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Gilberto
Gil & Mutantes
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Artigo
Movimento surgido há 40 anos foi a resposta brasileira à efervescência
mundial de idéias
JÚLIO MEDAGLIA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os anos 60 iniciaram-se comportadíssimos, com as artes baseadas em
linguagens compactas, introspectivas, voltadas para o controle absoluto do
acaso.
Tanto quanto no jazz (com o movimento cool), na poesia e nas artes
plásticas (com o concretismo), com a retomada do dodecafonismo na música de
concerto, a bossa nova representava na MPB esse despojamento, essa implosão
de idéias. A ordem era filtrar tudo, reduzir componentes para aumentar a
tensão.
Mas, se na virada dos 50 para os 60 uma nota só era suficiente para Jobim
compor uma música antológica de seu tempo, na outra ponta da década bombas
atônitas de muitos megatons explodiam em todas as partes e artes
entrecruzando idéias, aparentemente antagônicas entre si, formando um dos
mais coloridos caleidoscópios culturais da história.
Dos delírios tachistas de Jackson Pollock, passeando com suas tintas
pelas telas espalhadas no chão, aos aleatorismos de John Cage nas salas de
concertos; da desintegração do jazz, com o free de Coltrane, San Ra, Ornette
Coleman e Art Blakey, ao rock psicodélico dos Beatles pós-"Sgt. Pepper's",
do rock inteligente de Frank Zappa, do anti-rock de Hendrix ao antiblues de
Janis Joplin, tudo ia pelos ares e mares.
Há 40 anos, dois baianos que aparentemente nada tinham a ver com essa
excitação, Caetano Veloso e Gilberto Gil (o primeiro, tímido, se exibia num
programa de TV e sabia de cor letras de canções de todos os tempos; o outro
tocava por 30 cruzeiros num boteco da galeria Metrópole, ainda de terno
Ducal e gravata, pois chegava às pressas do escritório da Gessy Lever, onde
era contador), lideravam em São Paulo um movimento que era uma resposta
brasileira à efervescência mundial de idéias.
Do fino ao cafona
No tropicalismo tudo cabia, interagia e explodia: da música de vanguarda
à de retaguarda, da fina à cafona, da discreta à comportamental, da
intimista à social, da implícita à escancarada, do berimbau ao teremin, do
portunhol ao latim, do som ao ruído, da poesia concreta à de cuíca de Santo
Amaro, do Debussy celestial a Vicente Celestino, do samba ao rock, do canto
ao toque.
Curiosamente, porém, esses dois tranqüilos baianos, um que falava em
"água azul de Amaralina", e outro, em "o rei da brincadeira é José", foram
presos. Aliás, da MPB, os únicos. A quem gritava "a terra deve ser do povo",
"nos quartéis se aprende a morrer pela pátria e a viver sem razão", ou fazia
apologia a Che Guevara em festivais e coisas assim, nada aconteceu. Passaram
incólumes pelo crivo do Brasil fardado.
Ou seja: os milicos tinham identificado onde estava o "perigo". Que a
"subversão" estava na linguagem, e não na língua; que o que transformava o
mundo era o comportamento, e não o panfleto. Os ditadores perceberam aquilo
de que os universitários do Tuca que vaiaram Gil e Caetano, por ocasião de
"É Proibido Proibir", não tinham se dado conta: que o tropicalismo tinha um
profundo sentido político inovador.
Mas, 40 anos depois, revendo as provocações e contribuições que o
movimento trouxe à cultura brasileira, cheguei à conclusão que a mais
importante de todos foi a seguinte: a grande qualidade de sua música.
O maestro JÚLIO MEDAGLIA é autor do arranjo original da música
"Tropicália", de Caetano Veloso.
(©
Folha de S. Paulo)
Frases
Era uma coisa horrenda. [O tropicalismo] virou um produto comercial de
quinta categoria. Ficam só nos cantores. Os cantores são ótimos, mas a
divulgação é péssima. Ficou uma visão mercenária, nada a ver com o
sentimento que tínhamos na época
JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA
diretor de teatro
O tropicalismo surge num contexto de contrariedade à canção de protesto.
Era uma reação à idéia do que era válido ou não
CARLOS
CALADO
jornalista
(©
Folha de S. Paulo)
Zé Celso vê
"tropicapitalismo" na celebração
LUIZ
FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO
EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL
Hélio
Oiticica e Glauber Rocha não estão mais aqui, mas há José Celso Martinez
Corrêa como prova viva de que o tropicalismo não foi só música. O diretor,
que estreou em setembro de 1967 "O Rei da Vela", principal espetáculo
teatral do movimento, protestou na semana passada contra a redução do que se
fez há 40 anos às composições de Caetano e Gil.
Ele
participou, na quarta-feira, com o cineasta Julio Bressane, da mesa
"Tropicalismo e Underground na Virada da Década", no Centro Cultural Banco
do Brasil carioca. Classificou de "tropicapitalismo" a comemoração do
movimento, exemplificando com a decoração de Salvador no último Carnaval.
"Era uma
coisa horrenda. [O tropicalismo] virou um produto comercial de quinta
categoria. Ficam só nos cantores. Os cantores são ótimos, mas a divulgação é
péssima. Ficou uma visão mercenária, nada a ver com o sentimento que a gente
tinha na época", afirmou.
Segundo ele,
os tropicalistas já se queixavam da redução de suas idéias a um monte de
cores e frutas. "Ninguém agüentava mais tanta banana, tanto coqueiro",
contou, lamentando que essa visão ainda seja forte.
Para o diretor, o mais importante de "O Rei da Vela" foi ter posto a idéia
da antropofagia no centro das discussões culturais. Oswald de Andrade, autor
do "Manifesto Antropofágico" e da peça, embasou uma das idéias principais do
tropicalismo: é possível absorver qualquer referência e transformá-la em
algo original, brasileiro sem ser xenófobo.
"Oswald não
era como Dias Gomes ou [Gianfrancesco] Guarnieri, que usavam uma peça para
contar outra história [política]. Oswald era mântrico", disse Zé Celso,
antes de imitar Oswald, num dos muitos números que realizou no CCBB -também
se deitou na mesa e mostrou um pouco de maconha que tinha no bolso.
Discordando de Gil
Outro debate,
batizado de "Tropicalismo: Uma Análise 40 Anos Depois", foi realizado na
terça, no Centro Universitário Maria Antonia, em São Paulo, reunindo o
jornalista Carlos Calado e o arquiteto Guilherme Wisnik, respectivamente
colaborador e colunista da Folha.
A conversa
aconteceu após a exibição do documentário "A Revolução Tropicalista", dos
franceses Ives Billon e Dominique Dreyfus. No filme, Gilberto Gil afirma que
o movimento, ao contrário da bossa nova, não deixou como legado nenhuma
forma musical.
Calado
discordou, pois o tropicalismo surgiu num contexto de "contrariedade à
canção de protesto" e foi uma reação à separação entre o que era válido e o
que não era na música brasileira. Outros artistas usufruíram, mais tarde, da
liberdade estética pregada pelo movimento.
Wisnik
expandiu a discussão para outras artes, ressaltando que, em todas as
expressões, a carta de intenções dos artistas envolvia a mistura "do popular
com o internacional" e estava ligada ao "desrecalque do corpo" e à
participação do público. Para Wisnik, o tropicalismo foi o "avesso da bossa
nova", um contraponto ao otimismo do Brasil desenvolvimentista.
(©
Folha de S. Paulo)
OUTUBRO DE 67 ENTROU PARA A HISTÓRIA
Outubro de 1967 ficou conhecido como o mês em que foi lançado o
tropicalismo. No dia 21, Gilberto Gil e Os Mutantes defenderam a música
"Domingo no Parque" no 3º Festival de MPB da Record, conquistando o segundo
lugar, enquanto Caetano Veloso ficou em quarto com "Alegria, Alegria".
O movimento, no entanto, já vinha tomando forma fazia alguns meses. O nome
"Tropicália" foi dado, em abril, a uma instalação de Hélio Oiticica. A
estética também era relacionada a obras como o filme "Terra em Transe" e a
peça "O Rei da Vela".
(©
Folha de S. Paulo) |