Animados pela Revolução
Pernambucana de 1817, um grupo de emigrados
franceses nos Estados Unidos elaborou um plano
para resgatar o imperador em Santa Helena e
trazê-lo para a América usando o Brasil como
base de operações
por Vasco Mariz
A fama e o fascínio por
Napoleão estiveram bem presentes no Brasil nos primeiros 20 anos do
século XIX. Em 1801 o futuro imperador francês poderia ter sido o
patrono do primeiro movimento pernambucano para fundar uma república
no país, a frustrada conspiração dos Suassunas. A influência de sua
figura e das idéias liberais da Revolução Francesa e da
independência dos Estados Unidos da América esteve muito presente
entre os revolucionários pernambucanos do século XIX, desde a
conspiração de 1801 até o triunfo da Revolução de 6 de março de 1817
no Recife, que proclamou a República no Nordeste. Tais ligações se
tornariam ainda mais estreitas quando militares bonapartistas
exilados nos Estados Unidos, animados com o sucesso da Revolução
Pernambucana, elaboraram um plano para resgatar Napoleão de seu
cativeiro em Santa Helena, levá-lo a Pernambuco e depois a Nova
Orleans.
O elo entre os franceses e o Brasil era Antonio Gonçalves da Cruz, o
Cabugá, homem enviado pelos revolucionários nordestinos como seu
representante junto ao governo dos Estados Unidos no intuito de
obter o reconhecimento formal da independência de Pernambuco. Os
bonapartistas estiveram em contato permanente com Cabugá, que era um
entusiasta do plano dos exilados franceses.
A queda do império napoleônico, em 1815, significou para a quase
totalidade dos oficiais dos exércitos franceses uma verdadeira
catástrofe. Com o imperador nas mãos dos ingleses, os generais e
coronéis que haviam combatido em Iena, Marengo, Leipzig, na Rússia e
em Waterloo encontravam-se em situação muito difícil, pois ou
prestavam juramento de fidelidade a Luís XVIII, ou se contentavam em
receber meio soldo apenas. Por isso, numerosos oficiais preferiram o
exílio nos Estados Unidos, onde havia oportunidades para “soldados
de fortuna”. Assim, poucos meses depois da queda do império, já
estavam nos EUA cerca de mil oficiais franceses de várias patentes,
cujo único pensamento era libertar o imperador que definhava no
clima severo da ilha de Santa Helena, em pleno oceano Atlântico, na
altura de Pernambuco.
O chefe da conspiração francesa nos EUA era o irmão do imperador,
José Bonaparte, que fora rei da Espanha. Por meio do contato com
Cabugá viram no Brasil uma possibilidade de colocar em prática seus
planos, e numerosos militares franceses começaram a se deslocar para
Pernambuco a fim de preparar a cabeça-de-ponte da operação. Durante
os três meses de vida da República de Pernambuco, Cabugá adquiriu
armamentos e munições e os enviou ao Brasil. Mesmo após a derrota da
revolução, ele continuou ajudando os franceses exilados que
planejavam o rapto de Napoleão e conseguiu articular a vinda para o
Brasil de dois navios corsários, o Parangon e o Penguin.
Outro fator que contribuiu
para os planos dos franceses foi a decisão do Departamento de Estado
americano de designar um representante permanente em Recife, o
cônsul Joseph Ray, que desempenharia papel significativo no decorrer
da Revolução de 1817, abrigando em sua casa cidadãos franceses que
chegavam para incorporar-se à expedição que iria seqüestrar
Napoleão.
A oportunidade era esplêndida para os emigrados franceses nos EUA,
que se aproveitaram dos bons ofícios de Cabugá em Washington e da
estratégica posição de Ray em Recife. Correspondência citada por
Donatello Grieco em seu excelente livro Napoleão e o Brasil informa
que os oficiais franceses convergiram para o porto de Baltimore e um
grupo avançado de 32 homens chefiado pelo coronel Latapie viajou
para Pernambuco. Foram adquiridas duas escunas que estavam em
Baltimore e Anápolis. O ponto de reunião de toda a expedição era a
ilha de Fernando de Noronha, onde Portugal mantinha uma prisão
especial. Lá deveriam reunir-se 80 oficiais franceses, cerca de 700
americanos e outro navio com 800 marinheiros. Essas forças deveriam
atacar Santa Helena visando a capital Jamestown, mas isso seria
apenas uma manobra para atrair os defensores ingleses, deixando
livres a Sandy Bay e a Prosperous Bay, onde desembarcaria a maioria
das tropas da expedição. Um grupo se dirigiria à residência de
Napoleão e o levaria para a Prosperous Bay. Seguiriam para Recife e
viajariam depois para Nova Orleans.
A bordo do navio Parangon chegaram ao Rio Grande do Norte em agosto
de 1817 alguns dos principais personagens da expedição francesa. O
mais importante deles era o conde de Pontécoulant, pitoresco
personagem de vida aventureira, apesar de sua alta linhagem gaulesa.
Ao desembarcar teve a má notícia de que a Revolução de 1817 fora
afogada, mas o fato não era tão grave assim porque Joseph Ray, o
cônsul americano em Recife, continuaria a dar-lhes plena cobertura.
Em Natal não encontrou maiores dificuldades, pois conseguiu fazer
boas relações de amizade com o secretário do governador. Decidiu
passar-se por médico e botânico e partiu para a Paraíba, onde o
Parangon havia desembarcado o general Raulet, o coronel Latapie e
outros personagens franceses de patente mais baixa.
Na Paraíba, o conde não teria a mesma boa recepção, pois o
governador local mandou prender todos os franceses encontrados,
enviando-os depois para Pernambuco. Em Recife tiveram melhor sorte,
pois o governador Luiz do Rego não encontrou em seus papéis nada de
suspeito e os liberou. Foram hospedar-se na casa do cônsul Ray, que
se tornaria o centro de todas as medidas para o êxito da expedição
francesa a Santa Helena. Nesse momento aportou em Recife outra
escuna americana carregada de armamentos, o que alarmou o governador
pernambucano, que não sabia como controlar o cônsul Joseph Ray.
Sucedeu então o
imprevisto: o coronel Latapie solicitou audiência ao governador Luiz
do Rego e resolveu relatar-lhe tudo sobre a expedição que estava
sendo preparada. Contou-lhe o papel do ex-rei da Espanha, José
Bonaparte, irmão de Napoleão, que deveria chegar a Pernambuco nos
próximos dias e todas as implicações de uma delicada questão
internacional. O governador afinal deu-se conta da importância dos
fatos e decidiu encaminhar os franceses às autoridades portuguesas
da capital.
No Rio de Janeiro ocorreu outra surpresa: um cidadão americano
declarou ao presidente da Alçada que o cônsul Ray estava em contato
direto com Cabugá e os líderes da expedição francesa. O cônsul
acusava o governador de Pernambuco de prejudicar os interesses
comerciais dos EUA. Afirmava Ray abertamente que seria muito fácil
obter a independência do Brasil, porque o governo português do Rio
de Janeiro ficaria reduzido à impotência pela intervenção armada dos
Estados Unidos e a neutralidade da Inglaterra. O interrogatório de
tripulantes do navio americano confirmou essas declarações
alarmantes do diplomata.
Segundo o relato de Ferreira da Costa em seu A intervenção
napoleônica no Brasil, o conde de Pontécoulant, assustado, preferiu
regressar ao Rio Grande do Norte para obter proteção de seu amigo, o
secretário do governador, mas nova complicação ocorreu com o
aparecimento de outro navio americano, o Penguin. Procedente de Nova
York, a embarcação trazia mais armamentos enviados por Cabugá, e
seus tripulantes transmitiram notícias alarmantes, assegurando até
que Napoleão já se evadira de Santa Helena. Em Recife, no início de
1818, o governador Luiz do Rego, convencido da cumplicidade do
cônsul americano, pediu ao Rio de Janeiro autorização para efetuar
uma busca na casa dele e lá encontrou três pernambucanos implicados
na Revolução de 1817, além de alguns franceses, prova cabal de sua
conivência.
A imunidade consular salvou Ray, mas seu secretário dinamarquês foi
preso e relatou todos os pormenores da associação dos franceses com
os revolucionários de 1817, do que resultou a prisão do general
Raulet. Nesse ínterim, chegavam ao Ceará mais franceses ilustres a
bordo da fragata Les Trois Frères. Os bonapartistas contavam que na
França se falava com entusiasmo do sucesso da Revolução Pernambucana
e vários franceses decidiram embarcar para o Brasil a fim de
juntar-se à expedição destinada a Santa Helena.
As autoridades portuguesas
começaram a preocupar-se seriamente com a chegada de dezenas de
franceses de alta estirpe que não podiam trancafiar impunemente sem
protesto do governo francês, com o qual Portugal mantinha agora
excelentes relações. Por outro lado, o governo português não podia
deixar de reagir ao imbróglio que aumentava com os protestos do
governo inglês, seu aliado, interessado em manter Napoleão em
segurança na sua ilha. Os juristas estavam confusos e afinal a corte
portuguesa ordenou à polícia carioca “transportar para a Europa
todos os emigrados franceses que se encontravam no Brasil”.
Em Santa Helena o comandante inglês sir Hudson Lowe estava ao
corrente de tudo o que acontecia no Brasil pelo ministro inglês no
Rio de Janeiro e tomou diversas medidas para reforçar a defesa da
ilha. Instalou telégrafos e novas baterias em Sandy Bay, em
Prosperous Bay e na capital Jamestown, os três pontos mais
vulneráveis.
Os planos dos bonapartistas nunca se concretizaram, mas os franceses
dificilmente teriam tido sorte em sua iniciativa de raptar o
imperador da ilha solitária. Não seria nada fácil, pois os ingleses
sabiam dos planos dos franceses e tomaram precauções eficazes para
resistir. Se ele tivesse aportado em Recife a caminho de Nova
Orleans, durante a Revolução de 1817, certamente seus próceres
tentariam retê-lo por algum tempo para homenageá-lo, mas isso
dificilmente se realizaria.
É claro que se d. João VI tivesse conhecimento de que Napoleão
estava em Recife, mandaria apresá-lo imediatamente para vingar-se de
sua ignominiosa fuga de Lisboa em 1808, escapando às tropas do
general Junot. Que magnifico refém seria Napoleão para d. João VI!
Na época o monarca estava negociando com Luis XVIII a devolução da
Guiana francesa, ocupada em 1809 por tropas da Amazônia. Por isso é
natural que, se os exilados Franceses tivessem obtido sucesso no
seqüestro de Napoleão, eles o teriam levado diretamente para os EUA,
sem escala em Recife, que serviria apenas de cabeça-de-ponte inicial
para a planejada operação de resgate.
SAIBA MAIS |
Napoleão e o
Brasil. Donatello Grieco. Bibliex, 1995.
História da Revolução de Pernambuco em 1817.
Francisco Muniz Tavares. Imprensa Industrial, 1917. |
|
Vasco Mariz É
historiador e diplomata aposentado.
Ex-embaixador do Brasil no Equador, Israel,
Chipre, Peru e Alemanha, é autor de
Villegagnon e a França Antártica (Nova
Fronteira, 2000), entre outros livros |
|
|