Mostra sobre Gilberto Freyre chega agora ao imponente e espaçoso prédio do
Santander Cultural, em Porto Alegre
Marcelo Pereira marcelop@jc.com.br
PORTO-ALEGRE –
Depois de levar 360 mil pessoas ao Museu da Língua Portuguesa em São Paulo,
a exposição Gilberto Freyre – Intérprete do Brasil ganha uma segunda edição.
Mas ainda não é desta vez que o sociólogo pernambucano e seu acervo voltam
para casa. Até o dia 15 de fevereiro de 2009, a mostra pode ser vista em
Porto Alegre, no imponente prédio neoclássico do Instituto Santander
Cultural, que abriga ainda a exposição-homenagem a Ariano Suassuna –
Iluminogravuras – a estética armorial. Ambas foram inauguradas na última
sexta-feira à noite, quase simultaneamente à abertura oficial da 54ª Feira
do Livro da capital gaúcha, que este ano é dedicada a Pernambuco e deve
atrair um público de 2 milhões de pessoas. “Gilberto deve voltar para casa
na data do seu aniversário, em 15 de março. As negociações com o governo,
Fundarpe e Museu do Estado estão em andamento. Faltam ser definidas as ações
educativas, de recepção de público e de comunicação. Vamos levar ao Recife a
expertise das duas mostras realizadas”, confirmou Gilberto Freyre Neto,
superintendente da fundação que leva o nome de seu ilustre avô.
A mostra em
exibição no Santander Cultural será vista por cerca de 100 mil pessoas,
segundo cálculos de Gilberto Neto, e é composta do mesmo acervo mostrado no
Museu da Língua Portuguesa – são cerca de 200 obras, entre desenhos e
pinturas figurativas (em estilo primitivista ou naïf), páginas manuscritas
de suas obras, documentos (passaporte, salvo-conduto, contrato de trabalho e
objetos pessoais), cartas (de Érico Veríssimo, Carlos Drummond de Andrade,
Cícero Dias, Villa-Lobos, Carolina Nabuco, filha de Joaquim Nabuco, entre
outros), as primeiras edições de seus livros publicados, a ilustração
original de Casa-grande & senzala (de Cícero Dias, datado de 1933) e
material de pesquisa, como os questionários que ele fazia para escrever
livros como Sobrados e mocambos. Alguns desses questionários inclusive foram
gravados para a mostra e podem ser ouvidos pelo público.
A mostra
também exibe um vídeo do programa Roda viva, da TV Cultura, com o escritor
pernambucano. Na sala Cine Santander, que fica na caixa-forte da antiga
agência bancária, também será exibido Gilbertianas brasileiras, que
confronta entrevistas realizadas pelo jornalista de Geneton Moraes Neto com
Gilberto Freyre e o cantor baiano Gilberto Gil, tratando de temas como
analfabetismo, os militares no poder (“Os militares são bitolados”, declarou
o pernambucano), juventude e maconha. É neste documentário que Gilberto
Freyre revela que fumou maconha movido por interesse antropológico. “A
maconha brasileira é muito brasileira. É como Macunaíma, é quase sem
caráter”, disse. “A sensação que eu fiquei é aquela de fim de festa. Você se
sente cansado, mesmo gostando dela”.
“O que
diferencia a mostra gaúcha da paulista é a forma de organização. No Museu da
Língua Portuguesa, a exposição era mais compacta e intimista. Aqui a casa de
Gilberto está explodida e dialoga com o espaço interno do prédio”, comentou
Antonio Carlos Sartini, superintendente do Museu da Língua Portuguesa. “É a
mesma exposição vista de uma maneira diferente”, definiu Sônia Freyre, filha
do escritor. “Nem lá na Fundação Gilberto Freyre dá para ver tudo isso
assim, por falta de espaço”.
“A mostra foi
pensada para itinerar e tem como objetivo instigar novos leitores do País,
destacando a riqueza e a diversidade de Gilberto, que estão nas expressões
cotidianas, no valor de pertencer a um lugar, uma terra, um trópico”,
conceitua a coordenadora geral, Júlia Peregrino. “Gilberto era um escritor
de caráter ibérico. Ele não separava a vida da obra, nem a obra da vida”,
lembro uma das curadoras da mostra, Elide Rugai Bastos, que juntamente com
Julia Peregrino e Pedro Karp Vasquez fizeram a seleção do material em
exposição.
Responsável
pela criação dos ambientes cenográficos, André Cortez procurou criar um
ambiente ao mesmo tempo íntimo e lúdico, provocando o público a abrir e
fechar portas e gavetas de armários onde estão as obras de Gilberto,
inclusive as receitas do livro Açúcar. Exímio frasista, Gilberto provoca a
reflexão através de frases transcritas espalhadas por todos os móveis
cômodos – do piso à parede, da mesa à geladeira, numa vitrine ou dentro da
roupa de uma sinhá, com as quais o público vai se deparando enquanto visita
a casa explodida. Vale a pena citar algumas: “De vez em quando sou acusado
de saudosista, como se saudade fosse uma coisa vergonhosa”, “Sou muitas
vezes acusado de conservador, mas o que eu quero conservar no Brasil?
Valores brasileiros que estão encravados principalmente nas formas populares
de cultura, formas regionais que dão um sentido ao Brasil” , “Eu pinto
escrevendo e acho que um pouco escrevo pintando” , “Há que deixar-se espaço
para dúvida e até para o mistério” e, finalmente, a frase escrita aos 17
anos: “Sem um fim social o saber será a maior das futilidades.”
O
escritor e secretário estadual de Cultura Ariano Suassuna é hoje um dos
ícones mais midiáticos da cultura brasileira. Sua presença na abertura
da exposição Iluminogravuras – A estética armorial, idealizada pelo
artista plástico Alexandre Nóbrega, causou o maior reboliço no Santander
Cultural, com um séqüito de fãs o acompanhando, querendo tirar fotos
abraçado com ele, beijá-lo e também ouvir suas explicações sobre os 29
desenhos, 10 iluminogravuras, 10 xilogravuras e os 104 ferros de marcar
boi, que recuperam as origens do movimento armorial, nos anos 70. A
síntese da mostra está definida num depoimento escrito de Ariano: “Unir
o texto literário e a imagem num só emblema, para que a literatura, a
tapeçaria, a gravura, e a escultura falem, todas através de imagens
concretas, firmes e brilhantes, verdadeiras ensígnias das coisas”.
Aos 81 anos,
Ariano mostra resistência. Embora tivesse com a voz rouca e falando
baixo, ele aproveitou para sugerir a mudança de local de algumas obras,
como por exemplo a de um homem branco no cavalo, representando o
demônio, feita para a o Romance da Pedra do Reino, que estava muito
distante do Cristo negro. Diante de uma gravura de mulher em
preto-e-branco, ele confessou apaixonado como sempre: “É o retrato de
Zélia, minha esposa. Veja o que escrevi: ‘E, se és, agora e sempre,
minha vida, o meu amor, por que me ligas à morte?’”. Ao lado, Zélia
acompanhava, com a serenidade e carinho de sempre.
“Eu não
sou artista plástico. Sou um escritor que ilustra seus próprios livros.
Mas esta exposição me deu uma dimensão muito boa da minha produção”,
declarou, modesto, Ariano. Andando de um lado para o outro cruzando a
sala, ele parecia se divertir fazendo uma improvisada e um pouco caótica
visita guiada.
Ariano
sabe que boa parte dos visitantes no primeiro dia de sua exposição será
dos participantes da 54ª Feira do Livro de Porto Alegre, que ocorre na
praça ao lado do Santander Cultural. Indagado por um entusiasmado
repórter de TV gaúcho – que não disfarçava sua condição de tiete – o
escritor disse que o maior desafio não somente da feira mas de todo o
Brasil é fazer que se cresça o hábito de leitura. “O Brasil tem 180
milhões de habitantes, mas a tiragem dos livros é de 1.000, 2.000, 3.000
exemplares. A TV pode prestar uma grande ajuda divulgando mais os livros
e eventos como a Feira de Livros”.
A
realização das exposições de Gilberto e Ariano, que ocorre
simultaneamente a homenagem a Pernambuco na Feira do Livro pode ser
entendida também como uma sinalização da aproximação do Santander com o
Estado, uma vez que o banco adquiriu o Real (ex-Bandepe) e no momento as
duas instituições financeiras passar por um programa de integração, com
a rediscussão da sua atuação na área da Cultura através do Santander
Cultural e do Espaço Cultural Banco Real. “O comitê de integração vem se
reunindo para o planejamento de sua atuação. Estamos mapeando as
convergências. Vamos selecionar o que de melhor as duas instituições
vinham fazendo”, diz a pernambucana Liliana Magalhães, superintendente
do Santander Cultural.