Documentários: "Os Doces Bárbaros" sai em DVD 30 anos depois
14/12/2008
Foto: Divulgação
Gil, Bethânia, Caetano e Gaç:
os mais doces bárbaros
Jom Tob Azulay vê momento atual como perfeito para se reavaliar
show e filme
Para ele, crise permite revisão de comportamento; show, encomendado
por gravadora, reunia artistas que atritavam com cânones
LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO
Já não seria desprezível que "Os Doces Bárbaros", 30 anos após chegar aos
cinemas, saísse em DVD. Mas o diretor Jom Tob Azulay não quer seu filme
visto ou revisto apenas como registro de um marco da época -o show que
reuniu Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia em 1976.
"Esse caráter nostálgico seria prejudicial; hoje é um bom momento para
reavaliar tudo. A crise não é só econômica, permite revisão de
comportamento, da cultura voltada à acumulação. No filme, fala-se do
desapego de valores materiais, do prazer na arte e no amor", diz Azulay, 67,
que há quatro anos relançou o longa no cinema.
Ele comunga da idéia que diz ter ouvido do músico e escritor José Miguel
Wisnik: "O tropicalismo nunca esteve tão vivo".
O mundo globalizado, tecnológico e performático foi cantado por Caetano e
Gil já nos anos 60. E a indústria cultural, ingrediente preponderante dessa
geléia geral, está na origem de "Os Doces Bárbaros". "O show foi encomendado
por uma gravadora multinacional, a Phonogram, para marcar os dez anos de
carreira dos "baianos", como se dizia. Era uma iniciativa de caráter
comercial", diz Azulay.
Mas também era a reunião, durante o regime militar, de artistas que não
cantavam, não se vestiam, não se comportavam conforme os cânones oficiais.
Como também não adotavam o perfil "artistas de protesto" desejado pela
esquerda, ficavam fora de esquadro numa época em que tudo era enquadrado.
"Foi uma experiência traumática para os responsáveis por ela e para a
cultura do país.
A distensão do governo [de Ernesto] Geisel [1974-79] ainda não ocorria. O
show surgiu quase anacronicamente, não havia espaço para ele. Por isso, foi
tão mal interpretado", diz Azulay.
Parte da esquerda implicava com as roupas e coreografias estranhas e não
via o sentido político de músicas como "O Seu Amor", "Um Índio" e "Fé Cega,
Faca Amolada", além do tom libertário geral. A direita implicava com as
mesmas coisas e ainda pôde comemorar a prisão de Gil, em Florianópolis, por
porte de maconha.
Extras
Sem os cortes da época, o DVD traz um pouco mais do famoso julgamento de
Gil, em que ele não consegue disfarçar o semblante irônico diante das falas
do juiz -que chega a fazer um jogo de palavras com "abacateiro"- e de seu
próprio advogado. Considerado "dependente químico", teve de ir para uma
instituição psiquiátrica.
Nascido para ser um curto documentário de TV pago pela Phonogram, o
registro ganhou, com a prisão de Gil, "aspectos dramáticos" e "dimensões de
filme de ficção", como diz o diretor nos extras, em que há ainda quatro
músicas e cenas de camarim. Azulay prepara agora um livro recontando e
avaliando a saga de show e filme.
OS DOCES BÁRBAROS Artistas: Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia
Gravadora: Biscoito Fino Quanto: R$ 45, em média Classificação: livre
Diante de uma câmera, todo indivíduo se transforma em um ator, mesmo que
exponha suas verdades mais íntimas e profundas. Essa idéia, esboçada em
obras anteriores de Eduardo Coutinho, como "Santo Forte" e "Edifício
Master", ganha uma evidência incontornável em seu documentário mais
recente, "Jogo de Cena", que chega agora ao DVD.
O ponto de partida do filme foi um anúncio de jornal,
em que o cineasta convidava mulheres a falar, num estúdio, sobre suas
vidas. Oitenta e três se apresentaram, 23 foram selecionadas e filmadas
em junho de 2006 no teatro Glauce Rocha, no Rio. Se Coutinho já encarava
seus entrevistados como "personagens", em "Jogo de Cena" ele dá mais uma
volta no parafuso, misturando depoimentos de mulheres "comuns" com falas
de atrizes que reproduzem as mesmas histórias narradas por aquelas.
Algumas dessas atrizes são muito famosas -Andréa
Beltrão, Fernanda Torres, Marília Pêra-, outras são desconhecidas do
público, quase anônimas. O efeito desse ardiloso embaralhamento é deixar
o espectador sem chão, em dúvida sobre quais histórias são verdadeiras,
quais são inventadas, e sobre quem, afinal, viveu o quê.
Os extras do DVD, ao exibir as entrevistas prévias das
selecionadas com a assistente do diretor, Cristiana Grumbach, revelam
que o jogo foi além: há, entre as depoentes, uma que conta a história de
outra, que por sua vez narra uma terceira história, que já não sabemos
mais a quem pertence.
De certo modo, ver e ouvir esses depoimentos de
bastidores é um pouco como desmontar o brinquedo para descobrir como
funciona, e a sensação se reforça com a já tradicional "faixa
comentada", em que Coutinho fala sobre seu filme com o cineasta João
Moreira Salles e o crítico Carlos Alberto Mattos. Mas, por estranho que
pareça, essa revelação dos mecanismos ilusionistas do filme, em vez de
diminuir seu impacto emocional, acaba por intensificá-lo. Na organização
desses múltiplos discursos sobre dramas pessoais em que quase sempre
sobressai a relação com os filhos ou, mais raramente, com os pais, há
todo um questionamento do estatuto da representação, da condição
feminina e da própria noção de verdade.
Mas há também uma carga de vivência humana quase
insuportável. "Jogo de Cena" pode ser visto, se quisermos, como um
estudo sobre as lágrimas e seu modo de produção o que dificilmente
impedirá o espectador de verter algumas ao longo da sessão.
JOGO DE CENA Lançamento: VideoFilmes Quanto: R$ 45, em média Classificação: livre Avaliação: ótimo