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 Um personagem picaresco

 

 

 

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Luiz Carlos Monteiro

Quem começa a ler o romance Roliúde, de Homero Fonseca, não sente vontade de parar. Toda a trama se articula em torno do personagem Bibiu, de batismo Severino Ramos Soares da Silva, anti-herói brejeiro que nasceu em 1911, num dia de eclipse solar, em Barra de São João, cidadezinha agrestina pernambucana inventada. Uma tarde no Recife, depois de contar aos amigos e freqüentadores de um bar a história de um filme a que assistira no Cinema Glória, no Mercado de São José, Bibiu descobre, dentro de si, uma grande inclinação para contador de histórias de filmes famosos, com especial desvirtuamento dos roteiros originais. Ele daria continuidade a suas experiências anteriores de locutor de circo e de parque de diversões, camelô, homem da cobra e outras ciências mais.

Passa a se apresentar nas praças, pátios de igrejas, fazendas, feiras ou casas de família. Mesmo sem ser cantador, sem saber dedilhar um baião de viola, ele entretém, fascina e diverte. Uma lata de manteiga adaptada funciona como bilheteria, enfeitada com fotografias de artistas de cinema. É autobiográfico nos capítulos ímpares e narrador aloprado de filmes nos pares, obedecendo, nas duas estruturas, à alta dosagem de sua fantasia. Empreende descaradamente a subversão cabocla de fitas de sucesso como Casablanca, O ébrio, Sansão e Dalila, No tempo das diligências, entre outras.

Quando estoura a Revolução de 30, Bibiu se manifesta comparando-a com a de 64: “Chegou o mês de outubro de 1930, que como o senhor sabe deu um rolo desgraçado. Balas zunindo sobre os telhados das igrejas, cornetas tocando desesperadas, rajadas de metralhadoras na noite, beatas rezando nos altares de casa. (...) Nesta de 1964, teve um caso triste, que eu mesmo não vi em pessoa, assisti na televisão: prenderam um cidadão chamado Gregório e arrastaram ele, com uma corda no pescoço, descalço, seminu, todo ensangüentado, na luz do dia, pela praça de Casa Forte. Coisa que não se faz com um animal bruto, quanto mais com uma criatura de Deus, mesmo sendo comunista.” O narrador Bibiu mistura, sem nenhum constrangimento, a seriedade dos fatos com tiradas irônicas, haja vista a idéia que se fazia, à época, do comportamento supostamente antropofágico dos comunistas.

A memória sociocultural em Roliúde é de vasta retórica popular e tangencialmente histórica. Abarca, no espaço de várias décadas, a atividade corriqueira ou esparsa de poetas violeiros e cordelistas, de palhaços e artistas mambembes, de numerosos tipos de trabalhadores em suas respectivas profissões. Alcança a gíria e o dialeto desabrido e de baixa extração das camadas populares. Aparecem referências que Bibiu amolda à sua verve, de acontecimentos relevantes do Brasil, ou mundiais, privilegiando os meandros e veredas de um discurso que não deixa de ser letrado. Na Segunda Grande Guerra ele entra em confronto direto com Hitler, ensejando a sua propensão pícara, que não raro chega à vadiagem e à mentira.

A boa vizinhança que o personagem cultiva envereda pelos caminhos da amizade firme e indiscriminada com intelectuais: “Conheci pessoas principais, gente importante e intelectual até do estrangeiro. O senhor conhece o famoso diretor de cinema italiano Roberto Rosselini? É uma espécie de Fernando Spencer lá da Itália. Pois eu tomei uma cachaça das grandes com ele, no meado dos anos 50, na zona do cais do porto.” Ao final de cada sessão cinematográfica oralizada, Bibiu joga a sua lábia para os espectadores não esquecerem da devida e necessária contribuição financeira.

O imaginário e o ficcional que Roliúde sugere e mostra não tem limites nem amarras, pois a vã realidade é tomada e invadida inteiramente pelo absurdo e o fantástico. A relação intrincada cinema-literatura faz-se simbiótica, uma entranhando-se na outra. O cinema é avivado pela palavra desenfreada de um narrador em primeira pessoa, tornando-se movimento e imagem na cabeça de quem o escuta e vê. Além disso, outras formas de expressão podem ser conferidas no texto, como a carta, a poesia, o cartaz, a pregação religiosa e o recorte jornalístico. A palavra, por sua vez, expõe os materiais estéticos do escritor que é Homero Fonseca, que não se esquiva ao detalhe sutil e imprevisto numa cena ou espaço, à particularidade escondida que pode surgir numa conversa ou visagem.

» Luiz Carlos Monteiro é crítico literário.

(© JC Online)

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