O baiano apresenta hoje o show de lançamento do seu mais
novo trabalho, no qual a bossa nova é fio condutor
José Teles
teles@jc.com.br
A bossa nova
não somente inventou o Brasil como contribuiu substancialmente para a
modernização da engenharia brasileira. Estas são apenas duas das várias
teses lançadas por Tom Zé, no disco Estudando a bossa – Nordeste Plaza
(Biscoito Fino), cujo show de lançamento acontece hoje, às 21h, no Teatro da
UFPE, com uma banda formada por Lauro Léllis (bateria), Luanda (vocais),
Cristina Carneiro (teclados e vocais), Daniel Maia (guitarra e vocais),
Renato Léllis (baixo e vocais) e Jarbas Mariz (bandolim, percussão, vocais)
Quem abre é a dupla Morse Lyra e Allan Sales.
Em Estudando
o samba (1976), Tom Zé dissecou o gênero, e todas suas vertentes, do sambão
jóia (ancestral do pagode romântico), ao samba pop à Antônio Carlos &
Jocafi. Em Estudando o pagode na opereta segrega mulher, ele lança um olhar
sobre o tão detratado subgênero do samba, porém de forma mais complexa, indo
além do tema proposto, incursionando pela problemática feminista. Agora, o
sempre irrequieto cidadão mais famoso de Irará (BA), nas 14 faixas do novo
CD, vai além dos limites dissonantes da bossa nova. Conta o caso como o caso
foi antes, durante e depois da BN, em um dos seus melhores trabalhos dos
últimos anos. A relação entre os três “estudos” é explicada por ele: “
Comuns são o útero e a negritude fértil. As diferenças são os compartimentos
sociais nos quais foram geradas. Cada compartimento, com sua escolaridade
diferenciada, pôde manejar diferentes quantidades de bits, diferentes níveis
de sofisticação, mas em todos está presente a grande força da consubstância
negra brasileira”.
E onde entra
a engenharia na música? “Como engenharia é assunto duro para canção, criei
uma situação romântico-mitológica entre Rio e Niterói para uma das canções.
Esta defende a tese de que foi a BN quem inspirou a engenharia a resolver o
problema da ponte. A BN fez, com notas musicais e síncopas (a acentuação no
tempo fraco) o que a engenharia fez depois com ferro, aço e concreto: as
plataformas flutuantes-sincopadas, frágeis ao sabor das ondas, femininas
como a BN, porém suficientemente fortes para o portar o pênis gigantesco, o
linga cósmico que foi capaz de estuprar o solo profundo da Baía da Guanabara
e construir as fundações da ponte Rio-Niterói”.
E como a
bossa nova inventou o Brasil, apesar de inimigos poderosos, da estirpe de
Antônio Maria e José Ramos Tinhorão? Tom Zé com a palavra: “Um acontecimento
forte, um protótipo como a BN, reverbera como ondas concêntricas na vida da
nação, em todos os campos e atividades profissionais, energizando invenções,
tiradas, contornos, insights, provocações. Mudaram as revistas, mudaram as
roupas, transformou-se o inverno como procedimento social. Ela mudou a
confiança conferida ao Brasil pelo exterior, influiu no comércio
internacional. Nasceu e cresceu um novo tipo de turismo. Imagina aí, cara,
um Brasil sem nada disso. Considere que quando a BN inventou o Brasil nossa
capital era Buenos Aires (também bela e querida), e a política dos coronéis
e caudilhos exercia-se em plena idade média”. Resumindo a resposta,
baianamente explicada. O Brasil começou o ano de 1958 como importador de
matéria-prima e começou 1959 como exportador de sofisticados produtos
manufaturados.
Para isso foi
necessário pôr abaixo belas, mas ultrapassadas, estruturas. É a isto que ele
se refere em O céu desabou. O espanto ante a nova batida, outra forma de
cantar, a temática das letras e o fim da era do rádio. Chega a ser irônico
que uma das rainhas do rádio, Elizeth Cardoso, tenha sido a anunciadora da
boa nova, no álbum Canção do amor demais, onde pela primeira vez se ouve a
batida demolidora do violão de João Gilberto. “Sempre me comoveu, com alguma
dor e até saudade, o terremoto inimaginável que caiu, da noite para o dia,
sobe todo aquele elenco de grandes cantores e cantoras, paixão da vida
brasileira, que nos auditórios superlotados da Rádio Nacional, Tupi, Mayrink
Veiga, encantavam a nação. De repente o céu desabou! Só se queria saber da
BN. Só se falava de BN. Para eles, então monarcas instituídos, foi um
pesadelo. Um enterro precoce. Porém, com a BN a não mostrou sua fome pelo
protótipo, pela aventura sublime da invenção. Pelo sonho de sentir um País
pobre impondo ao mundo admirado uma nova linguagem”,
O show de
hoje será, obviamente, baseado em Estudando a bossa, com inserções de
canções de discos anteriores, que devem remontar ao período tropicalista, e
pós-tropicalista, como 2001. Mas poderia se limitar ao repertório do CD, que
começa com o célebre motto de Getúlio Vargas, “Trabalhadores do Brasil”, e
conta, tim-tim por tim-tim, a aventura da bossa nova, valendo-se dos seus
elementos e personagens. Uma das mais bem-resolvidas destas lições está em O
filho do pato (com Arnaldo Antunes), na qual estão embutidos praticamente
todos os elementos da BN, com o “avô” do pato, “o tico-tico no fubá”
ensaiando o vocal. Genial
» Projeto
MPB Petrobras com Tom Zé e banda, abertura com Morse Lyra e Allan Sales,
hoje, 21h. Teatro da UFPE, campus da UFPE. Ingressos: R$20 e R$10. Outras
informações: 3231-5196.
Tom Zé
refuta os comentários elogiosos do cantor baiano sobre seu novo álbum e
lança mais uma polêmica na MPB, aproveitando para lembrar seu longo
período de ostracismo
“Ouvi o disco de Tom Zé. Muito legal. Muito ele mesmo. Quando li que se
chamava Estudando a bossa, ri, gostei do tom de trilogia com os outros
dois ‘estudandos’, e fiquei curiosíssimo para ver como é que ele ia
tratar musicalmente o assunto. Diferentemente de mim, de Gil, de Gal e
da torcida do Bahia, Tom Zé nunca foi um bossanovista. Comentando o
Estudando o samba com David Byrne em Nova Iorque, logo que saiu a
primeira coletânea de Tom Zé que ele fez, eu disse: ‘Muito da força
desse disco vem de Tom Zé não ser da área do samba: ele não é do
Recôncavo, tem sotaque do sertão, não é meio carioca como o povo de
Salvador’”... É um comentário de comentários sobre os ritmos do samba,
as levadas, as batidas - e é o Rio... Os contrapontos engraçados, os
contrapontos inventivos, os contrapontos sofridos, tudo no disco é Tom
Zé puro”. Trecho pinçado do comentário no blog Obra em progresso, de
Caetano Veloso, dia 19 de novembro.
Os elogios
desaguaram na mais nova polêmica do momento. Em seu próprio blog, dias
depois, Tom Zé recusou os maiores encômios: “Não, Caetano. Não posso
aceitar. Agora estou irremediavelmente desertado e não posso mais voltar
para o colo do grupo baiano. Você sabe que seus braços são preciosos e
irresistíveis, mas não posso ir comemorar neles este disco, nem com
você”, e aí relacionou nomes de amigos que estiveram ao seu lado nos
tempos das vacas magras, na década de 80.
Entre
esses estiveram o artista plástico Elifas Andreato e o diretor da Som
Livre (e da antiga RGE), João Araújo (“que chegou a me mandar, vejam só,
dinheiro escondido naqueles tempos.”). Os tempos de que Tom Zé lembra
são aqueles em que caiu no ostracismo, enquanto seus conterrâneos
tropicalistas eram alçados ao status de superestrelas da música
brasileira. Contam que quando David Byrne, encantado com o LP Estudando
o samba, que comprou num sebo do Rio, telefonou para Caetano para saber
do paradeiro de Tom Zé. Caetano teria dito: “Não seria Tuzé de Abreu?”
(nome do músico baiano, que tocou na banda de Caetano)
Em 1993,
nos 15 anos do movimento, foi lançado o disco Tropicália 2, no qual quem
organizava o movimento e orientava o carnaval era a dupla Caetano e Gil,
sem nenhum outro tropicalista de primeira hora participando do disco ou
da turnê. Um ano antes Tom Zé, já na Luaka Bop, o selo de David Byrne,
havia lançado o disco que marcou sua segunda vinda, The hips of
tradition, e rumava para se tornar um dos artistas brasileiros com mais
trânsito no exterior. De forma que os elogios de Caetano Veloso chegaram
um pouco atrasados – pelo menos 15 anos.
Tom Zé
voltou a recusá-los, domingo passado (dia 23), em show no Ibirapuera, em
São Paulo, usando, mais ou menos, os mesmos termos que empregou no blog
e uma expressão mais, digamos, apimentada. Caetano, com uma complacência
que, normalmente, não é do seu feitio quando é fustigado, contemporizou:
“Eu não sou o grupo baiano. Eu sou eu. E você não precisa recusar um
abraço meu para ser grato a quem o ajudou. Eu gosto de você. Não
precisamos desses surtos de ressentimento.” A tréplica até o momento não
veio, talvez nem venha. Tom Zé disse, pelo visto, só umas reprimidas e
merecidas “poucas e boas”. (J.T.)
O cantor e compositor baiano Tom Zé é sério candidato a receber os
prêmios de "melhor de disco do ano" com o seu Estudando a Bossa -
Nordeste plaza (Biscoito Fino).
Baiano interpreta canções do novo disco e
clássicos de sua carreira. Foto: André Conti/Divulgação
Isso se ele também não descolar o primeiro lugar na categoria
"personalidade musical" nas listas dos críticos e do público. O disco,
lançado justo quando se comemora os 50 anos da Bossa Nova, é uma
declaração de amor ao movimento musical recoberta por um véu de ironia
refinada e complexa.
A provável boa repercussão desse novo trabalho deve ampliar as lotações
das apresentações desse baiano de Irará. Sua inquietude, dinamismo e,
vamos lá, genialidade, transformam as performances ao vivo em um
espetáculo que transfigura o que é registrado em CD. Os recifenses que o
aguardam hoje, no palco do Teatro da UFPE (projeto MPB Petrobras), podem
comprovar: Tom Zé é também um mutante. Não será supresa se o show aqui
seguir um roteiro bem diferente do registrado em outras capitais.
Ocerto é que, além do repertório de Estudando a Bossa, Tom Zé tem
cantado pérolas do sua carreira. Também parece ter esgotado o arsenal de
respostas a Caetano Veloso, depois que este rasgou elogios ao disco no
seu blog e e deflagrou uma polêmica. Tom Zé surpreendeu a todos com o
tom ressentido de um comentário feito depois de um show ("vá tomar
no..."). Afinal, nas declarações anteriores sobre o Estudando a Bossa,
ele elogiou (ou ironizou?) Caetano e Gil, a quem chamou de "verdadeiros
homens finos# depurados, muito perto da compreensão do que Tom Jobim,
João Gilberto e Carlos Lyra estavam fazendo". Ele, Tom Zé, por outro
lado, diz ter feito música "crua e bárbara".
Esse suposto primitivismo é redimido com Estudando a Bossa, um olhar
enviesado, mas sem nada de indigesto, sobre a suavidade da bossa nova.
Se chegou perto da "coisa fina" com Estudando a Bossa, Tom Zé diz que
foi graças ao tipo de leitura que tem feito, ao tai chi chuan que
pratica e à mulher culta com quem é casado (Neusa Martins, também sua
produtora). Tudo isso, segundo ele, gerou a transformação capaz de lhe
permitir criar um disco de bossa nova.
Sem os experimentos verbais, harmônicos e melódicos esse seria apenas um
disco de ótimas, refinadas e bem acabadas canções. Mas só quem não
conhece Tom Zé para imaginar que essa subtração fosse possível. Na
versão para o palco, além do próprio cantor-ator, estão os
músicos-vocalistas de sua banda: Cristina Carneiro (teclados), Luanda
(vocais), Lauro Léllis (bateria), Renato Léllis (baixo), Daniel Maia
(guitarra) e Jarbas Mariz (percussão e bandolim). O repertório traz
canções como Brazil - Capital Buenos Aires, Salvador Bahia de Caymmi,
Outra Insensatez, Barquinho-Herói, Filho do Pato e Roquenrol Bim-Bom.
São faixas que remetem ao universo da Bossa Nova, mas encantam pela
maneira crítica com que foram compostas. É certamente o seu disco/ show
mais inventivo desde que foi (re) descoberto por David Byrne nos anos
90. Somado ao fato de ter sido lançado num ano de homenagens e
reverências muito sérias e "finas", traz também a dose certa de escracho
e devoção; o contraponto necessário de um artista que, felizmente, nunca
soube (ou tentou) ser diferente do que continua a ser.
Serviço
Show Tom Zé - Estudando a Bossa
Quando: Hoje, às 21h (abertura com Morse Lyra e Allan Sales)
Onde: Teatro da UFPE
Quanto: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia)