Foto: Reprodução
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Quadro "Loja de Rapé", aquarela inacabada em que o pintor Jean-Baptiste
Debret retrata escravos urbanos no Brasil do século 19 |
Cartas do autor a d. Pedro 2º, nas quais defendia o cativeiro no país,
são pela 1ª vez publicadas em livro, 140 anos depois
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
"A escravidão caduca, mas ainda não morreu; ainda se prendem a ela graves
interesses de um povo. É quanto basta para merecer o respeito."
Quem vinha a público, em 1867, desejoso de ser ouvido na defesa do
cativeiro no país era o romancista José de Alencar (1829-1877). A memória
histórica no Brasil, no entanto, silenciaria seus argumentos no século
seguinte.
A frase aparece numa das sete cartas públicas em que, naquele ano, o
autor de "Iracema" criticou o imperador d. Pedro 2º por propor que o país
começasse a pôr fim gradual à escravidão. Só agora, 140 anos depois, elas
ganham uma edição em livro, "Cartas a Favor da Escravidão" (ed. Hedra), que
chega nesta semana às livrarias.
Embora diversos pesquisadores tivessem conhecimento de sua existência
-que era citada em alguns trabalhos- e das posições políticas de Alencar, o
conteúdo das cartas não chegou a ser reimpresso. O conjunto não aparece, por
exemplo, nas obras completas do autor romântico, organizadas em 1959 pela
editora José Aguilar (hoje Nova Aguilar).
No final dos anos 90, a historiadora Silvia Cristina Martins de Souza
encontrou as cartas na Biblioteca Nacional, no Rio.
Republicou parte delas numa revista especializada da Unicamp. "Elas não
haviam sido reproduzidas no século 20", diz a pesquisadora, que atribui o
"esquecimento" do material ao "desconhecimento e desinteresse" sobre a obra
de Alencar.
O organizador do livro que vem agora a público, Tâmis Parron, tem opinião
diferente.
Ele escreve na introdução aos textos de Alencar que se trata de uma
"provável tentativa de expurgar sua memória artística de uma posição
moralmente insustentável para os padrões culturais hegemônicos desde o final
do século 19".
"É um expurgo? Pode ser. É provável, mas não tenho acesso a documentos
que provem essa hipótese", disse o historiador, em entrevista à Folha.
Procurada, a Nova Aguilar não respondeu aos questionamentos sobre a
lacuna e sobre a possibilidade de inclusão das cartas em edições futuras (a
última, esgotada, saiu em 1965).
As "Novas Cartas Políticas de Erasmo", como foram denominadas, numa
referência ao pensador holandês, apareceram num momento de crise
internacional da escravidão. Com o fim da Guerra Civil Americana (1861-1865)
e da servidão nos EUA, aumentaram as pressões internacionais para que o
Brasil, como último país independente da América a mantê-la, pusesse fim à
instituição.
No princípio de 1867, o imperador pede que seu gabinete encaminhe ao
Legislativo uma proposta de discussão que resulte num prazo para o fim da
escravidão.
Instituição necessária
É em reação a essa movimentação de d. Pedro que Alencar argumenta, em
suas cartas, contra a extinção por lei de uma instituição que, para ele,
deveria acabar como resultado de um processo "natural" de maturação
-processo que na Europa, ele diz, levou séculos.
O escritor e político -falava como integrante do Partido Conservador-
reconhece que a escravidão já se apresentava "sob um aspecto repugnante",
mas completava que "ainda mesmo extintas e derrogadas, as instituições dos
povos são coisa santa, digna de toda veneração". "Nenhum utopista, seja ele
um gênio, tem o direito de profaná-las. A razão social condena uma tal
impiedade." As "razões sociais" do cativeiro no Brasil eram muitas, segundo
o autor. Em primeiro lugar, de ordem econômica, já que era pelo trabalho
escravo que se mantinha a produtividade das unidades agro-exportadoras do
século 19. Depois, política, já que era daí que o
Estado tirava recursos para existir.
Mas também "social", já que, segundo Alencar, a instituição no Brasil
trazia a promessa de inserção, como cidadão (ainda que parcial), do escravo
alforriado e de seus filhos.
Finalmente, num raciocínio pouco usual na época, Alencar, de certa forma
prefigurando Gilberto Freyre, autor de "Casa Grande & Senzala", afirmava que
a escravidão permitia a existência de uma cultura original no Brasil, fruto
da "miscigenação" de costumes entre "brasileiros" e negros africanos.
CARTAS A FAVOR DA ESCRAVIDÃO
Autor: José de Alencar
Organizador: Tâmis Parron
Editora: Hedra
Quanto: preço a definir (160 págs.)
(©
Folha de S. Paulo)
Análise/livro/"Cartas a Favor da
Escravidão"
Esforço
letrado de Alencar é chocanteTextos publicados revelam
um escritor admirável e ao mesmo tempo execrável, que faz pensar nos novos
senhores do Brasil
TALES AB'SÁBER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quem ler as "Cartas a Favor da Escravidão", de José de Alencar, que a
editora Hedra publica após 140 anos de sua primeira aparição, deve se
espantar. De fato, o livro tende para o inacreditável.
Há muito que circula a percepção em círculos progressistas de que as
elites nacionais poderiam funcionar por princípios pré-modernos em plena
modernidade, diante dos quais o horizonte real de desenvolvimento social do
país não é um móvel histórico forte.
A vida ideológica estável de nossa época nos impede de checarmos as
concepções de mundo do poder e seu controle do corpo e destino no mundo do
trabalho. Em um tempo em que todo poder emana do capital, e a crítica da
violência no espaço do trabalho está vedada por princípio, apesar da virtual
escravidão, a verdade é que a violência contra o trabalho continua aí,
presente, configurando amplos setores da economia. No entanto, tais novos
senhores do trabalho do outro estão justificados a priori.
Afinal, imensas empresas, como as grandes marcas esportivas ocidentais,
não exploram também ao extremo o trabalho, até mesmo o infantil, no sudoeste
asiático, ao mesmo tempo em que terceirizam as responsabilidades, como se
nada tivessem a ver com essa ordem de iniqüidades, mesmo quando ganham tudo
com ela?
Clareza e astúcia
Em uma certa passagem de nossa modernidade, José de Alencar se pôs a
defender, com seu estilo transparente e elegante, a posição do Partido
Conservador pela manutenção da escravidão no Brasil. A instituição estava
abalada, pois fora abolida no império inglês (1833), nas colônias francesas
(1848) e nos EUA (1863).
As pressões sobre o Brasil eram grandes, e d. Pedro 2º sinalizava, mesmo
que de modo muito lento e gradual, para o horizonte de supressão do trabalho
escravo. Então Alencar escreve essas peças execráveis, mas, paradoxalmente,
admiráveis pela clareza e pela astúcia, sustentando a necessidade
civilizatória da escravidão.
Fundado em um princípio de violência inconciliável da civilização com a
natureza e com o outro humano -o bárbaro-, que seria civilizado pela força
avançada que o poria como escravo, mas força que também o tornava um virtual
sujeito para ele próprio, Alencar se utiliza de todos os argumentos
imagináveis em seu tempo para justificar o modernamente injustificável, do
risco de crise social à necessidade econômica fatalista e até mesmo um
desenho de amálgama de raças pela miscigenação e pela cultura, que faria da
escravidão a mãe da cultura nacional.
Hoje, o esforço letrado e frio do escritor é chocante e nos parece vazado
de desfaçatez. Algo parece ter mudado no valor dos fatos e da história.
Mas o que podemos dizer dos neo-senhores, que mantêm condições de terror
e ignomínia no mundo do trabalho? Se eles fossem obrigados a falar, como
recentemente os neocons americanos o fizeram para justificar a ilegítima
invasão no Iraque, seu sistema de razões e sofismas soaria semelhante ao do
elegante e culto senhor de escravo e romancista brasileiro, como toda ordem
de razão que emana da pura força.
De modo algum é acaso que este tenha sido o único trabalho publicado do
autor no século 19 ausente das obras completas de 1959. Tal voz conservadora
é de fato mais poderosa quando silenciosa, quando não mais necessita se
justificar. Por isso o livro de Alencar é importante. Ele dá voz e
configuração ao que silencia, pois não necessita justificativa, e pode
apenas agir, tão sistematicamente no Brasil.
TALES AB'SÁBER é psicanalista, membro do Instituto
Sedes Sapientiae e autor de "O Sonhar Restaurado" (ed. 34)
(©
Folha de S. Paulo)