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05-06-2008
Urariano Mota Existem várias maneiras de saber o que não é Ascenso Ferreira. Do conjunto dessas maneiras, pela negação, é possível chegar-se à afirmação de um caráter talvez único do que um dia aprendemos a chamar de poesia, arte ou beleza. Mas também, pela afirmação, é possível descobrir uma série de Ascensos. Por exemplo: Existe um Ascenso anedótico, que no passar dos anos virou uma gordura fria, de placas amarelas e crostas de sebo pelas bordas, que é um desconforto até a lembrança. Esse Ascenso grandalhão, glutão, um selvagem de largura escudado à civilização, que emerge das águas com mal disfarçada coroa de algas e limo, metido em terno frouxo e olhos grados, pidões, é um muro e parede levantados contra o gosto de sua pura e feliz poesia. Nós, os que lhe somos gratos, e que por sorte não caímos na tentação e névoas do seu anedotário, temos de esquecer o riso fácil dos seus causos, de suas piadas à feição e casca-grossa dos pernambucanos, ainda que tais imagens e causos estejam entranhados até nos versos que lhe fizeram uma distorcida fama. Porque a poesia de Ascenso é vítima da sua fama. Quero dizer, a poesia que se lembra de Ascenso é mãe, pai e filha dos possíveis e imagináveis feitos da caricatura de sua pessoa. O Ascenso lembrado de "Hora de comer,- comer! é o Ascenso lembrado comendo , de sobremesa, melancia inteira, ao fim de lauta refeição no langor de uma tarde no restaurante Leite. O Ascenso lembrado enfiando os dedos na goela para vomitar um almoço, porque não poderia ficar sem um banquete na casa de Olegário Mariano, é o Ascenso do mesmo ritmo de " - Seu Vigário! Existe um Ascenso alevantado, dignificado, que recebe da crítica generosa um cantinho de reserva na plêiade. Subido ao Parnaso, mas sem direito à canonização do Panteon, esse Ascenso recebe uma dignificação exterior, adjetiva. Uma dignificação que troca a beleza pela ênfase na métrica e ritmo dos versos. Tocando a beleza trocando-a . Certo, hão de dizer, a sua métrica e o seu ritmo são atributos da beleza dos seus versos. Mas o movimento para a ênfase desses atributos já é quase uma dissecação de anatomia, concedam. Ninguém gosta de Leonardo da Vinci por seus conhecimentos de anatomia animal. O que nos interessa, como seres carentes de arte, é o efeito, o produto final. xiste um Ascenso pernambucano, se nos permitem a rematada redundância. Quem já esteve longe de Pernambuco sabe o que a poesia de Ascenso significa, um abraçar e beijar a terra como num feitiço, saboreando os seus versos encantatórios. Mastigando-os, " como um fruto passado". Ruminando-os: "Babá-do-Arroz-Doce, Sá-Biu-dos-Cuscuz, (E uma voz irrefreável nos diz, nos interrompe no discurso retilíneo: "repita: 'babá-do-arroz-doce, sá-biu-dos cuscuz', isso é dialeto, repita, 'babá-do-arroz-doce-sá-biu-dos-cuscuz', isso é um dialeto íntimo, da infância, tem o mesmo cheiro e gosto do café forte na cozinha, isso é um carinho profundo.) Ler/ouvir "A vaca Turina, era retomar nomes que não eram substantivos, eram idéias e visões claras de um paladar, de um gosto, da falta que faz esse gosto. Daí o sabor da fruta além de madura, "passada". Que diabo a gente veio fazer tão longe? "Eu quero virá arcanfô", gritava-nos Ascenso. E mais cruel, enquanto a gente olhava da janela do apartamento o mundo da grande cidade: "Meteram uma peixeira no bucho de Colombina Existe um Ascenso a que sempre voltamos, quando já estamos cheios, saturados do outro, o anedótico. É quando também pensamos que estamos apurados, evoluídos - vã pretensão! - de verdades mais altas. Bobos que somos. Ao simples, que é uma expulsão de Demóstenes, voltamos. "Eu começo, atenienses, invocando a proteção dos deuses do Olimpo para os destinos da Grécia", está certo, isto é do grande Demóstenes, mas para quê tanto? Porque poesia é isto: é um bem permanente. É um bem a que sempre voltamos, como se fosse a primeira vez. A gente lê, vira a página, mas não vira o poema: guarda-o, embora disso não tenha o propósito nem a consciência. Como se estivesse esquecido, o poema resistirá ao tempo, daí o frescor, a primeira vez: "Ai! que saudade dos bêbados de fim de feira O poema não está esquecido. Essa aparência de jogado de lado é uma forma da estética do silêncio. Como uma reflexão que cresce calada, na retina do esquecido aparente. Mas isto já vai ficando cabalístico. Com mais um pouco a gente se enreda a falar em aura, espírito, aragem dos sete anjos. Melhor falar, à maneira de Ascenso, em vento no porto, de madrugada, e assombrações. Melhor concluir, e dizer bem claro, para não fazer com o leitor um comércio de engano, que as linhas escritas até aqui possuíam a intenção de fazer uma moldura para a poesia do poema Noturno. Risquei cadernos, tini xícaras, través de páginas. Para quê? Pra nada. (© lainsignia.org)
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