07/10/2009
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O
escritor João Ubaldo Ribeiro
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Sem publicar um novo romance desde 2002, escritor lança O
Albatroz Azul na segunda-feira
Ubiratan Brasil
As intempéries pessoais foram diversas (depressão, morte
da mãe), mas João Ubaldo Ribeiro provou, como gosta de dizer, que é um
homem de cota: na segunda-feira, as livrarias recebem O Albatroz Azul
(240 páginas, R$ 39,90), seu último livro a ser editado pela Nova
Fronteira, que devia por obrigação contratual antes de acertar a
transferência de toda a sua obra para a Alfaguara, no ano passado. "Não
é o romance que comecei a escrever, mas foi esse o que acabou surgindo",
contou Ubaldo ao Estado, por telefone, desde seu apartamento na Leblon,
no Rio.
Nada, de fato, correu como previsto, mas O Albatroz Azul - seu primeiro
romance desde 2002 (quando saiu Diário do Farol) e que marca os 50 anos
de sua estreia literária - reflete com extrema singeleza o estado de
espírito do escritor. O livro acompanha a estranha trajetória do velho
Tertuliano Jaburu que, depois de resignado pela profusão de filhas e
netas, se convence de que a gravidez temporã de sua caçula Belinha lhe
trará, finalmente, um neto varão. Nem mesmo o prognóstico contrário de
Altina, parteira de palpites infalíveis, o desanima: um sopro que
recebeu no ouvido, sem atinar de onde, lhe fez o peito palpitar - seria
homem o rebento que (o avô decidiu por conta própria) ganharia o nome de
Raymundo Penaforte, em homenagem a um dos santos glorificados naquele
dia 7 de janeiro.
O menino também terá um afortunado destino conforme vislumbraram os
olhos previdentes de Tertuliano, o que já é confirmado pela forma
inusitada do parto. Como primeiro saíram as pernas, Raymundo nasceu
literalmente com a bunda virada para a grande e brilhante lua que
iluminava seu nascimento. Uma existência cuja felicidade se
concretizaria com a passagem de Tertuliano para outro estágio material.
Sim, ele sabe que vai morrer e em breve. Na verdade, uma transcendência,
pois, se um holandês que vivera séculos antes na Bahia se transformara
em uma pedra que fala com ele, por que o velho sábio não poderia
adquirir o formato de um albatroz azul?
Aos 68 anos, o colunista do Estado preocupa-se com a finitude da vida,
ainda que não deseje (nem espere) a morte próxima. Mas faz de uma forma
lírica, mágica, com sua prosa contraditoriamente barroca e lapidada e
sempre evocando, ainda que subliminarmente, sua Itaparica natal, como
conta na seguinte entrevista.
O livro foi matutado há muito tempo?
Não exatamente. Eu tinha uma relação quase familiar com a Nova Fronteira
- fiquei mais de 30 anos lá e tive amizade com quase todos os donos.
Quando fui para a Alfaguara, eu sabia que ainda devia um livro por
contrato. Até comecei a escrevê-lo, ele se chamaria Si e seria sobre a
essência de um homem. Mas sofri uma série de contratempos - fiquei
doente, troquei muito de computador, pois o meu pifava e provocava perda
de arquivos - e, quando um romance é muito interrompido, especialmente
em seu início, ele desanda. Você perde o contato. Então, o livro que eu
escreveria teve várias partidas em falso e, no fim, esse romance me
apareceu. Sou como Jorge Amado: esquematizo tudo e nada dá certo. O
romance toma um caminho próprio, com personagem destinado para a morte
sobrevivendo enquanto outro se casa quando deveria ficar solteiro. Já me
acostumei com isso, mas, mesmo assim, sigo sempre uma ordem, escolhendo
primeiro um título, depois a dedicatória, a epígrafe e por fim a
história. Mas, se você me perguntar o porquê do título O Albatroz Azul,
eu não tenho a menor ideia.
Você imaginava, ao menos, que ele teria esse tamanho?
Não, pensei que fosse um pouco menor que Viva o Povo Brasileiro, mas,
ainda assim grande. Abri o livro com a embocadura de um livrão. Mas, no
meio do primeiro capítulo, descobri que não era. Continuei escrevendo um
livrão até me resignar - digo isso porque sou um escritor abundante - no
meio do segundo capítulo: já sabia que não era.
Você continua criterioso na escolha das palavras - neste livro, elas
são inventadas ou você as ouviu em sua ilha de Itaparica?
Dificilmente eu invento - se inventei, deve ter sido mais por ignorância
ou porque achei que a palavra existia. Tenho muito pudor com
neologismos. Eu estropio algumas palavras e espero que o leitor perceba.
Usei algumas expressões usadas em Portugal e também regionais. Só quando
tenho algum personagem pernóstico, como Nascimento Clarineta, que só
fala difícil, aí utilizo sinônimos rebuscados, preciosos.
O final do livro é muito bonito, especialmente em seu tom fabular (a
pedra que fala) e a luta contra a finitude da vida. São esses temas que
o inspiraram?
Com certeza, alguma coisa rondava meu juízo. Embora não pareça, sou
culturalmente católico. Não gosto de religião organizada, mas gosto de
ler a Bíblia e, entre meus textos favoritos, está o Livro de Jó, uma
obra-prima. Lá, depois das várias provações sofridas, Jó acaba ouvindo a
voz de Deus, a célebre teofania, que o questiona sobre a criação do
universo. A pequenez e a limitação humana, portanto, são reafirmadas. É
inútil querer conhecer, com nossos cinco sentidos, as intenções de Deus.
Talvez eu tenha dito isso por meio da sabedoria de Tertuliano que, na
realidade, não sabe nada, só tapeia as coisas. Por mais que tivesse
aprendido com outros sábios, ele não sabe de nada.
Esse é seu primeiro livro desde 2002, o que me faz lembrar de uma
frase de Jorge Amado que dizia ser mais penoso escrever à medida que
envelhecia. Isso também acontece com você?
Sim, é a mesma coisa. Jorge era meu compadre e, entre uma conversa
pessoal e outra, ele dizia isso. Não sei se foi ele ou Rubem Fonseca que
usou a expressão "desandar" em relação ao livro e a escrever com
dificuldade. O mesmo acontece comigo. Pode ser bloqueio de escritor, sem
que eu saiba. Também pode ser uma autocobrança maior. Ou ainda um certo
pudor para se escrever frase como "A condessa saiu às 5 horas da tarde".
Não sei a origem dessa história. Acabei concluindo que quem escreve com
facilidade é um orador - e não tenho talento para discursar em público.
Com esse livro, você comemora 50 anos de literatura. O que isso lhe
diz?
Que eu estou velho pra burro! (risos) Eu nem me lembrava disso, foi o
pessoal da editora que me avisou.
E a passagem para o próximo livro?
Por enquanto, não tenho nada na gaveta. Desconfie se alguém apresentar
algum poemazinho inédito ou ensaiozinho inacabado depois da minha morte
- tudo que escrevo, publico. E não consigo iniciar nada enquanto o livro
atual não é publicado. Nem sei se vou escrever outro. Provavelmente,
vou. Tenho vontade (ainda vaga) de desenvolver meu pequeno universo de
Itaparica. Aproveitar mais alguns personagens, como o de Miséria e
Grandeza do Amor de Benedita, que publiquei na internet. Utilizar esse e
também os de outras histórias da ilha, como os personagens do Já Podeis
da Pátria Filhos. Gostaria de completar a história daqueles que aparecem
como figurantes nos contos. Mas esse desejo ainda não saiu do castelo do
ar. Não sei se vou fazer.
(©
Estadão)
O herói de O Albatroz
Azul, de João Ubaldo Ribeiro, enfrenta a morte com serenidade – apesar
de sua espiritualidade confusa
Jerônimo Teixeira
Tasso Marcelo/AE
JOÃO UBALDO RIBEIRO
Adágios rimados e barbeiros que falam
"bacharelês" |
Feitiçaria do bem
"Iá Cencinha repetia e não se
cansaria de repetir que desprezava as abusões e crendices dos
negros, muito menos quando desembocavam em feitiçaria e numa
perigosa proximidade com – se benzessem todos! – o Maldito. Mas,
mesmo fruto da ignorância de pagãos selvagens, as práticas dos
negros e o que eles chamavam de trabalhos, quando empregados em
favor de uma causa justa, mereciam apoio e amparo. (...) O que de
mau trouxessem as negrices, os santos transformariam em bom" |
Homem obstinado, obediente às ordens do coronel que o apadrinhou na Polícia
Militar de Sergipe, o sargento Getúlio Santos Bezerra carrega seu
prisioneiro do sertão para Aracaju ciente de que possivelmente será morto na
chegada. Esse era o herói de Sargento Getúlio, segundo livro de João
Ubaldo Ribeiro, lançado em 1971. O mais recente romance do autor baiano, de
68 anos, traz novamente um protagonista que caminha, imperturbável, para a
própria morte. Mas o velho Tertuliano de O Albatroz Azul (Nova
Fronteira; 240 páginas; 39,90 reais) não é um jagunço truculento: herdeiro
decaído de grandes proprietários de terra, é um homem de bem que, no dia do
nascimento de um neto, descobre equívocos presságios de que sua hora se
aproxima. Sargento Getúlio era um livro repleto de furiosa
turbulência. O Albatroz Azul é quase sua imagem em negativo: um livro
sereno e crepuscular.
A
comparação obriga a dizer que Sargento Getúlio é um livro por todos
os critérios superior – mais bem estruturado e mais criativo no uso do
vocabulário regional. Mas O Albatroz Azul é ainda uma bela mostra do
invejável domínio do escritor sobre seu meio de expressão. Cada personagem
fala com uma linguagem única – do barbeiro pernóstico que se exprime num
engraçado "bacharelês" à matriarca cuja sabedoria se resume a uma coleção de
adágios rimados ("casa varrida e mulher penteada parecem bem e não custam
nada"). A história se passa em alguma data indeterminada no início do século
XX, na Ilha de Itaparica (terra natal do autor), na Bahia. Tertuliano é um
personagem poderoso: voluntarioso, impositivo, mas ainda assim frágil,
traumatizado por um episódio brutal da infância.
Seu pai, bígamo – constituíra família com duas
irmãs –, teve de se casar com uma de suas mulheres para receber uma herança.
Para não ser prejudicado na sucessão, o garoto Tertuliano foi instado a
renegar a própria mãe e se declarar filho da outra. Recusou-se, em um gesto
de dolorida dignidade. Sentia que sua vida fora de algum modo roubada
naquele momento – e o neto homem que nasce logo no início do livro vem de
algum modo redimir essa falta. A busca espiritual de Tertuliano resulta um
tanto vaga e confusa, misturando concepções espíritas e filosofices
populares. Mas o parágrafo final põe as coisas no lugar.
Trecho de O Albatroz Azul, de João
Ubaldo Ribeiro
Mas nesse caderno ele não poria fogo. Ia
guardá- lo bem guardado, talvez o emparedasse ou enterrasse, bem enrolado e
protegido. Não, simplesmente o deixaria trancado numa gaveta. Era melhor,
pois poderia desfrutar da sensação de vê-lo anos mais tarde, tantos quantos
ainda tivesse pela frente. Sacou os óculos do bolso, ajeitou os arames e
pressionou os esparadrapos que todo dia se prometia trocar, tirou o caderno
do mocó, abriu-o diretamente no ponto que buscava, as bordas do papel já
recurvas e encardidas de tanto manuseio. Lá estava escrito, em letras de
imprensa calcadas em linhas grossas de lápis número um: Nome de Baptismo:
Raymundo Penaforte. Era o nome que, sem admitir discordância, imporia a
Saturnino e Belinha, que, além do mais, estavam desprevenidos para nomes de
homem, porque esperavam desencalmados uma nova Maria, quem sabe desta vez
uma Socorro, para ver se o bom Deus, por ela instado, detinha proliferação
tão persistente quão custosa e trabalhosa. Provavelmente, Raymundo Penaforte
Vieira da Anunciação, por causa dos sobrenomes dos pais, que com eles podiam
fazer o que quisessem, não lhe interessava. Aliás, não. Isso era verdade
fazia bem pouco tempo, talvez semanas, talvez dias, talvez horas. Não sabia
por quê, surpreendia em si uma atitude bem diversa da habitual, a que
professava desprezo por sobrenomes e linhagens. Não, não, por alguma razão
desconhecida, mudara de modo de ver. Por que seria? Bem, não interessava,
depois pensaria nisso, talvez fosse arte da velhice, todo dia a velhice lhe
trazia uma novidade, parecia coisa de menino crescendo. É, não interessava.
O fato era que de repente a questão do sobrenome se tornou essencial e, pela
primeira vez em sua vida, pensou que um dia pudesse ter como descendente o
príncipe de uma nova dinastia, podia ser esse seu neto. E ele, Tertuliano,
seria o originador dessa nova dinastia, por que não? Não vivera uma vida
gloriosa porque não era seu destino, como não tinha sido o destino dos
outros incontáveis netos nascer num momento de sua existência como aquele em
que Raymundo Penaforte nasceria. Seu destino, pensou ele, tinha sido
preparar as glórias do seu grande neto, o que, em si, já continha sua
própria glória. Sim, ventos e sopros, uma certa confusão no juízo e no
coração, a vida sempre ensinando lições nunca antecipadas. Mas não era
necessária nenhuma afobação, a confusão devia dissipar-se e cada coisa a seu
tempo. O que interessava era o primeiro nome do menino, o batismal, o de
cabeça. Era como se um dos sopros, ou vários deles, lhe houvessem ditado o
nome que, inspirador de respeito e dificílimo de ignorar, o satisfazia
tanto. Na verdade, não tinham sido bem os sopros que lhe determinaram o
nome, mas era como se tivessem. De início raros, mas cada vez mais
frequentes e oriundos de todos os quadrantes, os sopros lhe fizeram ver, com
per- tinácia e veemência, aquilo que convinha a menino tão exaustivamente
futurado.
(©
VEJA)
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