No Sítio Olho D'água do Bruno, a 12 quilômetros de Tacaratu, em meio ao
cerrado do Sertão de Itaparica, a seca castiga de outubro a abril. Em
tempos de chuva, as roças ficam verdes, os açudes se enchem d'água e a
população do pequeno vilarejo, que vive em condições econômicas bem
modestas, aproveita a boa safra. Neste cenário, em 1938, a equipe da
Missão de Pesquisas Folclóricas liderada por Mário de Andrade faz o
primeiro registro de uma manifestação popular singular naquela região.
Encontra agricultores que, no trabalho da roça, cantam rojões e, na
intenção de aplainar o chão de barro das casas de taipa
recém-construídas, passam a noite dançando em pisadas fortes,
acompanhados por cantos de vozes femininas. Mário de Andrade, em seu
pioneiro trabalho, chama atenção para um ritmo de coco diferente, de
tradição oral: o Tebei de Tacaratu.
Passam-se mais de sete décadas. Tentando refazer os passos de Mário de
Andrade, a Associação Respeita Januário (PE) chega ao Olho D´água do
Bruno em 2003. Lá já não existem tantas casas de taipa, mas um pequeno
grupo ainda canta e dança. A música daquela distinta comunidade chega ao
projeto Responde a roda outra vez, contendo um CD e um pequeno livreto
com registros do coco pelo Nordeste, mas com distribuição restrita.
Dança é executada por casais enlaçados,
sem umbigada nem roda. Foto: Aline Feitosa/Divulgação
Em 2008, a manifestação centenária, repassada entre várias gerações de
famílias do sítio, sai de Tacaratu e dos registros dos pesquisadores.
Entra numa etapa artística. O grupo Coco de Tebei chega este mês às
lojas de discos com um produto duplo: CD e DVD. Eu tiro o couro do
dançador, embalado em capa de bom gosto (projetado pela designer Daniela
Brilhante), é mais uma investida em prol da cultura popular da Sambada
Comunicação e Cultura - que no ano passado lançou o primoroso projeto
Antologia do pastoril profano. Com incentivo do governo de Pernambuco,
por meio do Funcultura, e apoio da Associação Respeita Januário e da
Cabra Quente Filmes, os produtores Paloma Granjeiro e Pedro Rampazzo (da
Sambada) conseguem, desta vez, fechar (ou pelo menos iniciar outra fase)
o esforço começado por Mário de Andrade - que com certeza gostaria de
ter visto já pronto, ainda na década de 1930, o Eu tiro o couro do
dançador.
"Vimos o Tebei pela primeira vez em 2005, durante a Festa da Lavadeira,
na Praia do Paiva, Cabo de Santo Agostinho. Achamos maravilhoso e
ficamos certos de que queríamos fazer algum trabalho com eles", conta
Paloma Granjeiro. A equipe aportou em Tacaratu no final de 2007. Lá,
gravou as imagens que compõem o DVD (20 minutos), dirigido coletivamente
por Hamilton Costa Filho, Pedro Rampazzo, Paloma Granjeiro e Gustavo
Vilar, este último etnomusicólogo da Associação Respeita Januário. O
documentário mostra o dia-a-dia da comunidade e a lida na roça e na
tecelagem, capta depoimentos dos integrantes do grupos, além de trechos
de shows e da gravação do CD.
O disco contém 16 faixas e foi gravado e mixado no estúdio Carranca
(Recife) e masterizado no Classic Master (São Paulo). Rojões-de-roça,
cocos e valsas compõem o trabalho, que, em algumas músicas, ganha a
participação especial de artistas como Sérgio Cassiano, Beto do
Bandolim, Maciel Salú, Juliano Holanda e Gilú (Orquestra Contemporânea
de Olinda), Nilton Júnior (Pandeiro do Mestre), Chico Correa, Zé
Marcolino (sambista de Tacaratu) e Gustavo Vilar, que também assina a
direção musical.
Serviço
CD e DVD Eu tiro o couro do dançador, do Coco de Tebei (Sambada
Comunicação e Cultura)
Quanto: R$ 25 (preço médio)
Povoado da Aldeia Olho d'Água do Bruno, em Tacaratu (PE), dança
um coco que une o trabalho ao prazer da dança
Lembro que há mais ou menos quatro anos, nessas conversas tiradas no meio da
noite, Gustavo Vilar me contou sobre o encontro com a comunidade do Olho
d’Água do Bruno, em Tacaratu (PE), e da descoberta do Coco de Tebei. Não
lembro ao certo as palavras que ele utilizou, mas o seu encantamento e a
surpresa com aquela brincadeira mantida e realizada pelos idosos do local
fizeram seu tom de voz e brilho no olhar ganharem uma cor diferente.
À época, Gustavo integrava uma equipe da Associação Respeita Januário e
do Núcleo de Etnomusicologia da UFPE, que refazia a trilha deixada por Mario
de Andrade na sua Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938. Em Pernambuco, a
Missão trabalhou em apenas três cidades: Recife, Arcoverde e Tacaratu. A
pesquisa seguiu esta trajetória e o resultado do estudo pôde ser conferido
no álbum Responde a Roda.
Nos arredores de Tacaratu, a equipe enviada por Mario de Andrade gravou
os torés e toantes dos índios pankararu e o principal gênero registrado no
local: o coco. Mas, de acordo com Gustavo, quando eles chegaram por lá, mais
ou menos em 2003, já não se dançava mais o coco como todos conhecem.
Entretanto, os moradores da cidade informaram que existia um grupo, no
distrito rural do Olho d’Água do Bruno, que cantava e dançava um tipo de
coco bem diferente, chamado de “Tebei”.
Qual não foi o meu alumbramento em receber o Eu tiro o couro do dançador,
álbum com CD e DVD que registram em sons e imagens a brincadeira daquele
povo. Primeiro, por ter em mãos o resultado de uma pesquisa que vai além da
musicalidade de um povo. Depois, pelo registro e divulgação da qualidade
rítmica do que lá é produzido.
A comunidade do Olho d’Água do Bruno é como muitas que habitam o sertão
pernambucano: sobrevivem através do tear e da produção de farinha. Comem
aquilo que plantam. Quando chove. “É, quando chove, a gente tira os legumes
aqui da roça, mas quando num chove... tem casa que passa o dia sem botar uma
panela no fogo”, confessou D. Maria do Carmo em entrevista à equipe da
Sambada Comunicação e Cultura, gravada no DVD, realizadora do álbum sob a
batuta de Gustavo Vilar. Também tem um certo tom carro-de-boi, aquela
lentidão acelerada somente pelas rodas de madeira. E pelos pés que dançam e
conversam com casas quando chega a noite estrelada e é hora de assentar o
chão de uma moradia de taipa que acaba de ser levantada.