METÁFORAS QUENTES
DE SOLO sertão de Graciliano Ramos hoje,
fotografado por Evandro Teixeira: mundo primitivo em linguagem culta
e rigorosa
"Vidas Secas poderia ser um romance
de denúncia social, eivado de proselitismo. Mas não. Graciliano Ramos
repudiavao chamado ‘engajamento’ na arte"
ArtigoReinaldo Azevedo
Graciliano Ramos (1892-1953) nunca foi vítima
do preconceito organizado que existe contra o Monteiro Lobato para adultos,
por exemplo. Sempre foi considerado entre os grandes escritores brasileiros.
Mas há muito a crítica e a academia – esta em especial – negam-lhe o devido
lugar no panteão da prosa modernista: o topo, onde segue embalsamado por
certa mistificação o sem dúvida inventivo Guimarães Rosa. As razões que
levam à superestimação de um concorrem para subestimar o outro.
Por que Graciliano agora? A Editora Record
relança a sua obra, sob a supervisão de Wander Melo Miranda. Trata-se de um
trabalho bem-cuidado, com a recuperação de textos originais, correções
feitas pelo próprio escritor, cronologia e bibliografia de e sobre o autor
de Vidas Secas – ou "Cyx Knbot" em búlgaro, uma das dezesseis línguas
em que ele pode ser lido. O romance, que completa setenta anos, merece
especial atenção: além da edição regular, há uma outra, limitada a 10.000
exemplares, no formato de um álbum, com capa dura e papel cuchê (208
páginas, 99 reais): cuidado à altura das belas fotos de Evandro Teixeira,
que acompanham o texto. Sete décadas depois da publicação do livro, o
fotógrafo refez o roteiro de Fabiano, sinhá Vitória, Baleia e os meninos.
Vidas Secas? É bastante conhecida uma
das mais devastadoras passagens da literatura brasileira: as páginas em que
Graciliano narra a agonia e morte da cadela Baleia. Fabiano, que vaga com a
família pelo sertão, tangido pela seca, decide matá-la com um tiro para
aliviar-lhe o sofrimento. Segue um trecho:
"A carga alcançou os quartos traseiros e
inutilizou uma perna de Baleia (...) E, perdendo muito sangue, andou como
gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo
(...). Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e
não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou
morder Fabiano (...). Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava
vigiar as cabras: àquela hora, cheiros de suçuarana deviam andar pelas
ribanceiras, rondar as moitas afastadas (...). A tremura subia, deixava a
barriga e chegava ao peito de Baleia (...). A pedra estava fria. Certamente
sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo. Baleia queria
dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás (...) gordos, enormes".
Algumas das qualidades que fazem de
Graciliano mestre da língua portuguesa e do texto literário estão acima
condensadas. Vidas Secas, saído da pena de um escritor das Alagoas,
de esquerda, poderia ser um romance de denúncia social, eivado de
proselitismo e anseios libertários. Mas não. O autor repudiava o chamado
"engajamento" na arte. Referia-se a Jdanov (1896-1948), o comissário da
Cultura da URSS que fundara as bases do chamado realismo socialista, como o
que era: "uma besta". Baleia é mais comoventemente miserável quando se
arrasta sobre dois pés, quando "anda como gente". Ele não deprecia o homem,
comparando-o ao cão; antes, hominiza o cão porque vê com compaixão a nossa
condição – e essa compaixão inclemente pelo humano é marca da sua obra. Há
dias, em passagem pelo Brasil, José Saramago declarou padecer de "marxismo
hormonal". Segundo o escritor português, não merecemos a vida. Ele nos
negaria um pedaço de osso. "Preás gordos, enormes", então, nem pensar.
Evandro Teixeira
REGIONALISMO SEM FOLCLORE O homem do sertão, com seu cachorro, e
Graciliano (à dir.): a condição humana expressa na agonia da
cadela Baleia
O mundo da Baleia agonizante é primitivo,
feito só de sentidos e sensações. Mas ele nos chega numa linguagem culta,
fluente, rigorosa, sem charadas vocabulares para "desconstrução" em
colóquios acadêmicos. Tanto em Vidas Secas como na obra de temática
urbana, proto-existencialista – Graciliano traduziu A Peste, de
Albert Camus, em 1950 –, os adjetivos e as imagens nascem das coisas. Como
escrevi num ensaio que integra o livro Contra o Consenso, não há ali
"uma única e miserável metáfora que não seja quente de sol (...), pulsante
de sangue, aguda de espinhos, dura de pedra. Tudo nasce da matéria precária
da vida". A face regionalista de sua literatura não folcloriza a realidade
sertaneja, tentando atribuir-lhe alguma metafísica ou lógica interna
superiores, que demandassem sintaxe e vocábulos de exceção. O estoque da
língua e as regras do jogo lhe bastam. Como ele mesmo escreveu, "começamos
oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem
Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e
a lei, ainda nos podemos mexer".
Atribuo-lhe características de meu gosto
pessoal? Não! Era uma escolha consciente. Em 1949, envia uma carta a Marili
Ramos, sua irmã. Ela acabara de publicar um conto chamado Mariana. A
apreciação do leitor-irmão não tinha como ser mais severa. A tal carta
resume um credo literário: "Julgo que você entrou num mau caminho. Expôs uma
criatura simples, que lava roupa e faz renda, com as complicações interiores
da menina habituada aos romances e ao colégio. As caboclas de nossa terra
são meio selvagens (...). Como pode você adivinhar o que se passa na alma
delas? Você não bate bilros nem lava roupa. (...) Você não é Mariana, não é
da classe dela. Fique na sua classe. Apresente-se como é, nua, sem ocultar
nada".
Em Graciliano, a literatura é um jogo da
inteligência analítica, como neste trecho de Insônia: "Um silêncio
grande envolve o mundo. Contudo, a voz que me aflige continua a mergulhar-me
nos ouvidos, a apertar-me o pescoço. (...) explico a mim mesmo que o que me
aperta o pescoço não é uma voz, é uma gravata". A conspiração das vozes do
silêncio que perseguem o insone perdem imediatamente o encanto de uma
maldição metafísica: basta afrouxar a gravata. Sabemos a origem das nossas
aflições, o que não quer dizer que tenhamos respostas para elas. Com
freqüência, não. E isso nos torna demasiadamente humanos. Não para o
comunista Saramago, claro...
Essa lembrança me remete ao mais
explicitamente político dos muitos Gracilianos, incluindo aquele que chegou
até a ser prefeito da cidade de Palmeira dos Índios (1928-1930). Refiro-me
ao livro Memórias do Cárcere, reeditado pela Record em um único
volume. O escritor ficou preso entre março de 1936 e janeiro de 1937,
acusado de ligações com a conspiração que resultara no levante comunista de
1935. Era mentira. Filiou-se ao PCB só em 1945. Nesse livro, publicado
postumamente no ano de sua morte, ele se agiganta. Em muitos sentidos, a
cadeia é a caatinga de um Graciliano-Fabiano que, à diferença do personagem
de Vidas Secas, consegue se expressar com clareza. Em vez do herói da
resistência, o anti-herói dos escrúpulos que comunistas chamariam
pequeno-burgueses. Definitivamente, ele não era o "novo homem socialista".
Era o velho homem apegado a suas dores privadas, a seus anseios, a suas
mesquinharias. Leiam trecho do diálogo que ele trava com um militante
comunista russo de nome Sérgio, que acabara de ser torturado. Graciliano
pergunta se ele sente ódio:
"– Ódio? A quem?
– Aos indivíduos que o supliciaram, já se
vê.
– Mas são instrumentos, sussurrou a
criatura singular.
(...)
– Admitamos que o fascismo fosse pelos
ares, rebentasse aí uma revolução dos diabos e nos convidassem para julgar
sujeitos que nos tivessem flagelado ou mandado flagelar. Você estaria nesse
júri? Teria serenidade para decidir?
– Por que não? Que tem a justiça com os
meus casos particulares?
– Eu me daria por suspeito. Não esqueceria
os açoites e a deformação dos pés. Se de nenhum modo pudesse esquivar-me,
nem estudaria o processo: votaria talvez pela absolvição, com receio de não
ser imparcial. (...) Fizemos boa camaradagem. Mas suponho que você não
hesitaria em mandar-me para a forca se considerasse isto indispensável.
– Efectivamente, respondeu Sérgio
carregando com força no c. Boa noite. Vou dormir. Estendeu-se na cama
agreste, enfileirada com a minha junto ao muro, cruzou as mãos no peito. Ao
cabo de um minuto ressonava leve, a boca descerrada a exibir os longos
dentes irregulares. Nunca vi ninguém adormecer daquele jeito. Conversava
abundante, sem cochilos nem bocejos; decidia repousar e entrava no sono
imediatamente."
Como se vê, também os monstros morais podem
ser torturados. Notem como Sérgio dorme tranqüilo, mesmo depois de
supliciado, e com rapidez, o que espanta o observador. Está certo de seu
senso de justiça como o crente em uma religião qualquer. Esquerdistas
convictos nunca têm dúvidas. Já os personagens do autor de Insônia –
a começar do próprio Graciliano em Memórias do Cárcere – não
descansam nunca. Quando o brutal Paulo Honório, em São Bernardo, vê
consumada a sua obra, restam-lhe a solidão e a insônia. O tema aparece em
Angústia ("visões que me perseguiam naquelas noites compridas"), no
autobiográfico Infância ("À noite o sono fugiu, não houve meio de
agarrá-lo") e até nas suas cartas de amor. O homem de Graciliano vive em
vigília, num ambiente sempre hostil, seja a caatinga, a cadeia ou as
paisagens íntimas.
Falei de sua compaixão pelas dores humanas.
Também nesse caso, seu horizonte não é finalista: não tem uma resposta para
a nossa condição nem a vê com moralismo. Paulo Honório, por exemplo, acaba,
na prática, matando quem tentara proteger: Madalena, a sua mulher. Tem ciúme
da piedade que ela sente do mundo e ódio da sua própria incapacidade de se
comover. Narrado em primeira pessoa, o romance não o caracteriza como um
monstro. É só um ser desesperado tentando, como todos nós, sobreviver,
salvar-se. Honório não é diferente da estabanada menina Luciana, do conto
Minsk, nome do seu periquito. Um dia, numa de suas trapalhadas, ela pisa
num objeto mole e ouve um grito.
"Os movimentos de Minsk eram quase
imperceptíveis; as penas amarelas, verdes, vermelhas, esmoreciam por detrás
de um nevoeiro branco.
– Minsk!
A mancha pequena agitava-se de leve,
tentava exprimir-se num beijo:
– Eh! eh!"
"Todo homem mata aquilo que ama", escreveu na
cadeia o escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900). Por isso nos arrastamos,
como Baleia, vida afora, em busca de perdão. Somos uns cães. Mas, ainda
assim, dignos de amor. E cerraremos os olhos contando acordar felizes, num
mundo "cheio de preás gordos, enormes".
Os 70 anos da obra-prima de Graciliano Ramos e os
80 de A Bagaceira, de José Américo de Almeida, celebrados com novas
edições, trazem à tona o debate sobre literatura regionalista
Ronaldo Correia de Brito
Em 1948, dez anos após a publicação de Vidas Secas,
Homero Sena perguntou a Graciliano Ramos, numa entrevista:
- Acredita na permanência de sua obra?
E ele, um pessimista que reagiu ao convencionalismo da linguagem e
sempre brigou com as palavras, convencido de que essa era uma briga
essencial, de vida ou morte, respondeu amargo e com sinceridade:
- Não vale nada; a rigor até já desapareceu...
Nos 70 anos de publicação de Vidas Secas, o mais sereno e otimista dos
romances de Graciliano, escrito sob o signo do silêncio como se tudo
nele estivesse apenas velado, é possível reconhecer a permanência dessa
cartilha de concisão. Permanência atestada não apenas na escritura do
livro, mas nos autores brasileiros que surgiram posteriormente a ele e
que se beneficiaram dos seus experimentos, pois Graciliano era um
experimentador. Cada uma de suas obras é um tipo diferente de romance,
como chamou atenção Aurélio Buarque de Holanda. Todas num estilo
próprio, a linguagem trabalhada até a última possibilidade de apuro, mas
sem ser literária num modo antigo, luso-brasileiro. Graciliano reagiu à
impostura do convencionalismo da linguagem, tornou-se romancista da
modernidade brasileira, por mais que tentem vinculá-lo ao naturalismo.
Moderno, mas não ?modernista?, na conotação que ganhou o termo com os
modernistas de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Quando Vidas Secas - que acaba de ganhar nova edição pela Record, com
fotos de Evandro Teixeira (Record, 208 págs., R$ 99) - foi publicado em
1938, a técnica do escritor chegara ao máximo de pessoal, em quatro
romances diferentes nos temas e na construção, mas que mantinham o mesmo
estilo, "a mesma atitude filosófica perante o Homem, matéria-prima da
ficção", como observou Wilson Martins. De romance para romance -
Caetés/1933; São Bernardo/1934; Angústia/1938 -, Graciliano se desfaz
gradualmente da carga de subjetivismo e angústia que o caracterizam, até
que em Vidas Secas, que mais parece um livro de crônicas ou contos,
alcança um alto grau de serenidade no estudo psicológico dos
personagens: de Fabiano, de Sinhá Vitória, dos meninos, de Baleia e do
soldado amarelo. A paisagem sertaneja, quando descrita, é apenas para
realçá-los. Ela só agrava o pessimismo do autor em relação ao mundo;
acentua o silêncio das pessoas, que desaprenderam os modos de falar,
único jeito de se livrarem de suas memórias. Os entraves de Fabiano,
questionando a necessidade da fala, recriminando-se quando comete
excessos, nada mais são que os questionamentos de Graciliano em torno da
própria escrita, obcecado pela depuração, convencido de que o escritor
luta menos com idéias do que com palavras. E que apenas por meio delas
pode livrar-se do sofrimento da memória, mergulhando no esquecimento ao
escrever.
Assumidamente avesso aos resultados da Semana de 22, Graciliano achava
que os modernistas brasileiros confundiam o ambiente literário do País
com a Academia e traçavam linhas divisórias, mas arbitrárias, entre o
bom e o mau, querendo destruir tudo o que ficara para trás, condenando
por ignorância ou safadeza muita coisa que merecia ser salva. Com a
desconcertante franqueza de sempre, respondeu quando lhe perguntaram se
era um ?modernista?: "Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu
movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão
alagoano, vendendo chita no balcão." Se o regionalismo criado por
Gilberto Freyre em reação aos ?modernistas? ajudou a polemizar a cena
literária brasileira, também acentuou uma linha divisória que nunca se
desfez, separando o Brasil em Nordeste e Sudeste.
Há quem se apegue ao uso que Graciliano faz de uma meia dúzia de
vocábulos próprios do Nordeste - que não poderiam ser outros, pois
falsificariam Vidas Secas -, para datar o romance ou classificá-lo como
regionalista, num sentido que diminui sua grandeza. Desde o manifesto
escrito por Gilberto Freyre, em que chama os modernistas de inimigos de
toda espécie de tradicionalismo e de toda forma de regionalismo,
confundem o movimento literário deflagrado por Freyre com regionalismo
geográfico. Passaram a ser regionalistas, até os dias de hoje, os que
escrevem fora da latitude sudeste, principalmente nordestinos, desde que
refiram a linguagem e os cenários em que vivem. Uma danosa herança.
Mesmo morando no Rio de Janeiro, a partir de 1937, Graciliano continuou
emocionalmente vinculado à sua origem. Preferia o interior à cidade
grande, e o contato íntimo com a terra e o povo. Reconhecia vir daí a
força de escritores como Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Jorge
Amado.
Sendo um dos escritores modernos que melhor manejaram o nosso idioma,
convencido de que não há talento que resista à ignorância da língua,
deixou o exemplo de luta e querência pela palavra, a escrita como um
difícil exercício de construção em meio ao silêncio. Preocupou-se com o
estilo, mas não inventou um idioma, como Guimarães Rosa. Sem forçar
comparações, pois acredito que os movimentos literários surgem como
sintonias de um tempo em vários espaços do mundo, por afinidades
estéticas, filosóficas e outras afinidades, reconheço nas obras de
Graciliano e do francês Albert Camus um traçado que os aproxima. Essa
analogia surpreendente ou evidente foi registrada por Lourival Holanda
no seu livro Sob o Signo do Silêncio. Ele escreve: "Não cabe inquirir
influências: o contato de Camus com o Brasil foi mínimo e tardio;
Graciliano é já maduro quando conhece Camus." No entanto, ambos captam
as ondas de seu tempo, escrevem obras em que reverbera o social, e
antecipam mudanças no espírito literário.
Qual o legado de Vidas Secas para a literatura brasileira, nesses 70
anos? São muitas as respostas. Tornou-se quase estereótipo referir a
exatidão, as frases curtas e limpas de excessos humanos, o ritmo dado às
frases, a escolha certa das palavras, a eliminação de tudo o que não é
essencial. Porém, o maior legado de Vidas Secas é o de uma escrita em
que é possível reconhecer a linguagem no processo de tornar-se
literatura.
Ronaldo Correia de Brito, médico e escritor, é autor de Faca,
Galiléia e Livro dos Homens