Seu livro O Amor não Tem
Bons Sentimentos mostra uma família dilacerada como as do Antigo
Testamento
Antonio
Gonçalves Filho
Parece até uma
daquelas famílias desestruturadas do Antigo Testamento ou
disfuncionais como as das tragédias gregas, não fosse a família de
Matheus. Ele tem nome de evangelista, mas de santo não tem nada.
Matheus é músico, como o premiado escritor pernambucano Raimundo
Carrero (Jabuti de 2000), que acaba de lançar um livro
desconcertante pela Iluminuras, O Amor não Tem Bons Sentimentos.
Nele, Matheus, o tal músico, decide matar a mãe e a irmã, com quem
mantém um caso incestuoso. O corpo da irmã flutua num rio sujo logo
no começo do livro, sem que o leitor saiba se as impressões sobre a
sinistra cena são do assassino ou de fantasmas que vagam pela
imensidão desse mundo bíblico, ancestral, em que a loucura comunga
com a fé e a sensualidade animal busca redenção poética.
Carrero, um dos melhores autores nordestinos contemporâneos, ao lado
do cearense Ronaldo Correia de Brito e do sergipano Antonio Carlos
Viana, participou na semana passada da terceira edição da Festa
Literária Internacional de Porto de Galinhas (Fliporto). Após uma
oficina literária em que tratou da obra de Machado de Assis, ele
concedeu uma entrevista ao Estado falando dessa sua filiação
mítico-religiosa e da nova literatura que hoje dá as cartas não só
no Nordeste. Vigorosa, ela recorre tanto a Faulkner como ao Antigo
Testamento sem esquecer de Eurípides, o trágico que deu voz aos
camponeses e as costas aos deuses.
Se Faulkner tratou da degeneração da sociedade americana branca,
sulista, após a abolição, esses autores nordestinos, que viveram
entre as ruínas do coronelismo e escaparam de sua miséria moral,
tratam de temas interditos dessa sociedade agrária com talento
assustador . Carrero, em seu livro, faz uma síntese de todos eles,
cruzando sexo e religião - ele, que é católico - sem nenhum pudor.
Seu livro trata de relações incestuosas e me parece que a
literatura nordestina contemporânea tem certa fixação no tema, como
se, de alguma maneira, revelasse uma ligação umbilical com o mundo
mítico, agrário, ancestral, do Antigo Testamento. Lembro, por
exemplo, do escritor cearense Ronaldo Correia de Brito, que também
lida com esses temas. É só uma impressão?
Agora que você falou, estou fazendo uma revisão mental dos autores
nordestinos mais novos que conheço, dos últimos 10 ou 15 anos, e
encontro mesmo algum parentesco com essa temática. Na verdade, somos
todos filhos do campo e, portanto, filhos da religião,
inevitavelmente. Eu, por exemplo, fui educado em colégio interno, de
padres salesianos. A leitura básica de todos nós é a Bíblia - e ela
representa justamente esse caminho das famílias dilaceradas, de
seres dilacerados. Meu primeiro livro, A História de Bernarda
Soledade, de 1975, já apresenta forte caráter religioso. Aliás,
desde que comecei a pensar em compor uma obra, fui buscar inspiração
na religião. A minha novela As Sementes do Sol - O Semeador (de
1981) é uma remontagem do adultério do rei Davi, que passou a ser a
base de minha literatura. Isso me impressiona, porque minha família,
ao contrário, é extremamente organizada. Ronaldo Correia de Brito
também fez uma releitura bíblica nos dois livros dele, assim como
Antonio Carlos Viana, um escritor sergipano muito bom, além de
Antonio Torres. Todos nós fomos criados em casas, como uma família
mesmo, convivendo com irmãos e irmãs. É possível que essa
convivência familiar tenha influência forte na obra de todos nós,
criados no interior. Antes de ser mandado para o colégio interno,
passei a infância em Salgueiro até a morte de minha mãe, quando eu
tinha 12 anos. Então, minha formação é do interior mesmo. Além de
tudo, morava em frente da igreja. Essa coisa toda afeta a formação
de um escritor.
Num mundo globalizado, que se habitua à extinção de dialetos e
culturas e onde a língua oficial da rede é o inglês, fala-se muito
pouco de literatura regional, como se isso fosse palavrão. A
despeito disso, ela pode ser uma força de resistência contra a
uniformização, a homogeneização cultural. O que você pensa a
respeito?
Na verdade, estou publicando agora uma antologia do conto nordestino
para mostrar que a literatura regional não existe mais. O que pode
acontecer é você tomar a paisagem para contar uma história. Em O
Amor não Tem Bons Sentimentos não há nenhuma geografia plana. Criei
até uma cidade que está em minha obra inteira, Arcassanta, ou seja,
Arca Santa, em volta da qual o rei Davi dançava. Devo lembrar que o
movimento regionalista não é exatamente o regionalismo. Para ser um
escritor regionalista é preciso cumprir as regras estabelecidas por
Gilberto Freyre. Ou seja, optar mais pela sociologia e a
antropologia que pela estética. Quem usa a região é regional, mas
que usa a região com sentido clássico e metafórico é armorial. Não é
a mesma coisa. Em primeiro lugar, falamos pouco do campo porque não
temos mais campo. Até a década de 1980, 80% das pessoas moravam no
campo. Agora a situação se inverteu. O campo foi para a cidade por
falta de políticas agrárias e, mesmo as pessoas que ficaram, estão
vendo televisão produzida no meio urbano. Então, o conceito de
regionalismo começa a mudar. Os próprios escritores não se sentem
provocados a escrever sobre o campo.
De qualquer forma, a violência não acabou no campo, como não
acabou nos grandes centros urbanos como São Paulo e Rio, em que os
escritores têm verdadeira obsessão pelo tema. Por que a literatura
nordestina contemporânea não se apega tanto à temática da violência
como no passado?
A nova geração de escritores nordestinos somente agora começa a
ganhar força, ao contrário dos paulistas e cariocas, que têm maior
visibilidade. De qualquer forma, as periferias do Rio e São Paulo
são muito mais maltratadas do que a nossa, por atrair um número
imenso de pessoas que partem em busca de trabalho e vão sendo
jogadas para a exclusão, fenômeno mais forte em São Paulo.
Você acredita que o trânsito interclassista no Nordeste seja mais
fácil que em São Paulo e no Rio?
Não. É até mais difícil, pela própria natureza da província. Recife,
por exemplo, por mais que tenha evoluído, ainda é uma cidade com
questões provincianas. O entrecruzamento de classes é ainda mais
complicado que em São Paulo.
Existe uma característica que, parece, diferencia a literatura
nordestina contemporânea da paulista ou carioca, um sentimento
singular do trágico, de uma exclusão ancestral.
Mais uma vez, o trágico tem um peso muito grande na questão
religiosa. Não, evidentemente, como na tragédia grega. No Nordeste,
a questão da violência está associada à religião. Eu mesmo, ainda
que acredite em Deus, tenho dificuldade em associar o trágico à
ironia, à loucura - e não tanto a mística, como ainda há no
Nordeste. No Nordeste, um morto é lamentado a vida inteira. Em São
Paulo e Rio, um morto é apenas mais um morto, vai ficando óbvio na
vida das pessoas. A ligação com a religião é que dá esse traço
trágico à literatura nordestina.
Por falar em morto, você elege como narrador de O Amor não Tem
Bons Sentimentos uma figura um tanto ambígua, que pode estar falando
do além-túmulo com o leitor, como o Brás Cubas de Machado de Assis.
Em que medida ele foi construído pensando na literatura do passado,
particularmente Machado?
Machado é inevitável. Depois que se lê Dom Casmurro, tentando
compreender a complexidade que é aquele romance, tudo se transforma,
não é? Depois, a questão toda nasce da religiosidade. Matheus vem do
caçador, do evangelista Matheus, embora perca o 'h' quando começa a
desatinar. Até o nome dele muda, porque o nome é uma coisa
fundamental num personagem. Um nome errado estraga o personagem. Ele
tem de colar no caráter. Agora, mais uma vez, trata-se de um romance
familiar, o que me incomoda na medida em que não conheço essa
família que povoa minha obra desde A Semente do Sol. Já o título
nasce justamente do desamor na casa, porque nós vivemos na casa,
temos a casa como um padrão de vida. Veja bem: Biba, Matheus,
Dolores e Ernesto se odeiam e se amam no lugar onde deveria existir
apenas amor. Curioso é que o título, O Amor não Tem Bons
Sentimentos, nasceu antes do livro, considerando mesmo a
transcendência religiosa. Muitas vezes, Matheus fala em Deus e há,
hoje, muitas críticas contra a presença do sagrado em minha obra.
Mas o fato é que ando sempre com um terço no bolso. E rezo
seriamente. Considero o sagrado fundamental. Ele mobiliza essa obra
e faz com que eu pense na própria salvação.
Já para seu personagem Matheus, a loucura pode significar a
salvação. Em que medida o sagrado está ligado a essa idéia de
insanidade?
Talvez pelo fato de que as pessoas que conheci na minha infância
fossem loucas e religiosas. Por ter vivido no sertão arcaico,
conheci muita gente de batina e ajudei a celebrar muita missa. Em
latim. Esse arcaísmo leva à loucura permanente de Matheus, um
camarada que procura negar ou afirmar o que fez, mas apenas para se
salvar. A loucura dele está num projeto de salvação, no sentido de
encontrar uma solução para esses problemas extraordinários que vive,
o de ter matado a mãe e a irmã. Na verdade, a confusão é grande.
Jeremias, o pai de Matheus, é filho da mãe dele. A menina Biba é
irmã só da parte de pai, porque Jeremias viveu sexualmente com Isis
e daí nasceu Biba. Como ele mesmo diz, em sua casa não se precisa
nem de outros abraços nem de outros beijos. Ele quer enlouquecer de
propósito.
Também em Nelson Rodrigues encontramos essas relações incestuosas
e tragédias familiares, mas tratadas de outra forma. Você considera
que o fato de Nelson ter sido criado no Rio de Janeiro pode ter
atenuado esse sentimento do trágico, levando ao drama suburbano?
Acho que sim. Ele cresceu no Rio quando o Rio era apenas Recife
melhorado. O carioca tinha muito essa coisa de viver na sala do
outro, na rua, de trocar histórias trágicas, contadas aqui e ali.
Aqui, no Nordeste, a gente testemunha, de fato, essas tragédias.
Desde menino vejo gente morrendo esfaqueada, vizinho morto, essas
coisas. O crítico José Maria Cançado, que morreu jovem, chamou
atenção para o número impressionante de defuntos em minha obra. Não
admira. Quando era pequeno, ia para a cadeia conversar com os presos
no lugar de ficar jogando bola. Deve ter sido isso.
Há em Matheus um sentimento de frieza diante da morte, algo assim
como a indiferença com que Meursault, em O Estrangeiro, fala da mãe
que morreu. Você disse que é religioso, mas a impressão que temos é
a de estar diante de um escritor marcado pela leitura dos
existencialistas.
O existencialismo marcou profundamente minha geração. Fui leitor de
Camus e concordo com você. Gosto muito de O Estrangeiro, embora não
goste de seu teatro. Já O Mito de Sísifo tem a questão fundamental
de sua obra, que é a de resumir todos os problemas a um só, o do
suicídio - onde eles começam, afinal. Talvez por isso toda obra
minha tenha um suicídio. Nunca havia pensando nisso até que Ariano
(Suassuna) tocou no assunto. Agora, voltando à questão da frieza,
sempre me preparei para não achar a morte grande coisa. Minha reação
imediata diante dela é de absoluta frieza. Por isso coloquei essa
frieza no Matheus. E, apesar de católico, não acredito na
eternidade. Não há chance. Só fica quem for artista ou escritor,
porque só a obra é eterna. O artista vive mais duas vezes.
SERVIÇO
O Amor não Tem Bons Sentimentos, Raimundo Carrero, Iluminuras, 191
págs., R$ 35