Diário
inédito do artista no Benin tem publicação póstuma
Olívia Mindêlo
oliviamindelo@jc.com.br
No final da década de 60, ao encontrar Carybé no Rio de Janeiro, a
escritora Clarice Lispector soltou uma de suas perguntas: “O rosto
humano lhe interessa desenhar?”. O artista plástico prontamente lhe
respondeu: “Me interessa demais até, mas eu não sou retratista. O que
mais apreendo são gestos do corpo todo, movimentos, maneira de sentar,
de andar, de carregar coisas, enfim, a vida humana e a dos bichos”. Com
essas palavras, o ilustrador dava à autora a síntese de uma poética, a
sutileza que está por trás dos traços de alguém que fez do olhar sua
ferramenta e das andanças pelo mundo, motivos de trabalhos reveladores.
É justamente esses aspectos que encontramos em Impressões de Carybé nas
suas visitas ao Benin, um diário inédito de suas viagens ao país
africano, nos anos 60 e 70, que acaba de vir a público após dez anos de
sua morte, data lembrada em outubro deste ano.
Tal qual fez o amigo Pierre Verger na fotografia, Carybé conseguiu
captar visualmente, de maneira muito peculiar, o cotidiano e o legado
simbólico das sociedades negras, nesse caso da africana da costa do
Atlântico. Etnografia em traços leves, econômicos e dinâmicos, capazes
de nos levar, com simplicidade e sentimento, às cenas da vida de uma
população cuja cultura, calcada na religiosidade, ecoou no território
brasileiro desde os anos da escravidão. Os gestos, os movimentos, a
maneira de sentar, se vestir, enfim, os elementos frisados a Clarice
Lispector, estão todos nesse diário de viagem a Benin, cujas páginas não
se limitam a desenhos, mas também a anotações descritivas (“Aqui não há
cavalos, nem éguas. Há um capim venenoso que os mata”), opinativas (“São
panos da maior beleza e as mulheres com uma elegância natural”) e até
poéticas (“Elas recolhem o vento com o pano”).
É evidente a sua preocupação em tentar fazer uma ponte entre a
religião afro-brasileira e o candomblé africano, mas, para isso, ele não
passa, em nenhum momento, por um compromisso acadêmico, embora demonstre
um profundo conhecimento acerca dos cultos e orixás.
A filha do artista, Solange Bernabó, revelou que, na verdade, ele
nunca fez os cadernos de viagem pensando em publicá-los. Talvez por isso
estamos diante não de um livro documental simplesmente, mas de uma
relíquia, que chama atenção pelos desenhos fabulosos e, em seguida, nos
prende pela história. Os relatos são despretensiosos, ricos e agradáveis
de ler, como se estivéssemos na África, acompanhando lado a lado o
viajante.
“O caderno foi encontrado (em 2005) na gaveta da cômoda do ateliê de
Carybé, quando eu procurava, com Solange, material para mostrar na
grande exposição que o Museu Afro Brasil fez sobre ele (O universo
mítico de Hector Paride Bernabó – o baiano Carybé). Mas o caderno
permaneceu inédito e, agora, com os dez anos da falta dele, nós
resolvemos publicá-lo e mostrá-lo”, contou Emanoel Araújo, diretor e
curador do museu em São Paulo. “Trata-se de um relato de uma pessoa
envolvida com a questão afro-brasileira, sobretudo religiosa, mas não
só. Um documento histórico e até científico, de certa maneira, de alguém
que viveu na Bahia de corpo e alma, não ficou na superfície”, comentou
Araújo, artista baiano que também conviveu com Carybé.
Solange ressaltou que o curador publicou o achado “tal qual encontrou
nas gavetas”. A escolha calhou num acabamento editorial muito
bem-cuidado, em formato de álbum, com as letras originais do narrador, e
papel amarelado que lembra o dos cadernos de desenho profissionais e
ressalta a tinta preta utilizada por ele em “rabiscos” que lembram ora
croquis de moda, ora story-boards de cinema.
Carybé (nome de um peixe) foi a alcunha escolhida pelo artista para
“substituir” o nome de batismo Hector Julio Paride Bernabó, parecido com
o do irmão, também pintor. Ele nasceu na Argentina, mas mudou-se para o
Brasil ainda criança. A partir de 1950, elegeu Salvador, na Bahia, como
sua residência definitiva. Foi lá onde ganhou fama e é onde funcionará o
Instituto Carybé, ainda sem data de inauguração.
» Impressões de Carybé nas suas visitas ao Benin – Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo e Museu Afro-Brasil, 68 páginas, R$ 40 (à
venda no site www.imprensaoficial.com.br e em breve nas livrarias).