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Eduardo Coutinho |
Coutinho filma com uma câmera impassível, e nisso não há apenas uma
atitude estética
MARCELO COELHO
EXISTE ALGUMA coisa de padre em Eduardo Coutinho. Os óculos fora de moda,
o cabelo branco, a voz rugosa e ao mesmo tempo acolhedora, a quase
permanente invisibilidade de sua figura, contribuem para dar a seus filmes
certa semelhança com uma sessão de confessionário.
"Jogo de Cena", documentário mais recente do diretor, acentua esse
aspecto sacerdotal. Mulheres de diversas idades e origens sociais se
aproximam, no escuro, da cadeira simples onde serão entrevistadas por
Eduardo Coutinho.
Parecem intimidadas; atenderam uma convocação feita em anúncio de jornal,
onde se buscavam mulheres com mais de 18 anos que "tivessem uma história
para contar". Diante do silencioso senhor que as recebe, e que lhes impõe
imediato respeito, entregam a alma, como se precisassem de absolvição.
Mas há também a equipe encarregada de filmar a cena; a entrevista não
transcorre numa igreja, e sim no palco de um teatro vazio. Uma estranheza
toma conta do lugar.
São entretanto verdadeiros, certamente, os casos que se relatam ali:
filhos que morrem poucas horas depois do nascimento; filhos assassinados;
filhos desaparecidos, maridos que reaparecem...
Está em cena um drama religioso de morte e ressurreição. Fala-se de
sonhos em que o filho morto surge para reconfortar a mãe de sua perda;
fala-se de vidas que recomeçam depois de golpes devastadores.
Eduardo Coutinho não diz nada; filma tudo com uma câmera impassível, e
nisso não há simplesmente uma atitude estética (a de não acrescentar
sentimentalismo a situações em que a realidade fala por si mesma).
Talvez se queira sugerir, por meio das confissões de pessoas tão
diferentes, que a sobrevivência psicológica é uma espécie de talento
distribuído desigualmente entre os seres humanos.
Há pessoas que, muito provavelmente, não se recuperarão nunca dos
estragos que fizeram a si mesmas e aos outros. Algumas entrevistadas,
contudo, mostram-se dotadas de uma vontade de vida que as torna capazes de
superar os piores desastres.
Haveria um nietzschiano por trás desse documentarista tão ascético e
apostólico? Sem dúvida, seus filmes terminam resultando num argumento
considerável contra os recentes manifestos ateístas de Richard Dawkins ou
Christopher Hitchens: o espiritismo, o candomblé, qualquer outra forma de
religião representa, para muitos de seus entrevistados, um recurso
necessário ao reequilíbrio pessoal.
Acontece que, a começar do título, "Jogo de Cena" visa também a ser uma
escola de incredulidade. Atrizes conhecidas do público, como Marília Pêra e
Fernanda Torres, repetem para as câmeras os depoimentos reais colhidos pelo
diretor. Podemos comparar o desempenho da atriz que conta um caso trágico
com a fala da mulher que o viveu na realidade.
E não é preciso chegar à memorável cena de constrangimento de Fernanda
Torres (que vê seu talento de atriz derrotado pelo texto que tinha a
interpretar), para ver que a realidade supera qualquer representação. As
atrizes enfraquecem, quase sempre, o relato vivo que estavam encarregadas de
reproduzir.
Na obra desse documentarista rigoroso, a realidade vence a ficção,
portanto, do mesmo modo que a ilusão religiosa é aceita pelo efeito prático
que produz, mas não deixa de ser denunciada como ilusão.
Só que "Jogo de Cena" prepara um truque de mágica quando se pensa que já
estava tudo dito e redito para o espectador. Perto do final do filme,
descobrimo-nos vítimas de uma ilusão, astuciosamente armada por Eduardo
Coutinho. Esse padre discreto é capaz de pérfidos milagres.
Como ficamos? Este comentador descrente se vê enganado pelo "Jogo de
Cena" de Coutinho, percebendo-se mais crédulo do que gostaria de pensar. Um
espectador religioso sairá provavelmente mais feliz, vendo confirmada a
utilidade de sua fé, ignorando sem dúvida todo o exercício de ceticismo
realizado pelo diretor.
Quanto a Eduardo Coutinho, ele permanece escondido, num palco escuro,
espectador do mundo, quase desumano em seu silêncio e em sua distante
compaixão. Não consigo acreditar em Deus, mas acreditar em Eduardo Coutinho,
quem sabe, já ajude alguma coisa.
(©
Folha de S. Paulo)
Em
''Jogo de Cena'', atrizes
consagradas, como Fernanda
Montenegro, Andréa Beltrão e Marília
Pêra, interpretam histórias de vida
de personagens anônimas
por André Nigri
Eduardo Coutinho está para o documentário
brasileiro assim como David Wark Griffith, o autor do seminal O
Nascimento de uma Nação, está para o cinema de ficção americano. Ele
é o patriarca de onde todos descendem, o inventor de uma nova gramática,
o criador de um estilo. Cabra Marcado para Morrer, de 1985, foi a
grande influência dos documentaristas brasileiros contemporâneos. A
principal inovação do filme é que a voz que narra não é mais de fora, e
sim dos personagens, entrevistados à exaustão. Este "dar a voz ao outro"
tinha fora do Brasil um modelo no qual se pode notar uma possível
influência para Coutinho: o cinema-verdade francês. Em 1960, Jean Rouch
e Edgar Morin exibiram Crônica de um Verão (que acaba de ser
relançado em DVD), filme que aborda problemas existenciais de moradores
de Paris, escolhidos ao acaso, a partir de uma questão: você é feliz? A
temática de Cabra Marcado para Morrer é diferente, mas segue o
princípio de dar voz aos outros. A partir dos anos 1980 é quase
impossível não reconhecer a influência de Coutinho em documentaristas
tão diversos, como João Moreira Salles (Peões), Thereza
Jessouroun (Samba), Paulo Caldas e Marcelo Luna (O Rap do
Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas), entre outros.
Quando se pensou que Eduardo Coutinho se
contentaria com o posto de inventor de um novo estilo de documentário,
ele resolveu inovar ainda mais. Com Santo Forte, de 1999, criou o
chamado "cinema de conversa", no qual o imaginário dos personagens é
mais importante do que o factual. Jogo de Cena, seu décimo longa,
que entra em cartaz neste mês, radicaliza essa idéia, e está destinado a
se tornar um marco. De um lado, é o "cinema de conversa" levado ao
extremo. De outro, estica tanto os limites do documentário que acaba por
desembocar do lado oposto, a ficção - e irrompem, lado a lado com
personagens reais, as atrizes que as interpretam, como Fernanda Torres,
Marília Pêra e Andréa Beltrão.
Como sempre no caso de Coutinho, a
sinopse parece simples: atendendo a um anúncio de jornal, 83 mulheres
contaram suas histórias de vida em um estúdio. Em junho do ano passado,
23 foram selecionadas e filmadas no Teatro Glauce Rocha, no Rio de
Janeiro. Três meses depois, atrizes (entre elas Marília Pêra, Andréa
Beltrão e Fernanda Torres) interpretaram, à sua maneira, as histórias
contadas pelas personagens. Por exemplo, o caso de Sarita Houli Brumer,
que fala sobre relações de perda com o pai e as dificuldades com a
filha. Depois de seu primeiro depoimento, Sarita pediu para voltar e
contar mais um pouco de sua história. É ela quem fecha o documentário.
Outro depoimento comovente é de Débora Almeida, jovem que saiu do
interior de Minas e engravidou ao chegar a São Paulo, enfrentando
inúmeras dificuldades para sustentar o filho.
MEMÓRIA INVENTADA
Ao longo dos 105 primeiros minutos, vemos
o Coutinho de sempre, capaz de arrancar belíssimas e impensadas
histórias de seres anônimos. Neste caso, os temas podem ser resumidos no
universo feminino: separações, perdas, depressão, gestação, relações
familiares complicadas, sonhos, reconciliações. Até aqui, um
documentário de Eduardo Coutinho clássico. É a partir daí que surge a
inovação. No palco limpo de um teatro com cadeiras vazias, o espectador
é confrontado com atrizes que não só representam as personagens anônimas
como vez por outra são colocadas em situações reais, ao falar da
dificuldade de interpretar e confessar momentos de suas próprias vidas.
Jogo de Cena
trabalha com a matéria mais preciosa ao cinema de Coutinho, a memória. E
a memória é uma invenção do passado, não cansa de dizer o cineasta. "Não
me importo se o que as pessoas falam é verdade ou mentira, porque elas
falam de memória, e a memória é traiçoeira. Mas dessa tensão nasce o
imaginário, e isso é o importante", diz Coutinho. Desde Edifício
Master (2002), o documentarista não se propunha a uma reflexão tão
profunda sobre a tensão entre o real e o fictício. "Coutinho não possui
uma concepção estanque do que é documentário, mas um pensamento complexo
que se modifica a cada vez que ele se depara com um novo universo a ser
filmado", diz Consuelo Lins, professora da Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de um dos mais
importantes livros sobre o cinema do autor - O Documentário de
Eduardo Coutinho, Televisão, Cinema e Vídeo. "Nos filmes anteriores,
ele não explorava tanto essa dimensão enganadora da linguagem. Agora,
isso também está em discussão. Foi um passo radical na trajetória dele."
tensão nasce o imaginário, e isso é o importante", diz Coutinho. Desde
Edifício Master (2002), o documentarista não se propunha a uma
reflexão tão profunda sobre a tensão entre o real e o fictício.
"Coutinho não possui uma concepção estanque do que é documentário, mas
um pensamento complexo que se modifica a cada vez que ele se depara com
um novo universo a ser filmado", diz Consuelo Lins, professora da Escola
de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de um
dos mais importantes livros sobre o cinema do autor - O Documentário
de Eduardo Coutinho, Televisão, Cinema e Vídeo. "Nos filmes
anteriores, ele não explorava tanto essa dimensão enganadora da
linguagem. Agora, isso também está em discussão. Foi um passo radical na
trajetória dele."
E é na novidade desses pequenos universos
e das microhistórias contidas nele que Coutinho revigora a cada filme
seu cinema. Um cinema de risco, como ele próprio admite, já que não se
parte de um roteiro, mas de um "dispositivo", termo associado a ele e
que designa os procedimentos de sua filmagem. Em muitos casos, ausência
de som direto, cenários determinados e fechados e grandes pesquisas
prévias. Para fazer O Fim e o Princípio (2005), o diretor e sua
equipe de filmagens passaram um mês hospedados no sertão da Paraíba, sem
um roteiro definido.
Em Jogo de Cena há também um claro
diálogo com os reality shows da TV. "A televisão, seus programas
vespertinos e mesmo os telejornais sempre exploram a miséria e a vida
difícil do outro, mas é uma visão prepotente. O que me interessa aqui é
falar com o outro, quero que ele se expresse, assim consigo torná-lo
mais humano", diz Coutinho. Os longos planos também são indispensáveis
para que essa voz saia. "Quem na televisão dá um único plano para uma
única pessoa por mais de alguns segundos?", questiona ele. O cineasta
João Moreira Salles, produtor de Jogo de Cena, escreveu certa vez
sobre o diretor: "O cinema de Coutinho dedicou-se a reunir um conjunto
de histórias fragilíssimas, oferecendo a cada uma delas aquilo que, em
outros filmes e outras circunstâncias, elas não teriam: proteção". Se as
histórias são verdadeiras ou não, é o que menos interessa.
(©
Bravo Online)