MARCOS BRAGATTO
Colaboração para o UOL
Alheia à crise pela qual passa a indústria musical e a
latente decadência do formato CD, a cantora Maria Bethânia lança agora
não apenas um novo álbum, mas dois --e de uma só vez. Um álbum sai pela
gravadora Biscoito Fino e o outro pelo seu próprio selo, Quitanda. Tanto
“Tua”, de sotaque mais romântico, quanto “Encanteria”, tido como
“celebração”, têm em comum o amor, segundo Bethânia. “Essas canções
chegaram ao meu coração de maneira tão forte que eu tive que fazer dois,
porque em um só não dava”, explicou a cantora em entrevista nesta
quarta-feira (30), no Rio de Janeiro. “Eu fiz um [disco] usando as
canções com ritmo e letras mais elaboradas amorosamente, e o outro mais
brincando, festejando tudo isso, porque louvar faz parte”, completa.
A cantora reuniu a imprensa de todo o Brasil na
Gafieira Estudantina para apresentar o lançamento dos dois álbuns, mas
admitiu que o procedimento, assim como o CD, está em desuso. “Isso
parece coisa de outro mundo, é obsoleto, o mundo já foi, já passou. Mas
para alguns, e para mim, não. Eu faço o que eu quero fazer, o que eu
quero cantar, eu canto”, sentencia. A escolha do tradicional ponto do
samba carioca, fundado em 1928, não foi ao acaso. A direção da casa
batizou o palco com o nome de Maria Bethânia. “Isso é muito grande pra
mim”, disse a cantora em tom de agradecimento. “Eu sou uma menina do
interior da Bahia, e no Rio de Janeiro tem uma casa com a tradição da
Estudantina com o palco com o meu nome. Isso me deixa muito comovida”,
admitiu.
Além do amor, outro traço notável nos dois discos é a
presença de Roque Ferreira, que assina três faixas de “Tua” e outras
quatro de “Encanteria”. Revelado por Clara Nunes no final dos anos 70,
Ferreira é especialista em samba de roda do recôncavo baiano, e
recentemente foi gravado por Zeca Pagodinho e Dudu Nobre, entre outros.
“Nós conversamos muito e volta e meia ele manda uma música que nasceu de
uma conversa”, explica Bethânia, ao citar “Domingo”, que fecha o CD
“Tua”. “O Roque tem uma espontaneidade que não é só do baiano ou do
recôncavo. É do brasileiro”, definiu. Ao todo, o prolífico compositor
enviou 22 músicas para ela testar. Paulo César Pinheiro, que assina a
faixa-título de “Encanteria”, chegou a preparar 15 canções, das quais
três foram contempladas.
Mesmo gravando 22 músicas nos dois álbuns, não foi
nada fácil para a cantora selecionar o repertório. Culpa da campanha que
ela própria fez. “Eu pedi músicas para os amigos e falei na imprensa que
quem quisesse podia mandar. Fiquei muito feliz em ver esse movimento tão
vivo, recebi uns 300 discos. Foi um recado muito positivo para mim que
sou uma cantora, que vivo disso”, constatou Maria Bethânia.
Caetano Veloso e Gilberto Gil não mandaram nenhuma
composição, mas aparecem como convidados em “Saudade Dela”, música que
homenageia Dona Edith do Prato, referência musical de Santo Amaro da
Purificação, falecida esse ano. “Quando recebi essa canção achei muito
comovente, queria contar esses sentimentos, em nome do recôncavo da
Bahia e da música popular brasileira”, contou Bethânia. “Achei que era
uma tarefa grande para fazer sozinha, então convidei Caetano, porque ele
é de Santo Amaro também, e o Gil, que gostava de ir a casa dela ouvir as
divisões de prato e as quebradas de viola”, completou. Como Ministro da
Cultura, Gilberto Gil criou um memorial para Dona Edith.
Entre tantos nomes da Bahia que contribuíram nos
álbuns, como Capinam, Saul Barbosa e J. Velloso, outro destaque é a
parceria de Dori Caymmi com Paulo César Pinheiro em “E o Amor Outra
Vez”, que abre “Tua”. “A Bahia sempre surpreende, conheço todos de
muitos anos, mas não os gravo com tanta freqüência”, disse Bethânia, ao
explicar a preferência. “Mas tem uma ousadia muito grande nesse
trabalho: eu canto Dori. Acho que os Caymmi compõem tão sofisticadamente
que a Nana (Caymmi) é quem sabe cantar essas coisas direito. Fiquei
muito honrada do Dori confiar em minha voz, e ainda por cima eles gostam
de muito pouca coisa, reclamam de tudo, e eu adoro todos eles assim
mesmo”, se divertiu a cantora.
Embora se esmere ao tentar mostrar diferenças entre os
repertórios dos dois discos, Bethânia acaba apontando semelhanças,
sempre defendendo a onipresença do amor como tema principal. “A devoção
no amor é indefinível para o homem, ajuda o ser humano. Eu não quero
ficar longe de nada do amor, quero é ficar bem envolvidinha nisso, é
melhor”, explicou. “O mundo está muito corrido e eu lido com música, que
tem pausa e andamento, mas tem silêncio. E o amor, no mundo de hoje,
representa o silêncio, essa necessidade humana que todos nós temos”,
filosofou. Aos 63 anos, Maria Bethânia parece ter uma insaciável fome de
cantar. “Eu nasci para isso, adoro meu ofício, sou grata a ele. Ele não
me trai, temos um casamento de acordo”.
Outra novidade no álbum “Encanteria” é a participação
da Orquestra Furiosa Portátil, com os alunos da Escola Portátil de
Música do Instituto Casa do Choro, em “Feita na Bahia” e na
faixa-título. “Tive a oportunidade de ouvir a orquestra, fiquei
alucinada e pensei: quero cantar com eles”, disse a cantora. Após o
evento para a imprensa, aconteceria uma apresentação da Orquestra, na
própria Estudantina, com a participação de Maria Bethânia em uma das
músicas. Raro momento para ver uma das divas da MPB em seu próprio
palco.
Veja o repertório completo dos dois álbuns que Maria
Bethânia está lançando:
"Tua"
01. "E o Amor Outra Vez" (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro)
02. "Tua" (Adriana Calcanhotto)
03. "A Mão do Amor" (Roque Ferreira)/ "O Que Eu Não Conheço" (Jorge
Vercillo e J. Velloso)
04. "Até o Fim" (Cézar Mendes e Arnaldo Antunes)
05. "Remanso" (Moacyr Luz e Aldir Blanc)
06. "Fonte" (Saul Barbosa e Jorge Portugal)
07. "Dama, Valete e Rei" (Rutinaldo e Paulo Gracindo/Você Perdeu (Márcio
Valverde e Nélio Rosa)
08. "Guriatã" (Roque Ferreira)
09. "Saudade" (Chico César e Moska) - com Lenine
10. "Lamentação" (Mauro Duarte)/O Nunca Mais (Roberto Mendes e Capinam)
11. "Domingo" (Roque Ferreira)
"Encanteria"
01. "Santa Bárbara" (Roque Ferreira)
02. "Feita na Bahia" (Roque Ferreira)
03. "Coroa do Mar" (Roque Ferreira)
04. "Encanteria" (Paulo César Pinheiro)
05. "Saudade Dela" (Roberto Mendes e Nizaldo Costa), com Caetano Veloso
e Gilberto Gil
06. "Linha do Caboclo" (Paulo César Pinheiro e Pedro Amorim)
07. "Estrela" (Vander Lee)
08. "Minha Rede" (Roque Ferreira)
09. "Doce Viola" (Jaime Alem)
10. "Ê Senhora "(Vanessa da Mata)/Batatinha Roxa (D.P.- adaptação de
Roberto Mendes)
11. "Sete Trovas" (Consuelo de Paula/Etel Frota/Rubens Nogueira)