Ela faz nova temporada em
São Paulo, a partir de hoje, do
bem-sucedido Dentro do Mar Tem Rio
Já que o assunto é água, podemos dizer que
Maria Bethânia deixou para lavar a alma em São
Paulo. Depois de um ano, ela volta à cidade para
o encerramento da turnê Dentro do Mar Tem Rio, e
se apresenta no Citibank Hall neste e no próximo
fim de semana, ao mesmo tempo em que lança o CD
homônimo, ao vivo, registro do show gravado no
Canecão, no Rio, em agosto.
Na base dos shows estão os dois últimos discos
da cantora, Pirata e Mar de Sophia, ''''água
doce e água salgada'''', explica ela em
entrevista ao Estado. ''''Estreei em São Paulo,
agora volto para encerrar a turnê, comemorar o
sucesso, a felicidade.Volto para agradecer e
pedir mais.''''
Mas mais ainda que os dois trabalhos de estúdio,
lançados simultaneamente no ano passado, o
roteiro repassa e, de maneira não menos que
surpreendente, expõe a ligação extrema entre a
trajetória de Bethânia, seu vasto repertório, e
a água. Difícil encontrar alguma outra
intérprete que tenha cantado as águas doces,
salgadas, as lágrimas e o útero tanto quanto
ela. ''''Dos quatro elementos é o que mais me
comove, é muito suave. É um projeto que sempre
quis fazer, cantar para a água, reverenciando a
água.Os mares, os rios, somos gerados no ventre
e na água, há um lado ancestral da mulher
reservatório. Para mim, é um assunto
encantado'''', diz ela.
Assunto encantado, assunto da vez. Mas Bethânia
observa que embora acabe chamando a atenção para
o envenenamento dos rios, os projetos de
transposição e afins, ao cantar a beleza das
águas, a alma que é feita de maresia, a intenção
do projeto não é panfletária. ''''Lógico que me
preocupo com o assunto, mas aqui a intenção é
mais a de reverenciar a água como uma entidade
sagrada, apaixonante, fácil, amorosa, e não
parecer aquelas propagandas que se vê hoje em
dia. A idéia é antiga, ainda nem se falava sobre
isso. Se contribuir, fico feliz, mas não foi uma
coisa dirigida para isso'''', justifica.
''''Quero chamar a atenção, não quero o
panfleto. Minha voz é pequena, mas assim pequena
mesmo eu vou gritando.''''
Grito é metáfora, Bethânia não grita. Mas não
foge da discussão. Questionada sobre o assunto,
posiciona-se com todas as letras, por exemplo,
contra o projeto de transposição do Rio São
Francisco, menina-dos-olhos do governo Lula. Diz
com todas as letras que é contra a alteração do
curso de um rio, seja ele qual for, e que há
outras maneiras menos agressivas de se acabar
com a seca do Nordeste. ''''Não sou estudiosa
dessas idéias mirabolantes, mas o homem está se
sentindo superior a Deus. Querer mudar o curso
de um rio não é coisa para humano. Há outras
maneiras de levar água para o Nordeste. É uma
desculpa fraca para mexer na água. Não me meto
no que não conheço, mas tenho meu sentimento e
minha inteligência'''', sentencia.
Entre a indignação e a observação serena,
Bethânia montou um panorama sem pudores, num
roteiro assinado em parceria com Fauzi Arap,
ainda que nenhuma música deixe de fazer jus ao
tema de alguma forma. Estão lá, por exemplo,
desde jóias delicadas como Sereia de Água Doce,
de Vanessa Da Mata, até marchinhas inocentes,
como A-la-la-ô (Haroldo Lobo e Nássara). Afinal,
o tal ''''deserto do Saara'''' tem a ver com
água.
As concessões estão nas canções de amor rasgado,
como Você, de Erasmo e Roberto - Sou igual a
você/ Eu nasci pra você/ Eu não presto. O amor,
diz ela com grande alegria, tomou grandes
proporções durante este ano inteiro de turnê.
São os trechos do show em que ela se permitiu
fugir um pouco do tema. ''''A água me libertou
no amor'''', confessa.
Bethânia explica que, comparado ao trabalho em
estúdio, a escolha do repertório do show foi
muito mais livre, mais solta. No caso de Pirata
e Mar de Sophia, ela procurou privilegiar
músicas inéditas, senão totalmente, inéditas em
sua voz pelo menos. É por isso, por exemplo, que
O Nome da Cidade, de Caetano Veloso, não entrou
no repertório em estúdio, mas está no show e no
CD ao vivo. ''''Para mim, a música tinha tudo a
ver com essa conversa de água, mas não poderia
estar no estúdio, já havia feito parte do show A
Hora da Estrela (1984)'''', explica. ''''No show
eu misturo tudo: rio com mar, falo de chão onde
não chove. Eu e o Fauzi resolvemos misturar sem
nenhum pudor.''''
Mistura danada, mas coerente dramaturgicamente,
Dentro do Mar Tem Rio é pontuado por Álvaro de
Campos (Ultimatum) e João Cabral de Melo Neto (O
Rio), mas principalmente costurado pela poesia
da portuguesa Sophia de Mello Breyer. Bethânia
conta que conheceu a poetisa por meio do amigo e
escritor, também português, Antonio Alçada
Batista - ''''Fiquei encantada com ela,
apaixonada.''''
Na época em que foi apresentada à obra de
Sophia, Bethânia já pensava neste trabalho
voltado ao mar. ''''Fiquei impressionada com o
fato de ela reservar em sua obra um volume tão
grande de poemas dedicados ao mar. Fui me
interando sobre o trabalho dela, passei três
anos estudando a sua obra'''', diz.
Sophia tem um jeito bem português de falar sobre
o mar, concorda a cantora - não é a praia, como
costuma ser para os brasileiros, mas o
Atlântico. E, neste caso, o paralelo entre as
duas transcende a obra, e remete à infância de
Bethânia. Lembra a primeira vez que a menina de
Santo Amaro da Purificação viu o mar: ''''Santo
Amaro tem saída marítima. A primeira vez que eu
vi o mar foi saindo de barco a vapor, para
Salvador. Eu tinha cinco, seis anos. Logo na
primeira vez, eu vi o mar, o mar mesmo, e não a
praia. Foi muito forte, inesquecível.''''
Serviço
Maria Bethânia. Citibank Hall (1.450 lug.). Al.
Jamaris, 213, Moema, 6846-6040. 6.ª e sáb., 22
h; dom., 20 h. R$ 100 a R$ 160. Até 9/12
(©
Estadão)