raimundo Carrero construiu o seu novo romance, Ao Redor do Escorpião...Uma Tarântula? – Orquestração Para Dançar e Ouvir (Iluminuras), que o escritor define como uma luta “da carne com o sangue. Do espírito com o corpo.” Ou mesmo como “uma grande trepada”. O livro tem noite de autógrafos hoje, às 19h, na Livraria Pernambooks.

   A trama do romance é quase toda reduzida em apenas um quadro, que se repete até o final: Alice (a tarântula), sentada nua em uma poltrona, aponta um revólver para o marido, Leonardo (o escorpião). Ele, fingindo dormir após uma noite de sexo, espera que a mulher decida entre a sua vida e a morte.

   “Sempre imaginei a relação sexual como uma luta pelos espaços do corpo e da mente. Os dois duelam o tempo todo. É o momento do gozo supremo e da agonia. Por isso imaginei que o livro começaria justo quando a luta de pernas e braços terminaria e eles relaxariam enquanto esperavam o sono. Acredito que ali as mentes estão em disparada, os questionamentos afloram, as vidas são passadas a limpo, num silêncio que se enclausura no quarto, ao ritmo da respiração, no sangue que procura repouso”, realça Carrero.

   O formato inusitado do livro, focado todo na tensão de um possível crime passional, surgiu da avaliação que Carrero fez do que ele havia escrito até então. “A construção lenta da minha obra levou-me à investigação de técnicas literárias que me seduziam desde o começo. Feito um exame daquilo que produzi ao longo dos anos é possível observar que essas técnicas vão sendo tratadas desde o mundo psicológico de A Dupla Face do Baralho, quando traço um quadro de remorso e de alegria do personagem central, o pêndulo da luz e do escuro, até chegar em Sinfonia para Vagabundos, onde as odes, os discursos, os salmos, o meta-romance, a aparente desarmonia interna levam a uma melodia interior dos personagens.” “Ao Redor do Escorpião...Uma Tarântula? é apenas a seqüência, digamos, radicalizada, de tudo aquilo que trabalhei em minha obra”, completa.

   A ARANHA CONSTRÓI A TEIA – O trabalho de composição do novo livro de Carrero foi lento e começou em 1998. Nesse meio tempo, o autor ganhou o Prêmio Jabuti de 2000, por As Sombrias Ruínas da Alma, e abortou a idéia de um romance policial. O ‘aborto’ o levou a radicalizar na composição de um romance, o que resultou em Ao Redor do Escorpião...

   “A história desse romance é muito longa e começa em novembro de 98, quando fiz a primeira redação sob o título: Natureza Perversa. Ali eu já tentara uma disputa psicológica entre os dois personagens que se amam com um grande ódio, com muito cinismo e que ainda assim é amor. Continuei com Comigo a Natureza Enlouqueceu, mas fiz poucos avanços. Daí cheguei a O Delicado Abismo da Desordem, uma leitura tradicional de um romance policial, que foi condenado por Marilena, minha mulher, pelo fato de faltar convencimento e técnica apurada. Então, passei para a radicalização e tratei de realizar um mínimo de enredo.”

   Para Carrero, é necessário que os escritores se mobilizem contra as regras fixas que ditam os rumos de mercado da literatura contemporânea brasileira. “Ultimamente, a literatura está voltada unicamente para o consumo. Para uma obra de resultados, feito sindicalismo neo-liberal. Publica-se o que o leitor quer ler - imaginam os editores - e estamos conversados. Mas o que é mesmo que o leitor quer ler? Na orelha do meu livro, a editora diz textualmente que se trata de um desafio, de uma provocação. Não desdenho outro tipo de leitor, mas gosto também de provocar, de desafiar, de exigir”, ressalta.

Serviço:

Lançamento de Ao Redor do Escorpião... Uma Tarântula? – Orquestração Para Dançar e Ouvir: Hoje, às 19h, na Pernambooks (Rua Barão de São Borja, 186, Boa Vista)

(© Jornal do Commercio-PE)


Leia entrevista com Raimundo Carrero


 

JORNAL DO COMMERCIO – O autor está sempre em busca de uma dupla atenção: a do leitor e a do editor. Como está a sua relação com a editora Iluminuras, a mais estável em sua carreira. Você tem recebido a atenção que acha que merece. É uma relação estável e já muito demorada. No ano que vem já são dez anos.
 
RAIMUNDO CARRERO –
Evidentemente todo autor exige atenção de seu editor e se pressupõe que todo editor quer dar atenção a quem edita, mas não tem todo o tempo para dedicar-se exclusivamente a um autor. E aí se cria algum conflito, alguma irritação. Nós temos que ir discutindo, às vezes um é malcriado com o outro. Isso é natural em qualquer convivência. Eu tenho tido boa atenção de meu editor, Samuel Leon, e ele tem dito e demonstrado que gosta do meu texto e a gente vai tocando o barco pra frente. É sempre problemático. Não é fácil para um autor conviver com o editor, mas também não é nada fácil um editor conviver com um autor. É o que me deu maior atenção apesar de todos os problemas. Houve um instante em que Samuel acertou publicar minha obra completa.. Ele começou em 2001 com Sombra Severa. Intercalando com um original inédito. Mas eu não entreguei o original na época certa, foi uma culpa minha e por isso Maçã Agreste, que deveria ter saído no ano passado, não foi republicado. Eu não gostava do resultado do que estava escrevendo. Escrevi o livro várias vezes. É meu livro mais complexo, mais trabalhado, que me tomou quatro anos de trabalho, o que não é muito comum em se tratando de um autor brasileiro. Tem um momento em sua vida que tem que ser definitivo. Eu não gosto de autores amadores, de pessoas que escreve porque é bom, interessante , porque sai em coluna social. Isso é ser irresponsável. O caminho da arte, a literatura, tem que ser visto como algo tremendamente sério e devotado. Não se pode imaginar você um profissional porque acha engraçado, ou porque lhe dá um retorno financeiro ou social. Eu ainda tenho a literatura como um campo a ser devassado com muita dedicação, muito amor e muita fé. Então eu passei quatro anos trabalhando o livro. Começou como um livro rápido, policial, que se chamaria Crime Perfeito. Meu filho não gostou muito do título porque existe mais de dez filmes com esse título. Depois mudei para Natureza Perversa e em seguida para Comigo a Natureza Enlouqueceu e depois para o Delicado Abismo da Desordem. Enfim, até achar o que eu chamo de pulsação narrativa, que é o momento em que o autor se encontra com o segredo e com o mistério de sua obra e com o mistério e o segredo do leitor, isso demorou quatro anos.
 
JC – Ao mesmo tempo que você dá um passo ousado na escritura do livro, ao abolir as normas recorrentes de pontuação, ao utilizar o travessão como respiração do autor e também do pensamento do escritor e revelar os vãos e desvãos do personagem, as dúvidas do personagem, você impõe um rigor de leitura para o leitor. Você resolveu dar esse passo de ousadia, que poucos autores ousaram - na língua inglesa um Joyce, na italiana um Calvino, na espanhola a manipulação de jogos de Cortázar, na brasileira um Guimarães Rosa, uma Clarice Lispector buscando o instante em que se irrompe o pensamento e a fala, ou um Ferreira Gullar na sua luta corporal tentando a destruição da linguagem Osman Lins com sua arquitetura literária de Osman Lins. Você achar que isso é possível porque é um autor de poucos leitores ou porque resolveu arriscar independentemente disso?

RC – Você precisa encontrar um eco, um espelho no leitor, talvez venha daí o nome do personagem central, Alice. Os formalistas russos chamavam a isso de leitor inteligente. Uma das perguntas essenciais que Samuel me fez quando o livro chegou à Iluminuras foi: Você quando atinge seu melhor momento como autor você quer mudar tudo? Perder os leitores que você tem, jogr pela janela todo um cartaz que você formou entre a crítica. E eu respondi: no dia em que eu passar a ser um autor medroso, eu prefiro não ser autor, No dia em que eu não puder formular a minha própria obra com trabalho, esforço e sacrifício eu não vou escrever mais nada nem publicar mais nada. Ele achou que a resposta era conveniente e me disse que me admirava muito como autor porque eu não fazia concessões nem à crítica nem ao leitor. Autran Dourado, que é um dos autores que mais admiro diz uma coisa que é mais ou menos: o escritor corre sempre o risco de ser um personagem da crítica. A crítica diz que ele é bom nisso, então ele vai ser bom nisso para o resto da vida, como é o caso de Jorge Amado, que saio se repetindo a vida inteira porque a crítica e os leitores diziam que aquilo é que era o caminho dele.

Como não levo em consideração a profissão de escritor, embora eu tenha vivido mais como escritor do que como jornalista, no sentido que eu vivo mais do que ganho com minhas oficinas, mesmo com os problemas que há em viver com pouco dinheiro, não vivo como operário, mas daquilo que escrevo, dos artigos que faço, mesmo assim eu não poderia ceder. A princípio seria apenas um livro policial, não como Agatha Christie, mas como Edgard Wallace, com sensação, com coisa boa, crime. À medida que escrevia, sentia que tinha em minhas mãos um potencial muito grande para jogar fora. Além disso, a oficina me deu um largo campo de investigação literária (acho que quem aprende mais ali sou eu, porque questiono, procuro, busco) Eu estava na terceira ou quarta versão desse meu livro e um aluno, chamado Lula, da banda A Mula Manca e o Cavaleiro da Triste Figura. Tinha passado o dia escrevendo e encontrei com ele à noite e ele disse que eu estava escrevendo como quem faz um improviso..
 
JC – Ao levar a linguagem do jazz para a literatura você não complica a recepção por parte do leitor? Uma vez que o ritmo da leitura não é o mesmo da música. De repente, se você encontrar um crítico mais esquemático ele decupar o plot da história, a tentativa da consumação da morte de Leonardo por Alice, ele talvez encontre no livro um corpo muito esguio, ele pode achar que houve mais uma tentativa de jogo e despiste e não compreender que houve uma busca, uma investigação das vozes que você faz quando está em silêncio no quarto ou numa cena do crime. A música tem um fraseado próprio que não é fácil ser incorporado pela literatura, a percepção da leitura é outra.

RC – Você está correto, eu também estou correto. A música é o único segmento artístico que não precisa de ninguém, não precisa nem do músico. É a única arte que independe do homem, não depende de um olhar, de uma palavra... A música depende apenas da respiração e é isso que eu trabalho . É por isso que eu digo que a literatura responde pela pulsação narrativa do personagem e não do narrador. E isso muda da minha obra. Quem não é o narrador, mas o personagem. Quem define é o personagem. Você vai encontrar a respiração dele.

Tudo ali se resume em uma trepada, na relação sexual durante uma noite na vida de um casal. Eles estão querendo se matar, estão querendo viver. A relação sexual é uma relação de morte e vida. Você leva sempre para o lado de Alice, no qual há sempre um jogo, com Leonardo dormindo e Alice a observá-lo.
Isso até a metade do livro. Depois o jogo se inverte. É um jogo de sutileza também, porque na verdade a literatura é um grande jogo. Nesse sentido você falou muito bem em Cortázar, que também disse que se não fosse escritor, gostaria de ser músico. Eu sou o maior músico fracassado na história da música, em qualquer época do tempo. Eu sempre quis ser músico, desde os doze anos eu já era músico. Tocava requinta, depois toquei clarinete , depois toquei sax tenor, depois toquei sax alto e voltei para o tenor. Tenho discos gravados. Muita gente não acredita, mas tenho. Minha grande mágoa é não ser um grande improvisador, embora eu já eu brinque com os amigos dizendo que quem improvisa é quem não conhece música. Como se ser músico fosse ser um gramático da música, que soubesse ler partitura, só copia. Quem improvisa vai inventar. Queria ser um Dave Brubeck, um Dizzie Gillespie... O velho Charlie Parker já tá bom.

Na literatura também ocorre muito isso, pelo menos em meu espírito, em minha alma, na forma que concebo a obra de arte. Por isso que muito mais do que uma experiência, é o impulso da minha alma, do meu coração que está sendo colocado naquele livro. Agora mesmo estou escrevendo outro que eu não sei parar. Na verdade estou escrevendo dois. Um chama-se o Segredo da Ficção, que é um livro sobre técnicas de literatura e de escrever romance. O outro chama-se O Amor Não É Feito de Bons Sentimentos, que tem um dos meus personagens recorrentes, que se chama Leonardo. Dessa vez eu vou contar a história de como ele estuprou e assassinou a própria mãe. Nome: Leo, de leão, pelo impulso feroz dele e nardo vem de bala, de tiro, antigamente se chamava de nardo ou dardo...
Meus personagens são todos metafóricos, sempre tem alguma coisa por trás. Tudo não passa de uma tentativa de tornar verídico Tudo o que eu faço é contra a falsidade. Na verdade, a falsa literatura, contra o falso comportamento, a hipocrisia humana, a falsa história para agradar o leitor. Enfim, o mundo é uma extraordinária falsidade.
 
JC – O núcleo, o seu universo também é falso, é baseado em um real que foi construído pelo autor.

RC – O real não existe, ele é constituído de pontos de vista de um possível real. Como o leitor vai fazer a travessia no seu romance? Ele vai driblar os fluxo recorrentes da linguagem, para busca linearidade da leitura ou ele vai mergulhar no jogo, nesse pré-orgasmo do embate que você descreve. É um embate entre duas pessoas num momento de conflito e de definição. Como vai sair o leitor depois de enfrentar a Tarântula? Vai ser ferido? O leitor só serve para sair ferido, senão não é literatura. Colocar diante do leitor a dor que o autor tem. Não consigo conceber a literatura como divertimento. As pessoas falam muito disso. Até um amigo meu, muito leal, Marcos Santarrita, que é um grande tradutor, romancista, , me disse assim: estou decepcionado com você. E nesse sentido, vai mesmo, porque deu não encaro a literatura como um divertimento, como exibição do poderio norte-americano, de força e de poder da sociedade. Tebnho que ver a literatura como um aproximação da dor e da angústia humana, que ele sofre no sentido tradicional, da injeção da cirurgia, É preciso que ele carregue na alma a dor que ele precisa. SE quer a literatura como lenimento, que vá ler Saint Exupery, Paulo Coelho e outros autores que fazem bem pela bobagem que podem dizer. Meu caminho não é esse. Até que eu respeito quem quer contar uma história assim porque é legal contar uma história, porque quer se divertir. A arte não foi feita para se divertir. Isso é um conceito de arte do final do século 19 e com uma abrangência muito grande no século 20, que colocou as artes como divertimento.
 
JC – Esse momento vai levar a um conflito semelhante ao que Ferreira Gullar teve depois de A Luta Corporal, que o levou a escrever Roçeiral, que é a destruição da linguagem. Se você insistir nessa mesma linguagem, vão dizer que você criou um artifício e que está se repetindo, que ficou refém de seu próprio estilo.

RC – Estou muito preparado. Uma das vantagens de envelhecer é essa., de você amadurecer não só a sua obra como a reflexão que você tem sobre ela. Eu não tenho mais tempo a perder. Na verdade, eu estou em Pernambuco, um Estado que desenha da literatura por todos os motivos que nós conhecemos, desdenha do campo da arte. Nenhum Estado assumiu melhor o brega, o kitsch, a besteira do que Pernambuco. Não existo para isso não. Além do mais eu não tenho medo de fracassar não. Digo isso todos os dias: a literatura é a arte do fracasso. Tem que fracassar mesmo. Se você não tinha medo do fracasso, agora é que não tem.
 
JC – Você tem um pé atrás porque não sabe coo será a recepção do novo livro. Ao mesmo tempo escreve um novo livro, você está buscando uma nova linguagem porque acha que Ao Redor do Escorpião uma Tarântula? foi uma experiência única?

RC – Pode ser. Acho que não. No romance novo que estou escrevendo há muitos caminhos que posso explorar e avançar. Não tenho problema de arriscar na minha criação como tamb+em não tenho problema com a crítica. Não existe no Brasil um raciocínio crítico linear. Cada pessoa escreve o que quer, escreve o que não quer, Se ele sai da USP é um autor preparado para exigir forma e conteúdo. Se ele sai de Pernambuco até outro dia era preparado para exigir a forma, se ele sai de uma universidade do Rio de janeiro ele sai mais preocupado com o sucesso do que com a forma e o conteúdo. Esse é um assunto muito complicado, delicado, até porque não existe um pensamento crítico no Brasil, não tem uma forma, o que pode ser muito bom ou pode ser muito ruim. Particularmente eu gosto assim como está. O que pode acontecer é que se eu caio na mão de um crítico oriundo da USP, eu estou atolado. Se eu pegar um crítico oriundo de Pernambuco, ele vai dizer que eu sou um rei. Se eu pegar um crítico da Universidade Federal do Rio de Janeiro ele vai dizer nem tanto, que eu precisava tomar sol em Copacabana, passar um dia em Ipanema. Enfim, não dá para pensar em crítica. Só tem uma maneira de pensar que é em si mesmo. Você tem que investir, lutar e acreditar no que está fazendo. Então eu fiz uma experiência que eu sei que não é fácil para o leitor, possivelmente eu não vou ter muitos leitores.
 
JC – Em Se um Viajante numa Noite de Inverno, Calvino busca estabelecer um diálogo com o leitor, chamando-o a participar da aventura do romance, uma cumplicidade. Já neste seu novo romance, você provoca o leitor a entrar num jogo de linguagem provocante. Você acha que ele vai entrar neste jogo?

RC – Cada livro é uma obra diferente, que busca uma posição do leitor, uma disposição. Como professor de literatura, eu tenho preocupação com o leitor a partir da teoria da recepção, como escritor não. A obrigação do escritor é construir o leitor e não o leitor construir o autor. Se você constrói o leitor, ele esta preparado sempre para a sua obra. E você terá sempre leitores se você é honesto, sincero com o seu próprio trabalho. Obrigatoriamente envolvido no seu próprio trabalho. E eu tenho a convicção a mais absoluta.

Outro dia eu vi uma frase que me estarreceu, num programa de vestibular, no Contato, quando foram analisar a prova, a professora disse: Todo mundio sabe que Carrero é um autor difícil. Comecei a ri. Se é uma coisa que eu não sou é difícil. Tudo bem, eu trabalho com metáforas, com movimentação de personagem, trabalho muito tecnicamente, isso eu também concordo, mas não sou um autor difícil. Sou até fácil demais. Eu ofereço minhas metáforas e minhas interpretações com enorme facilidade.

A Tarântula? vai dar dor de cabeça ao leitor. Não tenho a menor dúvida disso. Como é que a gente pode ser um aturo verdadeiro se tem medo de escrever as coisas que são sinceras para você? O risco é mais do leitor do que meu. Eu não corro nenhum risco. Se o crítico não entende nada, te destrói, diz: esse cara é louco, não tem anda a ver, isso não é sério.
 
JC – Você escreveu várias versões do livro. Tem essas versões guardadades ou as destruiu?

RC – Guardei todas as versões. Essa é a melhor de todas. A primeira ficou muito confusa. A segunda eu mostrei para a minha mulher - a médica e poeta Marilena de Castro - e ela disse assim: está muito bom, mas não é você. Quando ela disse isso, fiquei muito preocupado. Então eu usei toda aquela força que eu tinha para mexer com a obra, para renovar, questionar me deu vontade de refazer. Eu não esperava que isso acontecesse. Eu estava com medo dela. Eu terminei, mas achei que tinha aplicado tudo o que aprendi com literatura, todas as técnicas, mas achava muito frio.
 
JC – Você pensa em lançar essas versões?

RC – É uma boa idéia. Mas são versões imperfeitas. A versão O Delicado Abismo da Desordem é uma versão convencional, até porque só ocorre o enfrentamento marido-mulher. A outra é mais policial, com crimes, pesosas degoladas, perseguições, suspense, Foi uma experiência muito boa no sentido de que , pela primeira vez na minha vida, me vi sem teto.

Vou fazer uma revelação a você que não faria a muita gente, se bem que ao dizer para você, estarei falando para milhares de leitores: eu me separei depois de 31 anos de casado e não tinha onde morar. Comprei um apartamento que vão me entregar Deus sabe lá quando. Então me restou morar na casa da minha irmã, lá no Janga, o que significa uma distância incrível do meu local de trabalho como jornalista, de onde dou minhas oficinas e dos lugares que freqüento. Só que eu não tinha mais computador, biblioteca, onde sentar. E o processo de criação de Ao Redor do Escorpião uma Tarântula? se deu justamente nesse momento bastante difícil.

Sou hoje dependente do computador. Escrevo muita coisa a mão, mas 90% no computador. Detono o pensamento na mão. Depois que ele chega, vou para máquina. Às vezes, quando chego na décima página, vi que já contei muita coisa, mas que tem outras para serem contadas e eu vou entremeando, corto aqui e boto lá mais adiante. Fui escrevebndo versões. Essa a que eu cheguei deve ser a quinta. Escrevi mais de mil páginas para chegar a 110.

Autran Dourado diz insistentemente: “Se preciso escrever meu livro, três quatro vezes, porque é que o leitor vai ler tão rápido. Ele precisa ler quatro vezes também.”
 
JC – Se fosse comparar seu livro a um estilo ou gênero, o que ele seria?

RC – Seria algo como um cubismo literário, um free jazz. Na verdade, eu fui um músico muito intuitivo, porque eu não conseguia ler partitura bem e comecei a me decepcionar comigo. Só recentemente eu soube que Louis Armstrong não lia partitura. Os amigos tocavam a melodia para ele e ele acompanhava e depois fazia os improvisos. Então se Armstrong fazia isso, imagine eu. O grande músico para mim era Charlie Parker. Tenho até um conto chamado The Bird (apelido do saxofinsta norte-americano, morto de overdose de heroína, aos 36 anos), em homenagem a Parker, que foi assassinado pela sociedade americana. Eu acho que os drogados são vítimas da sociedade.

Quando eu penso em Armstrong, me dá uma alegria imensa saber que ele não lia partitura e vi então que eu não era tão burro. Comecei a refletir que improviso era exercício de preguiçoso. Então se meu novo livro tem algo de cubismo, de invenção, da criação, me da muita fé ao saber que minha carreira aos 55 anos de idade deu um pulo. Para trás, para frente, para o lado, eu não sei, não tenho condições rigorosamente de responder. Nem eu preciso que a crítica diga que é bom ou ruim. Eu preciso fazer e me dá bem. No passo seguinte, eu não sei o que vai acontecer.
 
JC – Você tem mais uma vez como balizamento de sua escritura a morte. Como se fosse um leão que sai em busca de sua caça. Ou um caçador que sai para matar um leão por dia. Porque a morte está tão presente em tudo que você escreve. Há sempre um crime em potencial rondando, um dilaceramento maior que a compaixão.

RC – É meio doloroso responder isso para mim. É difícil começar a pensar nisso assim. A primeira morte que marcou a minha vida, e pode ser por aí, foi a da minha mãe, quando eu tinha 12 anos. E você sabe que no Sertão a gente tem que assistir a morte. Não tem isso do menino dizer não quero ir, não quero ver. Eu me lembro que eu estava dormindo e tive que me levantar. Eu perdi minha camisa, tive que procurar porque não sabia onde ela estava e tive que vê a morte de mamãe como estou vendo você aqui na minha frente. E anos depois tive que ver a morte do meu pai do mesmo jeito. Tive que ficar ao lado da cama acompanhando a morte dele como se acompanha qualquer outro ritual. Houve também um episódio que marcou a minha vida. Eu caí numa cacimba quando tinha três ou quatro horas e passei 24 horas lá, com todo mundo me procurando, sem me achar. Não sei se aquilo me deu uma sensação de morte tão poderosa, por não poder sair do lugar, por não poder vencer as barreiras que pode ser também. Tenho muita dificuldade para fazer essa investigação, digamos até certo ponto psiquiátrica, para saber quem sou eu e o que é a morte em minha vida. Com crteza a morte é uma coisa muito poderosa em minha vida e que me acompanha por toda a vida. E eu, se pudesse, seria uma assassino, se pudesse seria um suicida.
Porque até a paixão é sofrimento, uma violência, um defloramento, a consumação traz a dor, talvez pelo vazio do orgasmo. Eu gostaria de estar mais preparado para responder essa pergunta mais aprofundadamente, até porque você vai se preocupando com a vida, com uma série de coisas. O que me preocupa, que me carrega e me impulsiona é a capacidade da irrealização, como se isso nunca fosse acontecer e que de repente fossem acontecer agora. Ou eu resolvo agora ou não resolvo mais nunca. Não tenho nenhuma perspectiva de futuro. Não penso no que vou fazer amanhã, até porque a vida fica escura dentro de mim, muito fechada.
 
JC – A saída para você é pela fé?

RC – Com certeza. Sou um homem fervoroso, gosto, me dou muito bem com Deus e Deus se dá muito bem comigo. Eu rezo todos os dias. Vou ao terço. Tenho grande fé em Nossa Senhora e em minha mãe. Até hoje eu tenho um diálogo com ela muito forte. Me inquieta muito o fato que alguns espíritas que conversam comigo dizem que quem me protege é minha mãe, que quem está comigo é a minha mãe. Não é a primeira nem a décima vez que dizem isso. Eu não compareço a eventos espíritas, mas sempre que encontro com eles, ele falam disso. Isso me atormenta muito.

E por que apesar do sofrimento e da morte andar lado a lado com seus personagens eles não se acovardam? Vamos voltar um pouco ao passado. Talvez nos anos que eu vive, de minha formação.

Eu vivi num estado de violência minha infância toda. Embora Salgueiro fosse uma cidade tranqüila, eu vi pessoas sendo assassinadas a facdas na minha frente. Vi pessoas chegando no quintal de minha casa inteiramente dilaceradas, cortadas da cabeça aos pés. Já vi pessoas com todos os ossos quebrados por caldeiras e isso tudo na minha infância. Além disso, fui repórter policial durante muito tempo. Então não sei se é atavismo, mas a morte por violência esteve sempre muito perto na minha vida. Me inquieta muito esse assunto e essa resposta, porque a vida. A violência é algo muito forte em minha vida e interiormente eu sou uma pessoa muito violenta. Exteriormente não. Trato bem as pessoas, sou amigo, me controlo, as pessoas que convivem comigo me consideram de boa convivência, agora, muito vezes eu só acredito que a saída para as coisas é a violência.
 
JC – Você não consegue ver a literatura como uma busca da felicidade?

RC – É a busca da realização sim, mas da felicidade não, mesmo se você tem o reconhecimento do público. Só quando estou escrevendo. Publicidade para mim não representa nada, nenhum orgasmo. Só me coloco em expectativa diante da vida, mas escrever o livro é como morrer, não tenho nenhuma esperança.
 
JC – Você se sente acuado pela forma de encarar o mundo, na hora de escrever?

RC – Sinto-se acuado não pelo Recife. Mas pela vida. Sou pessoa que vive acuda pela vida. Viver para mim é complicado, é pesado. Sou uma pessoa que carrega um doido nas costas, eu tenho que conciliar meus problemas com minha loucura. Sou uma pessoa que tem medo de elevador, de escuro, de gente (muita gente me maltrata)... viver para mim é um tormento muito grande. Eu não tenho nenhuma felicidade de viver, não.
 
JC – Por que não tenta outra forma de vida, não insiste em buscar outra saída?

RC – Desde que eu pudesse escrever, não tinha problema não. O que me estupra, me escandaliza é ter que colocar a minha coisa em favor de coisas que não me interessam. A experiência de viver nos Estados Unidos, que foi breve, com bolsista. Já tive bolsa vitae e tudo, mas obter qualquer coisa é muito difícil e pessoas como eu não podem ficar esperando que as coisas aconteçam, , então isso me dá uma carga muito grande. E ao mesmo tempo essa carga é para mim uma benção divina por que só a partir dessa força que eu tenho que fazer é que eu consigo escrever. A minha força vem da força de ter que viver. Viver é irritante, é complicado.
 
JC – Você se deixa se influenciar pela literatura dos outros. Tem ligo algo interessante?

RC – Descobri um autor muito bom, que é o Ismail Kadaré (de Abril Despedaçado) e aí me deu alegria muito grande, porque no Brasil, ultimamente, só é bom o escritor que faz ironia. Isso é uma graça ne. Se você não consegue ser irônico aí não é escritor. Para ser escritor de sucesso tem que fazer uma graça, um bucejo (?). E eu não tem nada disso. Daí descobri Kadaré que é um autor trágico no sentido mais aristotélico, assim como me dá a sensação de Dostoiévski, Kazantisakis. Mas no Brasil moderno ou você faz ironia ou você briga com a frase ou faz graça. É um modelo que se tem na mídia. Quando você lê uma crítica, a primeira frase que tem é: ele é muito bom, porque é irônico. E a ironia é apenas uma das mais remotas qualidades de um escritor. Eu não tenho que ser irônico não. Tenho que ser escritor, mas como o brasileiro é um tipo de gente que tem medo de viver, alardeia que gosta de viver, mas não gosta, daí esse sentido da festa, de todo fim de semana ter uma programação, isso é medo de viver O homem que não consegue viver consigo próprio é porque tem medo de viver. Ismail Kadaré comecei a me sentir um escritor menor, um escritor derrotado, proque eu não sou escritor irônico. Pode haver uma ironia e outra. Mas a vida pra mim é uma grande derrota. Eu não tenho porque fazer graça. Aí fiquei nesse drama. As pessoas falam muito isso. Por exemplo, o crítico de Veja, que resenhou Sombra Severa, por exemplo, elogiou o livro, disse que eu era um bom escritor, mas que faltou um pulo para a política. Eu tenho escrito textos que envolve política, mas não é aquele texto. E por que eu teria que por política ali. Então isso tem me chateado. Os críticos brasileiros hoje tem uma receita. Se você não segue aquela receita, não é considerado um bom escritor. E a receita do crítico geralmente não é a dele, é a do povo do bar. Aí não tem quem aguenta.
 
JC – Porque você optou por um cenário tão cru quanto um quarto de motel?

RC – História de um casal que deseja se matar. Que se odeia com um grande amor. Que tem ternura pelo amor e que tem uma grande ternura pelo ódio. É a exorcização do caráter através do amor. Depois de várias incursões Carrero encontrou os dois amantes muito enjaulados, tentando compreender um ao outro não pelo outro, mas por si, tentando compreender as emoções, o que é muito da natureza humana, pelo seu ponto de vista e não pelo outro. O livro foi carregado nessa direção. Os dois gostariam de se odiar eternamente, até o momento que achei que a relação sexual era a melhor maneira de se amar se odiando, porque ambos estão se devorando e devorando o próximo. É uma cena bárbara. Estamos naquele momento derrotando e sendo derrotados. Não adianta refletir de outro modo. E eu achei que era o caminho naquela hora. À maneira que fui envelhecendo, eu comecei a considerar que o homem é a sua alma. Assim como tem aquela história da queda na cacimba, que foi onde eu descobri que seria escritor. Apenas demorou muito. Que havia muito mais barulho dentro da minha alma que fora dela. E eu acho que estou sendo conduzido na minha maturidade para esse aspecto. A vida é muito atormentada e sobretudo solitária. É uma enorme dificuldade acreditar na comunhão de seres. Tento compreender isso do ponto de vista religioso, embora Cristo seja para mim uma extraordinária contradição. Ao mesmo tempo em que Cristo solicitava o reinado do amor, ele dizia: depois de mim, aparecerá a espada. Filho não ficará com pai, filha não ficará com mãe. E esse versículo bíblico é o que mais me atormenta.. Embora eu ache que não há amor na face da terra. Há tolerância. O amor é definitivamente e radicalmente humildade. Não tem humildade, não tem amor. Nem eu, nem meu pastor nem minha igreja nem o papa.

Infelizmente não há, apesar de eu ser católico, ser cristão eu tenho problemas com o catolicismo. Meu contrato é com Jesus Cristo. O papa a gente pode dispensar. Meu contrato é com o verdadeiro. Até porque o papa sabe disso, não que eu tenha mandado um telegrama para ele (risos), mas no sentido mais absoluto do comportamento humano. Acredito na amorosidade e na fraternidade sim.

JC – Que referências você buscou em seu novo romance?

RC - Fui buscar em Lewis Carroll, de Alice no País das Maravilhas, o personagem seria inicialmente chamdo Sofia, mas Sofia é a metáfora da sabedoria e era justamente o oposto. Alice pelo envolvimento e pela metáfora literária que é a de você entrar dentro de si mesmo e encontrar seus problemas e dificuldades e acompanhar o coelho. Ao acompanhar o Coelho você entra na alma e não sai dela E Leonardo é aquele que é forte, vigoroso, mas no fim das contas é covarde. É um personagem que me acompanha bastante, tanto que o próximo personagem será Leonardo.

Embora eu tenha um personagem melhor. Jeremias, de Maçã Agreste, que é um personagem bíblico, profético, que reclama da mãe pelo fato de ele ter nascido. Eu inclusive fui muito à Biblia. Uma das situações de Alice, que é muito mais odiosa que Leonardo.
 
JC – As mulheres são sempre personagens muito fortes nos seus romances, desde Bernarda Soledade – A Tigre do Sertão. É uma coisa meio edipiana.

RC - As mulheres são complicadas. A gente nunca sabe o que elas querem com a gente. No caso de Ao Redor do Escorpião, depois de Carroll, pensei em Joyce, mas não há ligação com Joyce. Ele é muito óbvio, ele marcava muito a trajetória dos personagens dele. As combinações matemática e musicais dele, a partir do monólogo de ulisses é marcado pelas metáforas. Ele pega uma metáfora e um personagem e começa a desenolver, depois pega outro par e faz o mesmo, ou seja, ele é muito mais lógico do que se possa imaginar. Não há escritor que não seja lógico no sentido da criação. Ele precisa de amarras. A não ser o louco.
Depois, foi a numerologia. Minha grande preocupação é que eu sou muito técnico. Os números me provocam, as pessoas, os nomes me provocanm. Alice tem o número cinco, que é um número regular, difícil, complicado. Leonardo tem o 7. 7 + 5 = 12, que somados dá 3, que é o número ideal do homem, do comportamento humano. Mas eu não sou ternário, a minha é a tecla da valsa, mutiplicada por 3/8 é o número do rock. Embora o rock de Jim Morrison para mim seja mais forte do que a maluquice que se criou depois.

Pai, Filho e Espírito. É número de maior significado tanto na magia quanto na cristandade. Sou leitor de tarô e aprendi a ler mão. A mágica me emociona. 4 é a exatodão. A numeração, quem me provocou isso foi Dante, ele trabalha com a numeração em cima da numerologia.
 
JC – Qual seu ponto de partida ao escrever uma história?

RC – A essência é contar uma história mas nem todo mundo tem. Sabia que não ia dar em nada em termos de enredo, mas eu gosto de enredos abertos, como Jorge um Brasileiro, de Oswaldo França Jr., que inspirou o seriado Carga Pesada, da TV Globo. As coisas surgem e acontecem na hora certa.
 
JC – Você tem receio de se tornar um escritor otimista, com a maturidade?

RC – Não, mas acho que não vai acontecer isso. O que não pode é sofrer em vão. Todo mundo sofre, todo mundo goza. A vida não é um Carnaval. Ora você está em baixo ora está em cima. Eu já passei por momentos difíceis, sofri meu primeiro desemprego aos 50 anos e aí eu sofri, passei 6 meses desempregado e não gostei. Depois tudo voltou ao normal. Mas você tem que tocar o barco pra frente.

(© Jornal do Commercio-PE)


Confira trecho do novo livro
 

   OLHA e vê: o marido dorme passado o clamor do sexo, dança de pernas e braços, gemidos de agonia e gozo, desprotegido, abandonado e so, despojado na mansidão lerda do sono Entre a decisão e a coragem, observa-o na cama travesseiros altos, espalhados, larga de 1ençóis alvos, envolto pelas ramagens do mosquiteiro. Revólver na mão, prepara-se para festejar a bala que enfeitiçará o coração da vítima. Na pele, ainda os dedos e o suor do amado, conhece a necessidade da morte - absoluta necessidade da morte. O lustre apagado, o abajur aceso, a poltrona na penumbra, as marcas do sono se adensando no rosto, nas têmporas, no queixo, ela confia. Um apenas sorriso tímido nos lábios. E distante.

   Alice?

   O que faz uma mulher apontando o revólver para o marido que dorme? - que dorme - o que faz uma mulher terna sentada tranqüila apontando o revólver para o marido que dorme? - tranquila - o que faz uma mulher terna sentada tranqüila na poltrona apontando tensa o revólver para o marido que dorme? - tensa - o que faz uma mulher terna sentada tranqüila na poltrona apontando tensa o revólver pesado na mão direita para o marido que dorme? - pesado - o que faz uma mulher terna sentada tranqüila na poltrona de espaldar apontando o revólver pesado na mão direita para o marido que dorme? espaldar o que faz uma mulher terna sentada tranqútila na poltrona de espaldar alto apontando tensa o revólver pesado na mão direita para o marido que dorme? - alto - o que faz uma mulher terna sentada tranqüila na poltrona de espaldar alto confortável apontando tensa o revólver pesado na mão direita para o marido que dorme? - confortável? - o que faz uma mulher terna sentada tranqüila na poltrona de espaldar alto confortável apontando tensa o revólver pesado na mão direita sobre a esquerda espalmada na coxa? - sobre a esquerda espalmada na coxa - o que faz? - terna tranquila tensa - o que faz uma mulher - mais terna do que tranqüila - sentada na poltrona mais tranqüila do que tensa - ou mais tensa do que tranquila - na coxa? - mais terna do que tranqüila - menos tranqüila. Mais muito mais tensa.

(© Jornal do Commercio-PE)


A renúncia se dá pela morte ou pelo amor
 

   O que faz Alice, terna, nua e tranqüila, sentada em uma poltrona, apontando o revólver para o marido? Essa é a pergunta que constrói a teia de Ao Redor do Escorpião...Uma Tarântula? – Orquestração Para Dançar e Ouvir.

   Carrero nunca foi um escritor de facilitar a vida do leitor. Tanto pelas tramas dos seus livros, que sempre vasculham os lados mais sombrios da natureza humana, como pela forma em que as histórias são narradas, todas construídas a partir de elaboradas técnicas narrativas. Ler Raimundo Carrero está longe de ser um exercício de tranqüilidade ou distração. Muito pelo contrário. E Ao Redor do Escorpião...Uma Tarântula? exige um pouco mais de quem já está acostumado à sua escrita.

   A partir da indecisão de Alice em matar ou não o seu marido que Carrero reconstrói, de forma fragmentada, a relação dos dois – são imagens quebradas de pequenas desilusões e de grandes frustrações (aquelas que só aparentemente parecem mínimas no vaivém do cotidiano), colocadas lado a lado com o desejo que ela sente pelo marido. O que vai pesar mais no final das contas? É o que Alice se pergunta enquanto está ali, terna nua e tranqüila, com o revólver na mão.

   Ao Redor do Escorpião...pode ser lido tanto a partir da densa teia de recursos literários que o autor armou, como pela dúvida de alguém que sabe que, apertando ou não o gatilho, vai continuar perdendo – “Na morte se renuncia à vida, e no amor renuncia-se à sua própria vontade”, define Carrero. Porém, nenhuma das duas formas será fácil para o leitor.

(© Jornal do Commercio-PE)

 

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