Baiano de 71
anos conta como trabalhou ao lado do cineasta Glauber Rocha, fala do raro
acervo que guarda do diretor e lembra de bastidores de grandes clássicos do
cinema nacional
José Teles
teles@jc.com.br
O baiano, de
Salvador, Roque Pereira Araújo, 71, trabalhou no set de grande parte dos
mais importantes filmes rodados no Brasil desde final dos anos 50, com
ênfase nos anos 60. O que significa dizer que ele foi figura onipresente no
Cinema Novo e, em especial, na obra do mais importante diretor dessa fase,
Glauber Rocha: “Dos filmes de Glauber eu só não participei do primeiro, O
pátio, um curta-metragem”, adianta-se Roque, entrevistado, no mês passado,
em Juazeiro (BA), durante o festival de cinema Vale Curtas, no qual ele foi
um dos dois homenageados (o outro foi o pernambucano Fernando Spencer).
Magro, alto, jeito de índio, cabelo comprido, com rabo-de-cavalo, Roque
Araújo tem aparência, maneiras e sotaque de personagem de Jorge Amado. É
meio desconfiado, malandro (no bom sentido do termo). Certifica-se de que
pisa em terreno seguro, então começa a falar. E aí é difícil interrompê-lo.
Nem interessa fazê-lo, porque sua carreira está inserida em alguns dos
capítulos mais importantes da história do cinema brasileiro, e ele gostar de
falar sobre ela.
“Comecei meio
por acaso, em 1957, 58, quando Roberto Pires foi filmar cenas de Redenção
(não confundir com a novela homônima, dos anos 60) no Teatro Castro Alves
que ainda estava em construção. A autorização foi dada com a condição de que
o eletricista fosse funcionário da Secretaria de Vias e Obras Públicas do
estado. O eletricista fui eu”, conta Roque Araújo. Vale lembrar que Redenção
foi o primeiro longa-metragem baiano (foi com sobras deste filme, que
Glauber fez O pátio). Pires foi também o diretor do segundo longa da Bahia,
A grande feira, no qual Roque Araújo trabalhou como eletricista. Roberto
Pires (falecido em 2001), é o iniciador do importante ciclo baiano de cinema
na década. Ele, em 1962, angariou os recursos para Glauber Rocha, então
jornalista, continuar Barravento, que outro cineasta baiano, Luiz Paulino
dos Santos, abandonara ao se desentender com os atores. Roque Araújo seria o
eletricista em Barravento, encetando uma amizade com Glauber Rocha que só
terminaria em 1981, com a morte prematura do cineasta.
Como
eletricista e pau para toda obra, ele trabalhou, entre outros, em Tocaia no
asfalto (Roberto Pires), O pagador de promessa (Anselmo Duarte), Sol sob a
lama (Alex Viany), Os fuzis (Ruy Guerra), Menino de engenho (Walter lima
Júnior), e praticamente todos os filmes do ciclo do cangaço: “A primeira vez
que vim a Juazeiro foi em 1962, para as filmagens de Seara vermelha, de
Alberto D’Aversa. A equipe ficou hospedada no prédios dos Correios. Logo
depois fiz Lampião o rei do cangaço, de Carlos Coimbra. Em 67, recebo um
telegrama de Francisco Ramalho para trabalhar com ele, em São Paulo, no
filme Anuska, manequim e mulher, que foi o primeiro de Francisco Cuoco no
cinema”, segue ele detalhando cada um desses filmes antológicos.
Volta no
tempo, a 1963: “Glauber ia começar em Deus e o diabo na terra do Sol e me
chamou.” Neste ínterim, já pessoa de confiança do diretor, Roque Araújo
exercia outras funções além de eletricista. Era o homem de confiança de
Glauber, suas funções iam de contra-regra a tesoureiro. Era ele o
responsável por pagar as contas não apenas das filmagens, mas também
despesas pessoais do diretor e sua família. Foi nesta época que ele passou a
morar no Rio, no início, hospedado na casa de Luis Carlos Barreto, o
“Barretão”, na época fotógrafo.
As
filmagens de Deus e o diabo na terra do Sol, trabalho mais popular
de Glauber Rocha, em Monte Santo, no sertão baiano foram dureza,
recorda Roque Araújo: “A cidade não tinha hotel, ficamos na casa da
paróquia. De manhã era tanta névoa que não dava pra se ver nada.
Aquela morro onde tem a capela, eu subia aquilo umas quatro, oito
vezes por dia, e eram três quilômetros. Na primeira etapa saíam eu,
Geraldo Del Rey, Maurício do Vale e Glauber. Eu subia com
equipamento, câmeras. Depois descia e apanhava outro material.
Tornava a descer... O que pouca gente sabe é que a cena da morte do
beato não pôde ser filmada lá. Não se podia filmar um crime dentro
de uma igreja. Esta cena foi feita em Salvador, na igreja do Museu
de Arte Moderna da Bahia, que estava fechada, porque houve um
assassinato de verdade lá dentro.”
“Éramos
como dois irmãos, ele tinha uma confiança completa em mim. Me
entregou todos os troféus que recebeu, cartas, que ainda hoje estão
comigo, documentos. Toda família sabe, ele entregou tudo na frente
de dona Lúcia, de Paloma, a filha. Tem documento que se cair em
outras mãos podem dar o maior rebu. São coisas do partido, o PC,
naquela época ilegal. Coisas de pessoas que estão hoje no poder.
Falando no assassinato de fulano de tal, afirmando que fulano foi
quem mandou. Daria o maior rebu.” Roque Araújo tem em seu poder algo
ainda mais precioso do que estes documentos: todos os originais dos
filmes de Glauber Rocha.
Ele
trabalhou com Glauber mundo afora, mas o período mais intenso foi no
último e mais polêmico filme do diretor, Idade da terra, iniciado em
1978: “Ele pretendia fazer o Idade da terra 2. A idéia foi fazer a
história de Cristo dos onze aos 33 anos. Ficou com quatro horas e
meia. Teve uma discussão com Roberto Farias. Antes de uma viagem à
Europa, me disse: ‘Pega este material, derrete, vende. Me deu o que
sobrou do filme, 38 horas de copião’. Com parte deste material,
Roque Araújo faria, anos mais tarde, o elogiado documentário Tempo
de Glauber.
Araújo tem um conhecimento empírico da arte de cinema. Aprendeu tudo
na prática. Com o passar dos anos foi se familiarizando com
equipamentos, luzes. Sabe diferenciar câmeras, fala de cátedra sobre
a diferença do cinema digital e o feito com película, esta última
ainda sua “preferência”.
Hoje
ele ocupa uma função na Diretoria de Artes Visuais e Multimeios,
ligada a Fundação de Cultura do Estado da Bahia, dirige, fotografa,
faz a música dos seus filmes e cuida do seu hobby: colecionar
equipamento de cinema, com uma considerável e preciosa coleção de
câmeras, algumas do começo do século passado.