Diretor lança seu novo filme, Romance, que se
inspira em música de Caetano Veloso e filme de François Truffaut
Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com
“Uma das coisas
boas de lançar um filme é poder já estar pensando no próximo”, disse ontem,
durante um almoço, no Pina, o cineasta pernambucano Guel Arraes. No Recife
para apresentar seu último filme, Romance, Arraes confidenciou que o sistema
de já ter um novo projeto encaminhado funciona bem para sustentar o tranco
de colocar um filme novo no mundo, com as tensões inerentes ao processo
(receptividade do público, da crítica).
Seu próximo
projeto será uma atualização de O Bem Amado, de Dias Gomes, com Marco Nanini
no papel principal que foi, de certa forma, imortalizado na cultura
brasileira por Paulo Gracindo na Globo dos anos 70. “A pré-produção já está
a pleno vapor, estamos procurando locações e devemos filmar no final de
janeiro”.
Guel
mostrou-se pouco entusiasmado com a possibilidade de fazer cinema popular
sem povo, e com as carreiras possíveis que filmes são capazes de ter
atualmente no Brasil. Ele acredita que o novo projeto faça o duplo salas de
cinema/depois minissérie na Globo, estrutura invertida se lembrarmos que
Auto da Compadecida (2000), seu primeiro longa metragem, passou primeiro na
TV.
Com uma obra
marcada pelo tom híbrido da sua linguagem – “dirigi três peças, mas, na
verdade, eram mais TV do que teatro como texto” – Guel Arraes chega a
Romance com um filme onde o número de cortes é menor do que os seus
anteriores, e com a suspeita de que talvez seja um filme “mais fechado” do
que Auto ou Lisbela e o prisioneiro (2003) que, juntos, venderam mais de
quatro milhões de ingressos. O filme será lançado nacionalmente amanhã, com
cerca de 90 cópias, número médio grande.
“Essa questão
da linguagem sempre me chama a atenção. Saí do Recife em 1969 e em Paris eu
tinha um gosto muito alternativo para cinema, inclusive evitando ver filme
americano, me apaixonando por Jules e Jim e freqüentando a Cinemateca
Francesa de Henri Langlois. Quando voltei para o Brasil, fui trabalhar
direto na Globo, e de repente me vi questionando aqueles preconceitos
anteriores meus.”
Guel Arraes
também parece fazer uma auto-reflexão sobre um dos seus personagens em
Romance, o do chefão televisivo de José Wilker. “Vejo nele muita coisa de
Daniel Filho e do Boni, mas também de mim mesmo como produtor.”
SEMPRE O
AMOR
Ele vê o amor
como o motor do seu filme novo, baseado em dois pontos: “a música de Caetano
Veloso e Jules e Jim, de Truffaut. São obras que discutem o amor
contemporâneo que marcaram minha vida. Outra coisa é trabalhar com grupos de
teatro que sempre me pareceu muito doce e nostálgico, que talvez remeta aos
anos 70, meus anos de formação”.
Sobre Tristão
e Isolda, Arraes definiu seu interesse pela obra como “técnica”. “Para fazer
uma história de amor sobre o amor, pensamos originalmente em Dom Quixote e
Dulcinéia. O amor como ser intransferível, inexprimível, é um bom tema para
ficcionalizar.”
Dentro da
idéia de criar uma ficção com tons sempre alegóricos, perguntamos a Arraes o
porquê de seu trabalho tentar evitar a realidade imediata, algo que Romance
já revela um pouco mais. “Interessante você levantar isso, pois minha
formação é de documentarista, mas na ficção me preocupo muito com o controle
sobre as coisas. A estação de metrô que está em construção no filme não está
ali por acaso, mas por fazer parte da história. Talvez seja algo que vem do
teatro!”
Guel
Arraes (foto) chega ao seu quinto longa – Romance (2008) – com uma leve mudança
de registro, ainda apaixonado pelos mecanismos da dramatização, mas com
toques de realidade invadindo não apenas os cantos da tela, mas também a
história em si. O filme, com Wagner Moura e Letícia Sabatella como um
casal marcado por raro tom agridoce humano na cinematografia brasileira
atual de “comédias românticas” robóticas, parece falar sobre tema
visitado com freqüência nas artes: a relação dos artistas com a
expressão e a própria vida.
O universo
de Arraes no cinema é marcado por tablados imaginados a partir de uma
mescla de cultura popular brasileira com uma certa rapidez de corte que
faz a crítica tradicionalmente gritar “TELEVISÃO!!”. O argumento é
auxiliado pelo fato de dois dos seus filmes (O auto da Compadecida e
Caramuru – A invenção do Brasil) terem surgido de projetos híbridos
feitos para a Globo (onde ocupa cargo vistoso de confiança artística).
Sua obra,
em visão retrospectiva, sustenta-se bem, com particular destaque para a
doce farsa de zona da mata estilizada que é Lisbela e o Prisioneiro,
adaptado com muita energia e doçura da obra de Osman Lins. De fato,
Arraes é um dos mais curiosos autores do audiovisual brasileiro, e isso
inclui o cinema.
Wagner
Moura (ator de qualidade superior constante) é um diretor de teatro que
acredita apaixonadamente no que faz, e isso inclui no mesmo pacote de
tesão a sua parceira de palco e adaptação (Tristão e Isolda) Ana
(Sabatella). Totalmente feliz com seu pequeno espaço e ribalta, ele terá
de lidar com a natural sedução da grande indústria, que vê em Ana um
rosto perfeito para ilustrar as tensões simplistas de uma novela, pílula
difícil que ele terá de engolir.
É muito
interessante observar Arraes em ação nesse filme. Sua trama é claramente
localizada na realidade. O teatro tem uma obra de metrô na porta, o
escritório da grande emissora de TV (não é a Globo, nominalmente ou em
marca, pelo menos) tem vista para a Baía de Guanabara e parece crível.
Boa parte dos obstáculos enfrentados por Paulo e Ana são identificáveis
no amor em tempos modernos, como conciliar carreira com vida pessoal.
De
qualquer forma, Arraes mostra-se bem mais interessado pela sua clara
paixão que existe nos mecanismos da narração, do contar uma história, e
suas propostas visuais para Tristão e Isolda como iluminuras, ou imagens
talvez referenciais ao cordel sugerem isso tanto quanto sua reflexão
constante sobre “fins” (como acabar uma história?), e que aqui ganha
toque metalingüístico que dará ao público um pouco de insight sobre os
mecanismos da linguagem em cinema.
Romance
termina sendo um exercício divertido de um autor particular. Vindo de um
cineasta que mistura tanto suas linguagens, parece sugerir que a atuação
existe dentro e fora do palco, e que na televisão temos a arte do
fingimento.
A
discussão sobre a qualidade dos programas de TV é recente entre os
estudos universitários. Os primeiros trabalhos acadêmicos se
preocupavam mais com o caráter ideológico, as relações de dominação
e alienação e processos comunicativos (emissor, mensagem e receptor)
do que com o conteúdo artístico dos programas produzidos. Com
lançamento hoje, às 18h30, no foyer do JCPM Trade Center, o livro
Guel Arraes – Um inventor no audiovisual brasileiro, escrito pelos
professores Alexandre Figueirôa, Aline Grego, Ana Paula Campos e
Cláudio Bezerra, da Universidade Católica de Pernambuco, e Maria
Eduarda Rocha e Yvana Fechine, da Universidade Federal de
Pernambuco, vem preencher uma lacuna na reflexão sobre o processo
televisivo ao abordar um dos núcleos mais criativos da principal
emissora de televisão brasileira. À sua frente, Guel é responsável
por programas consagrados pelo público e também pela crítica – um
rol extenso que começa com sua participação na direção da novela
Jogo da vida. Outros momentos marcantes são os programas Armação
ilimitada, TV Pirata e Programa legal, os episódios Lisbela e o
prisioneiro e Comédia da vida privada, de Brasil legal, as
minisséries O auto da Compadecida, A invenção do Brasil, além de
Central da periferia, para citar apenas os mais importantes
investigados pelos autores.
A
obra tem entre seus vários méritos o de ser uma obra acadêmica sem
ranço de academicismo. As citações estão diluídas no texto dos
autores, que flui sem obstáculos para o leitor, e em notas de pé de
página que esclarecem passagens ou citações.
O
discurso adotado pelos autores é de uma construção crítica e
analítica da obra desenvolvida pelo Núcleo Guel Arraes, apontando os
caminhos trilhados pelo diretor pernambucano, que é também
coordenador de um dos mais criativos – e com certeza dos mais
experimentais – centros de produção da Globo, tendo sob sua
responsabilidade os programas Casseta & Planeta Urgente!, Os
normais, Brasil legal, A grande família, Cidade dos homens, entre
outros.
Para
uma melhor compreensão da importância deste núcleo, os autores
analisam, primeiramente, como se deu o processo de consolidação da
Globo como a mais importante rede de televisão do País, relembrando
sua fidelidade ao regime militar, o acordo considerado ilegal com o
grupo Time-Life, a inferferência na eleição de Brizola ao Governo do
Rio, o boicote à campanha das Diretas-Já, entre outros episódios que
macularam a imagem da emissora, causando desgaste de uma imagem
construída dentro do “padrão Globo de qualidade”.
O
fortalecimento do papel de Guel dentro da Globo se dá justamente no
momento em que a emissora busca reconstruir essa imagem, sendo o seu
núcleo “uma boa síntese do que se propôs de original, criativo e
comercialmente viável nos últimos 20 anos”. O Núcleo Guel Arraes se
constitui “uma experiência duradoura o bastante para servir de
referência, e bem-sucedida o suficiente para mostrar que se pode
atender às exigências do público e publicidade sem abrir mão do
experimentalismo capaz de promover a renovação necessária à TV”.
O
“conjunto da obra” de Guel Arraes é analisado tanto do ponto de
vista da construção semiótica da edição de seus programas e
desenvolvimento do roteiro da adaptação de Lisbela e o prisioneiro
(no teatro, televisão e cinema), com suas idas e vindas, como também
do processo de formação do núcleo, apontado como “uma experiência
singular porque une em torno de si, de foma articulada, um grupo
criativo, de diretores, atores, roteiristas e redatores, oriundos de
meios artísticos e intelectuais independentes”.
Os
aspectos relacionados à montagem dos programas e filmes merecem uma
atenção especial de Yvana Fechine e Aline Greco. Cláudio Bezerra
tece as relações entre o Programa Legal e o cinema verdade do
etnólogo e documentarista francês Joan Roach com quem Guel Arraes
havia trabalhando de 1973 a 1979 no Comitê do Filme Etnográfico da
Universidade de Paris VII. Pode-se dizer que, ao ir para uma
emissora comercial como a Globo, Guel teve que negociar com a sua
biografia e seu passado de militante de esquerda.
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Guel Arraes – Um inventor no audiovisual brasileiro. Editora Cepe,
357 páginas. Lançamento hoje, às 18h30, foyer do JCPM Trade Center –
Av. Antônio de Góes, 60, Pina.