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Graciliano, o grande

14/12/2008

 

 

Foto: Evandro Teixeira

METÁFORAS QUENTES DE SOL O sertão de Graciliano Ramos hoje, fotografado por Evandro Teixeira: mundo primitivo em linguagem culta e rigorosa
 

"Vidas Secas poderia ser um romance de denúncia social, eivado de proselitismo. Mas não. Graciliano Ramos repudiava o chamado ‘engajamento’ na arte"

Artigo Reinaldo Azevedo

Graciliano Ramos (1892-1953) nunca foi vítima do preconceito organizado que existe contra o Monteiro Lobato para adultos, por exemplo. Sempre foi considerado entre os grandes escritores brasileiros. Mas há muito a crítica e a academia – esta em especial – negam-lhe o devido lugar no panteão da prosa modernista: o topo, onde segue embalsamado por certa mistificação o sem dúvida inventivo Guimarães Rosa. As razões que levam à superestimação de um concorrem para subestimar o outro.

Por que Graciliano agora? A Editora Record relança a sua obra, sob a supervisão de Wander Melo Miranda. Trata-se de um trabalho bem-cuidado, com a recuperação de textos originais, correções feitas pelo próprio escritor, cronologia e bibliografia de e sobre o autor de Vidas Secas – ou "Cyx Knbot" em búlgaro, uma das dezesseis línguas em que ele pode ser lido. O romance, que completa setenta anos, merece especial atenção: além da edição regular, há uma outra, limitada a 10.000 exemplares, no formato de um álbum, com capa dura e papel cuchê (208 páginas, 99 reais): cuidado à altura das belas fotos de Evandro Teixeira, que acompanham o texto. Sete décadas depois da publicação do livro, o fotógrafo refez o roteiro de Fabiano, sinhá Vitória, Baleia e os meninos.

Vidas Secas? É bastante conhecida uma das mais devastadoras passagens da literatura brasileira: as páginas em que Graciliano narra a agonia e morte da cadela Baleia. Fabiano, que vaga com a família pelo sertão, tangido pela seca, decide matá-la com um tiro para aliviar-lhe o sofrimento. Segue um trecho:

 

"A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia (...) E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo (...). Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano (...). Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora, cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas (...). A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia (...). A pedra estava fria. Certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo. Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás (...) gordos, enormes".

 

Algumas das qualidades que fazem de Graciliano mestre da língua portuguesa e do texto literário estão acima condensadas. Vidas Secas, saído da pena de um escritor das Alagoas, de esquerda, poderia ser um romance de denúncia social, eivado de proselitismo e anseios libertários. Mas não. O autor repudiava o chamado "engajamento" na arte. Referia-se a Jdanov (1896-1948), o comissário da Cultura da URSS que fundara as bases do chamado realismo socialista, como o que era: "uma besta". Baleia é mais comoventemente miserável quando se arrasta sobre dois pés, quando "anda como gente". Ele não deprecia o homem, comparando-o ao cão; antes, hominiza o cão porque vê com compaixão a nossa condição – e essa compaixão inclemente pelo humano é marca da sua obra. Há dias, em passagem pelo Brasil, José Saramago declarou padecer de "marxismo hormonal". Segundo o escritor português, não merecemos a vida. Ele nos negaria um pedaço de osso. "Preás gordos, enormes", então, nem pensar.

Evandro Teixeira
REGIONALISMO SEM FOLCLORE
O homem do sertão, com seu cachorro, e Graciliano (à dir.): a condição humana expressa na agonia da cadela Baleia

O mundo da Baleia agonizante é primitivo, feito só de sentidos e sensações. Mas ele nos chega numa linguagem culta, fluente, rigorosa, sem charadas vocabulares para "desconstrução" em colóquios acadêmicos. Tanto em Vidas Secas como na obra de temática urbana, proto-existencialista – Graciliano traduziu A Peste, de Albert Camus, em 1950 –, os adjetivos e as imagens nascem das coisas. Como escrevi num ensaio que integra o livro Contra o Consenso, não há ali "uma única e miserável metáfora que não seja quente de sol (...), pulsante de sangue, aguda de espinhos, dura de pedra. Tudo nasce da matéria precária da vida". A face regionalista de sua literatura não folcloriza a realidade sertaneja, tentando atribuir-lhe alguma metafísica ou lógica interna superiores, que demandassem sintaxe e vocábulos de exceção. O estoque da língua e as regras do jogo lhe bastam. Como ele mesmo escreveu, "começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer".

Atribuo-lhe características de meu gosto pessoal? Não! Era uma escolha consciente. Em 1949, envia uma carta a Marili Ramos, sua irmã. Ela acabara de publicar um conto chamado Mariana. A apreciação do leitor-irmão não tinha como ser mais severa. A tal carta resume um credo literário: "Julgo que você entrou num mau caminho. Expôs uma criatura simples, que lava roupa e faz renda, com as complicações interiores da menina habituada aos romances e ao colégio. As caboclas de nossa terra são meio selvagens (...). Como pode você adivinhar o que se passa na alma delas? Você não bate bilros nem lava roupa. (...) Você não é Mariana, não é da classe dela. Fique na sua classe. Apresente-se como é, nua, sem ocultar nada".

Em Graciliano, a literatura é um jogo da inteligência analítica, como neste trecho de Insônia: "Um silêncio grande envolve o mundo. Contudo, a voz que me aflige continua a mergulhar-me nos ouvidos, a apertar-me o pescoço. (...) explico a mim mesmo que o que me aperta o pescoço não é uma voz, é uma gravata". A conspiração das vozes do silêncio que perseguem o insone perdem imediatamente o encanto de uma maldição metafísica: basta afrouxar a gravata. Sabemos a origem das nossas aflições, o que não quer dizer que tenhamos respostas para elas. Com freqüência, não. E isso nos torna demasiadamente humanos. Não para o comunista Saramago, claro...

Essa lembrança me remete ao mais explicitamente político dos muitos Gracilianos, incluindo aquele que chegou até a ser prefeito da cidade de Palmeira dos Índios (1928-1930). Refiro-me ao livro Memórias do Cárcere, reeditado pela Record em um único volume. O escritor ficou preso entre março de 1936 e janeiro de 1937, acusado de ligações com a conspiração que resultara no levante comunista de 1935. Era mentira. Filiou-se ao PCB só em 1945. Nesse livro, publicado postumamente no ano de sua morte, ele se agiganta. Em muitos sentidos, a cadeia é a caatinga de um Graciliano-Fabiano que, à diferença do personagem de Vidas Secas, consegue se expressar com clareza. Em vez do herói da resistência, o anti-herói dos escrúpulos que comunistas chamariam pequeno-burgueses. Definitivamente, ele não era o "novo homem socialista". Era o velho homem apegado a suas dores privadas, a seus anseios, a suas mesquinharias. Leiam trecho do diálogo que ele trava com um militante comunista russo de nome Sérgio, que acabara de ser torturado. Graciliano pergunta se ele sente ódio:

 

"– Ódio? A quem?

– Aos indivíduos que o supliciaram, já se vê.

– Mas são instrumentos, sussurrou a criatura singular.

(...)

– Admitamos que o fascismo fosse pelos ares, rebentasse aí uma revolução dos diabos e nos convidassem para julgar sujeitos que nos tivessem flagelado ou mandado flagelar. Você estaria nesse júri? Teria serenidade para decidir?

– Por que não? Que tem a justiça com os meus casos particulares?

– Eu me daria por suspeito. Não esqueceria os açoites e a deformação dos pés. Se de nenhum modo pudesse esquivar-me, nem estudaria o processo: votaria talvez pela absolvição, com receio de não ser imparcial. (...) Fizemos boa camaradagem. Mas suponho que você não hesitaria em mandar-me para a forca se considerasse isto indispensável.

– Efectivamente, respondeu Sérgio carregando com força no c. Boa noite. Vou dormir. Estendeu-se na cama agreste, enfileirada com a minha junto ao muro, cruzou as mãos no peito. Ao cabo de um minuto ressonava leve, a boca descerrada a exibir os longos dentes irregulares. Nunca vi ninguém adormecer daquele jeito. Conversava abundante, sem cochilos nem bocejos; decidia repousar e entrava no sono imediatamente."

 

Como se vê, também os monstros morais podem ser torturados. Notem como Sérgio dorme tranqüilo, mesmo depois de supliciado, e com rapidez, o que espanta o observador. Está certo de seu senso de justiça como o crente em uma religião qualquer. Esquerdistas convictos nunca têm dúvidas. Já os personagens do autor de Insônia – a começar do próprio Graciliano em Memórias do Cárcere – não descansam nunca. Quando o brutal Paulo Honório, em São Bernardo, vê consumada a sua obra, restam-lhe a solidão e a insônia. O tema aparece em Angústia ("visões que me perseguiam naquelas noites compridas"), no autobiográfico Infância ("À noite o sono fugiu, não houve meio de agarrá-lo") e até nas suas cartas de amor. O homem de Graciliano vive em vigília, num ambiente sempre hostil, seja a caatinga, a cadeia ou as paisagens íntimas.

Falei de sua compaixão pelas dores humanas. Também nesse caso, seu horizonte não é finalista: não tem uma resposta para a nossa condição nem a vê com moralismo. Paulo Honório, por exemplo, acaba, na prática, matando quem tentara proteger: Madalena, a sua mulher. Tem ciúme da piedade que ela sente do mundo e ódio da sua própria incapacidade de se comover. Narrado em primeira pessoa, o romance não o caracteriza como um monstro. É só um ser desesperado tentando, como todos nós, sobreviver, salvar-se. Honório não é diferente da estabanada menina Luciana, do conto Minsk, nome do seu periquito. Um dia, numa de suas trapalhadas, ela pisa num objeto mole e ouve um grito. 

 

"Os movimentos de Minsk eram quase imperceptíveis; as penas amarelas, verdes, vermelhas, esmoreciam por detrás de um nevoeiro branco.

– Minsk!

A mancha pequena agitava-se de leve, tentava exprimir-se num beijo:

– Eh! eh!"

 

"Todo homem mata aquilo que ama", escreveu na cadeia o escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900). Por isso nos arrastamos, como Baleia, vida afora, em busca de perdão. Somos uns cães. Mas, ainda assim, dignos de amor. E cerraremos os olhos contando acordar felizes, num mundo "cheio de preás gordos, enormes".

(© VEJA)

 


Vidas secas

Os 70 anos da obra-prima de Graciliano Ramos e os 80 de A Bagaceira, de José Américo de Almeida, celebrados com novas edições, trazem à tona o debate sobre literatura regionalista

Ronaldo Correia de Brito

Em 1948, dez anos após a publicação de Vidas Secas, Homero Sena perguntou a Graciliano Ramos, numa entrevista:

- Acredita na permanência de sua obra?

E ele, um pessimista que reagiu ao convencionalismo da linguagem e sempre brigou com as palavras, convencido de que essa era uma briga essencial, de vida ou morte, respondeu amargo e com sinceridade:

- Não vale nada; a rigor até já desapareceu...

Nos 70 anos de publicação de Vidas Secas, o mais sereno e otimista dos romances de Graciliano, escrito sob o signo do silêncio como se tudo nele estivesse apenas velado, é possível reconhecer a permanência dessa cartilha de concisão. Permanência atestada não apenas na escritura do livro, mas nos autores brasileiros que surgiram posteriormente a ele e que se beneficiaram dos seus experimentos, pois Graciliano era um experimentador. Cada uma de suas obras é um tipo diferente de romance, como chamou atenção Aurélio Buarque de Holanda. Todas num estilo próprio, a linguagem trabalhada até a última possibilidade de apuro, mas sem ser literária num modo antigo, luso-brasileiro. Graciliano reagiu à impostura do convencionalismo da linguagem, tornou-se romancista da modernidade brasileira, por mais que tentem vinculá-lo ao naturalismo. Moderno, mas não ?modernista?, na conotação que ganhou o termo com os modernistas de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Quando Vidas Secas - que acaba de ganhar nova edição pela Record, com fotos de Evandro Teixeira (Record, 208 págs., R$ 99) - foi publicado em 1938, a técnica do escritor chegara ao máximo de pessoal, em quatro romances diferentes nos temas e na construção, mas que mantinham o mesmo estilo, "a mesma atitude filosófica perante o Homem, matéria-prima da ficção", como observou Wilson Martins. De romance para romance - Caetés/1933; São Bernardo/1934; Angústia/1938 -, Graciliano se desfaz gradualmente da carga de subjetivismo e angústia que o caracterizam, até que em Vidas Secas, que mais parece um livro de crônicas ou contos, alcança um alto grau de serenidade no estudo psicológico dos personagens: de Fabiano, de Sinhá Vitória, dos meninos, de Baleia e do soldado amarelo. A paisagem sertaneja, quando descrita, é apenas para realçá-los. Ela só agrava o pessimismo do autor em relação ao mundo; acentua o silêncio das pessoas, que desaprenderam os modos de falar, único jeito de se livrarem de suas memórias. Os entraves de Fabiano, questionando a necessidade da fala, recriminando-se quando comete excessos, nada mais são que os questionamentos de Graciliano em torno da própria escrita, obcecado pela depuração, convencido de que o escritor luta menos com idéias do que com palavras. E que apenas por meio delas pode livrar-se do sofrimento da memória, mergulhando no esquecimento ao escrever.

Assumidamente avesso aos resultados da Semana de 22, Graciliano achava que os modernistas brasileiros confundiam o ambiente literário do País com a Academia e traçavam linhas divisórias, mas arbitrárias, entre o bom e o mau, querendo destruir tudo o que ficara para trás, condenando por ignorância ou safadeza muita coisa que merecia ser salva. Com a desconcertante franqueza de sempre, respondeu quando lhe perguntaram se era um ?modernista?: "Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão." Se o regionalismo criado por Gilberto Freyre em reação aos ?modernistas? ajudou a polemizar a cena literária brasileira, também acentuou uma linha divisória que nunca se desfez, separando o Brasil em Nordeste e Sudeste.

Há quem se apegue ao uso que Graciliano faz de uma meia dúzia de vocábulos próprios do Nordeste - que não poderiam ser outros, pois falsificariam Vidas Secas -, para datar o romance ou classificá-lo como regionalista, num sentido que diminui sua grandeza. Desde o manifesto escrito por Gilberto Freyre, em que chama os modernistas de inimigos de toda espécie de tradicionalismo e de toda forma de regionalismo, confundem o movimento literário deflagrado por Freyre com regionalismo geográfico. Passaram a ser regionalistas, até os dias de hoje, os que escrevem fora da latitude sudeste, principalmente nordestinos, desde que refiram a linguagem e os cenários em que vivem. Uma danosa herança. Mesmo morando no Rio de Janeiro, a partir de 1937, Graciliano continuou emocionalmente vinculado à sua origem. Preferia o interior à cidade grande, e o contato íntimo com a terra e o povo. Reconhecia vir daí a força de escritores como Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Jorge Amado.

Sendo um dos escritores modernos que melhor manejaram o nosso idioma, convencido de que não há talento que resista à ignorância da língua, deixou o exemplo de luta e querência pela palavra, a escrita como um difícil exercício de construção em meio ao silêncio. Preocupou-se com o estilo, mas não inventou um idioma, como Guimarães Rosa. Sem forçar comparações, pois acredito que os movimentos literários surgem como sintonias de um tempo em vários espaços do mundo, por afinidades estéticas, filosóficas e outras afinidades, reconheço nas obras de Graciliano e do francês Albert Camus um traçado que os aproxima. Essa analogia surpreendente ou evidente foi registrada por Lourival Holanda no seu livro Sob o Signo do Silêncio. Ele escreve: "Não cabe inquirir influências: o contato de Camus com o Brasil foi mínimo e tardio; Graciliano é já maduro quando conhece Camus." No entanto, ambos captam as ondas de seu tempo, escrevem obras em que reverbera o social, e antecipam mudanças no espírito literário.

Qual o legado de Vidas Secas para a literatura brasileira, nesses 70 anos? São muitas as respostas. Tornou-se quase estereótipo referir a exatidão, as frases curtas e limpas de excessos humanos, o ritmo dado às frases, a escolha certa das palavras, a eliminação de tudo o que não é essencial. Porém, o maior legado de Vidas Secas é o de uma escrita em que é possível reconhecer a linguagem no processo de tornar-se literatura.

Ronaldo Correia de Brito, médico e escritor, é autor de Faca, Galiléia e Livro dos Homens

(© Estadão)


VÍDEO

Cena de Vidas Secas

Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)


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