No segundo CD com a banda Fuloresta, o pernambucano
Siba dá um passo além na arte de fazer poesia em ritmo de ciranda, maracatu,
coco de embolada e frevo
Lauro Lisboa
Garcia
O que move Siba é a poesia, a
música é conseqüência. Com uma entrelaçada na outra, sua notável evolução
artística trafega entre dois mundos - o da tradição viva embrenhada na mata
e o dos círculos contemporâneos cosmopolitas. Desde o começo da carreira com
seu ex-grupo Mestre Ambrósio, de traço paralelo ao mangue bit, o compositor,
cantor e instrumentista pernambucano, tinha em mente um objetivo: 'Fazer um
dia um projeto de parceria com os músicos da minha tradição, da Zona da Mata
Norte.' São eles os integrantes da Fuloresta, com quem Siba divide os
créditos do recém-lançado álbum Toda Vez Que Eu Dou Um Passo o Mundo Sai do
Lugar (Ambulante Discos), um dos melhores de música brasileira de 2007.
É o segundo trabalho de Siba com o grupo, que lançou Fuloresta do Samba em
2003. É uma banda formada por músicos tradicionais da pequena cidade de
Nazaré da Mata, Norte de Pernambuco. Entre eles está o festejado Biu Roque,
um dos mestres de Siba. 'Toco com esses músicos de maneira informal desde
1990/91. Ao longo dos anos amadureci lentamente esse projeto, que na verdade
não é totalmente fechado em termos de resultado. Tem uma linha conceitual
que são os estilos da Mata Norte - a ciranda, o coco, o maracatu de baque
solto, o frevo de lá, que não é bem o frevo de Recife, sempre baseado na
percussão, na voz e nos metais', detalha o músico.
No primeiro CD, já havia 'algumas pinceladas de instrumentos externos dentro
da tradição'. Neste, Siba foi mais longe por dois motivos: 'Primeiro porque
eu estava mais seguro com o trabalho dentro da gramática da tradição; e em
segundo lugar porque também a banda toda está mais madura.' Fuloresta do
Samba foi gravado numa unidade móvel por conveniência. 'O grupo só tinha
três meses de formação e os músicos não tinham experiência nenhuma de
estúdio. Eu também não tinha uma história de trabalho profissional com eles.
Então optei por levar uma estrutura pra lá e ficar o mais à vontade
possível', lembra Siba.
Cinco anos depois, eles já viajaram muito pelo Brasil e pela Europa em
turnês. A evolução é notável no resultado de Toda Vez Que Eu Dou Um
Passo..., no apuro técnico, nas composições, nos arranjos e procedimentos
harmônicos. A rabeca que Siba tocava no Mestre Ambrósio aos poucos foi
saindo de cena. 'Esses estilos que a Fuloresta toca, originalmente não têm
rabeca. Não tinha motivo nenhum para ela entrar ali.'
As 'pinceladas externas' na sonoridade do CD vêm da cantora paulista Céu
(que divide a autoria e vocais de Cantar Ciranda); de Beto Villares que toca
piano Rhodes e co-produziu o CD com Siba, como no anterior; de Lúcio Maia,
da Nação Zumbi, e Fernando Catatau, do Cidadão Instigado, que tocam
guitarras; do pianista gaúcho Arthur de Faria, entre outros. Faria e Maia,
aliás, tocam numa das mais belas faixas do CD, Alados. 'São parceiros que
estão ligados de certa forma ao meu trabalho em diversas situações. Todos
têm um motivo para estar ali.'
Igual rigor, Siba revela nas impecáveis letras das canções, ricas em imagens
(leia trechos de duas delas no quadro). Os temas variam entre as atividades
de insetos (Alados) e outros animais (Bloco da Bicharada), o tempo (Tempo
II), a morte (A Velha da Capa Preta), metáforas de poesia e guerra (Pisando
em Praça de Guerra). Se protesto contra o excesso de impostos (Será?),
crítica ao comércio da religião e lamento pelo abandono de filhos
indesejados (ambos em 12 Linhas) escancaram a realidade, a bem-humorada Meu
Time (sobre o rebaixamento de um time de futebol para a terceira divisão) é
produto da imaginação. Mas não parece. 'Desde os 16/17 anos não acompanho
mais futebol. Fiz essa letra há dois anos. Agora tem um time em Pernambuco,
o Santa Cruz, que parece estar caindo para outra divisão. Para mim é uma
combinação perigosíssima, porque não estou a fim de falar de time nenhum
daqui. E estou com medo de levar cascudo na rua, mas acho que isso não vai
acontecer', diz Siba, entre risos.
O preciosismo de seus versos está vinculado aos procedimentos da poesia oral
nordestina, especialmente a cantoria de viola, mas também a literatura de
cordel. 'A cantoria de viola, como é o estilo de poesia mais elaborado do
Nordeste, acaba influenciando todo mundo.' Então quem canta ciranda, coco,
maracatu também não escapa. Essas vertentes poéticas têm em comum o uso de
regras rígidas de rima, métrica e forma. 'O que pratico em toda essa
história com a Fuloresta, embora seja entendido como música, é um processo
mais ligado à poesia.'
Siba diz que não quer assumir o estandarte de renovador da tradição. Zé
Galdino, Barachinha e João Limoeiro, sim, o são. 'O que canto hoje vem de
certa forma das mudanças que eles praticaram. É um processo lento. Faço o
que gosto e tenho a sorte de gostar de estilos de música que são praticados
por muitas pessoas de várias idades. É aquilo que a gente chamaria de
tradição viva', diz. 'Mas não conversamos sobre preservação. Pela forma como
gravamos e nos apresentamos, colocamos a tradição para uma perspectiva
diferente, que a torna acessível a um público diferente. Então, isso também
pode ser entendido como renovação.'
CANTAR CIRANDA
Cantar ciranda
É balanço de maré
Quando vem, forma um balé
Quando vai, carrega areia
Me arrudêia
Um temporal carrancudo
Quando vai, carrega tudo
E quando volta incendeia
E a poesia vadeia
Igualmente um bumerangue
Em cada gota de sangue
Que corre na minha veia
SIBA/CÉU
12 LINHAS
Em cada palmo de terra
Tem uma cruz enfincada
De quem morre em emboscada
De fome ou por acidente
Em qualquer um continente
Um conflito tumultua
Em cada beco de rua
Uma criança infeliz
Que o pai gerou e não quis
A mãe pariu e deixou
E ela se transformou
Numa vítima do país
SIBA/ZÉ GALDINO