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O sociólogo
Gilberto Freyre, em sua casa, em Apipucos
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Os 20 anos da morte do autor de Casa-Grande & Senzala, o
recifense Gilberto Freyre, são marcados por três iniciativas que colocam
em discussão a obra do sociólogo - lembrado, como nenhum outro no
Brasil, tanto por intelectuais como por populares (em 1962, a escola de
samba Mangueira desfilou com enredo inspirado em seu mais famoso livro).
A primeira delas é um estudo destinado a provocar polêmica, Gilberto
Freyre: Uma Biografia Cultural (Editora Record, 714 págs., R$ 80), do
antropólogo Enrique Rodríguez Larreta e do professor de Letras Guillermo
Giucci, ambos nascidos no Uruguai. Nela, a dupla examina os anos de
juventude de Gilberto Freyre, de 1900 a 1936, traçando uma genealogia
intelectual de suas principais contribuições sociológicas. As outras
duas iniciativas são o lançamento do livro de memórias do maior amigo de
Freyre, Edson Nery da Fonseca, Em Torno de Gilberto Freyre, que será
lançado na próxima semana, e uma exposição que o Museu da Língua
Portuguesa inaugura no dia 27.
Na biografia cultural escrita por Larreta e Giucci, Freyre surge como
uma personalidade multifacetada, uma identidade não só em conflito com
as culturas por onde passou, na América e Europa, como com a própria
sexualidade. O livro da dupla é bastante honesto para não fugir de temas
como as experiências homoeróticas de Freyre ou outras discussões
incômodas - sobretudo sobre a tese de que a presença de uma democracia
étnica leva automaticamente a uma democracia social. Nesse sentido, todo
Gilberto Freyre, defendem os autores da biografia, conflui para
Casa-Grande & Senzala.
Não por outra razão, eles concentram seus esforços na análise da obra
central do sociólogo, vista como a representação de um mito, "uma crença
profunda para ser compartilhada por uma nação" no valor da mistura de
raças e da integração dos contrários. O dado biográfico, justificam, é
essencial para se entender as condições de possibilidade da obra. "Só
alguém com conhecimento em primeira mão de outras culturas modernas
podia valorizar, comparativamente, a experiência brasileira da
miscigenação", escrevem os dois professores, que concederam uma
entrevista ao Estado, reproduzida nesta e na página seguinte.
Como se diz na biografia, as posições políticas do sociólogo nos anos
1960 contribuíram para que sua obra fosse lida como uma justificação
ideológica do patriarcalismo escravocrata. Em que medida os estudiosos
estrangeiros ajudaram a recolocá-lo no patamar dos pioneiros da moderna
antropologia?
Dentre os historiadores franceses da Escola dos Annales, como Fernand
Braudel e Lucien Febvre, Gilberto Freyre sempre foi reconhecido pelas
qualidades de seu principal livro, Casa-Grande & Senzala. Esses
historiadores destacaram sua contribuição para uma antropologia
histórica, com ênfase no cotidiano, na culinária e na cultura material.
Nessas leituras, a temática racial ou as posições políticas nunca
estiveram em primeiro plano. Intelectuais franceses famosos como Georges
Dumezil, Philippe Ariès e Maurice Blanchot foram simpatizantes da
direita nacionalista francesa nos anos 1930. Até mesmo um antropólogo de
ampla influência no Brasil, como Claude Lévi-Strauss, sustentou posições
políticas acerca da imigração, das mulheres e da cultura muçulmana que
podem ser consideradas reacionárias. O vínculo entre a obra de um autor
e suas opiniões políticas não se expressa em simples relações de causa e
efeito, nem comprometem o conjunto de sua obra, como é mostrado em nossa
biografia de Gilberto Freyre.
A leitura corrente de Gilberto Freyre identifica em sua obra uma
defesa ideológica da miscigenação que camuflaria uma realidade de
discriminação racial. A leitura dos textos de Herbert Spencer sobre os
antípodas marcou o pensamento antropológico do brasileiro?
Spencer foi uma influência de juventude e que era muito comum em
intelectuais de sua época, inclusive no Brasil e na América hispânica.
Basta lembrarmos de Silvio Romero e Jorge Luis Borges, entre outros. Em
nossa biografia, argumentamos que na obra madura de Freyre, a partir de
Casa-Grande & Senzala, Franz Boas e o círculo de Columbia foram as suas
principais influências universitárias. Em termos de influência, para não
realizarmos um simples inventário, é preciso levar em consideração a
apropriação criativa do autor desde seu próprio espaço de reflexão
intelectual. No livro, é mostrado que as teses de Freyre sobre a questão
racial não podem ser compreendidas como uma simples ideologia de
justificação da discriminação. Ao contrário, trata-se de uma crítica
lançada contra o racismo biológico que até hoje defende o argumento da
existência de raças inferiores e superiores.
A sensualidade de Freyre contrastava como a secura do pai, Alfredo. O
tratamento ousado que Freyre dá à sexualidade do brasileiro, em especial
à precocidade e promiscuidade sexual do homem, não seria uma resposta a
essa austeridade patriarcal, uma provocação a esse mundo herdado do
colonizador português que ele tanto ridiculariza em seus primeiros
escritos?
Em uma boa medida, sim. Há um questionamento da rigidez burocrática, dos
excessos de formalismo gramatical, da cópia mecânica dos modelos
estrangeiros, assim como há a valorização do corpo e dos sentidos, do
mundo do trópico em contraposição à "civilização carbonífera". Esses são
tópicos constantes da reflexão de Gilberto Freyre, que será amadurecida
ao longo de sua obra, a partir de suas próprias experiências
existenciais e da comparação com outras culturas modernas.
(©
Estadão) |
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