07/10/2009
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No seu aniversário, Zé Ramalho, que grava trilha para
cinema, diz, parodiando Bob Dylan, que se sente no meio do caminho
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A voz do apocalipse. O Bob Dylan do agreste. O último
profeta. Todos eles são o mesmo paraibano de Brejo do Cruz, José
Ramalho Neto, que completa exatos 60 anos. Da infância difícil
no sertão, foi resgatado pelo avô, que assumiu o papel de pai quando
o legítimo morreu afogado num açude. Mais tarde, o avô foi
eternizado na mítica Avôhai pelo neto músico que desistiu de ser o
neto doutor. Zé Ramalho chegou a cursar Medicina, porém, no segundo
ano, percebeu que estava predestino à música. Ouviu muito Beatles,
Jovem Guarda, Bob Dylan, tocou em bailes, descobriu o repente dos
violeiros e estabeleceu uma conexão com a canção nordestina. São
mais de 40 anos de carreira. Atualmente, está em estúdio
participando da trilha sonora do filme O Bem Amado e, numa brecha,
falou com o Estado por e-mail.
Como é a trilha de O Bem Amado?Canto um dos temas. Provavelmente, a
música de João do Vale, Carcará, tema de Zeca Diabo. Também estou
participando de vários lançamentos do selo Descobertas, em que
interpreto algumas canções dos Beatles.
Você disponibilizaria todo um disco seu na internet e deixaria
que os internautas pagassem quanto quisessem?
Não faria isso, até porque a arrecadação é a mínima possível. Não
acho justo disponibilizar frações de um disco. Um CD é um trabalho
completo, não pode ser pinçado, porque o ouvinte não atingirá o
conceito amplo e total que o artista imprimiu nele.
Conte como era seu avô, que criou você como se fosse seu pai. Ele
viveu para ver o neto se tornar um músico de sucesso?
Ele não viu a carreira decolar, faleceu antes, mas chegou a ouvir a
música Avôhai. Cantei a música diretamente para ele durante uma
reunião de artistas na minha casa, em João Pessoa. Ele escutou
sentado, apoiando o queixo em sua bengala. Não disse nada, mas a
ouviu inteira e todos sabiam que ele estava entendendo. Ele me
ensinou coisas básicas, como amar a natureza, não maltratar os
animais e ser honesto.
E como é o Zé Ramalho avô? Muito diferente dele?
Claro que é diferente! Meus netos ficam com seus pais. Quando me
visitam, são visitas combinadas, com horário para chegar e sair. São
relações diferentes, mas não tem nada a ver com o sentido espiritual
de Avôhai.
Até que ponto a cocaína foi catalisadora de sua criatividade e em
que momento passou a ser prejudicial?
No início, era envolvente, o organismo estava recebendo essa
"invasão alienígena" e era manifestada em músicas, como Frevo
Mulher, Galope Rasante, A Terceira Lâmina. Mas, com o passar do
tempo, ela passou a confundir e me escravizar.
Como foi sentir o baque das acusações de plágio, como Força
Verde?
O plágio é um fenômeno que acontece entre artistas e a mídia.
Artistas como George Harrison, que teve um supersucesso mundial com
My Sweet Lord, foi acusado de plágio e teve de responder
pessoalmente nos tribunais, perdendo a causa! Ou Roberto e Erasmo,
acusados também de plágio na música O Careta, também responderam na
Justiça. No meu caso, nunca fui a um tribunal nem recebi acusação
judicial formal. Foi puramente inveja da mídia em geral, pois eu
estava em muita evidência naquela época.
Você disse numa entrevista recente que não chegou a ser garoto de
programa, mas que havia garotas que dormiam com você. Você dormia
com elas em troca de teto e comida, ou de grana mesmo?
As duas coisas. Não era uma cobrança, mas era percebido pelas minhas
"amigas", que penalizadas com a minha situação, me davam alguns
valores em dinheiro para eu me virar. Esses fatos inspiraram a
canção Garoto de Aluguel.
Depois da experiência com alienígenas em Avôhai, você teve outro
contato do gênero?
Não. Só em sonhos. Sonho frequentemente com discos voadores, o que
não deixa de ser uma revelação, pois foi a presença alienígena que
senti durante a experiência que resultou em Avôhai. Foi única,
espiritual e mediúnica.
Para você, como foi aquele período do projeto Grande Encontro,
com Elba, Alceu Valença e Geraldo Azevedo? Chegou-se a dizer que
houve um conflito de egos.
O início do Grande Encontro foi histórico para a música brasileira.
A reunião dos quatro grandes nomes desta geração de nordestinos
resultou num show de altíssimo nível, que foi registrado e entrou
para a história da MPB. A sequência do Grande Encontro foi o que
causou um grande desencontro. É natural que os egos aflorem e é
natural que tivesse um fim também.
Quais canções suas você acredita que não tiveram o justo sucesso?
Não tenho essa expectativa. Mas, logo no início, eu não achava que
Chão de Giz seria uma música de sucesso. E achava que Vila do
Sossego seria.
Se você fosse fazer uma trilha sonora que resumisse musicalmente
esses 60 anos de vida, quais músicas você escolheria?
Começaria por Disparada, do Vandré. Meu autorretrato é uma música
que o Mautner fez para mim e que deu título ao meu quinto disco,
Orquídea Negra. É como se ele me dissesse: "Zé, você é a orquídea
negra, que brotou da máquina selvagem, e o anjo do impossível
plantou como nova paisagem"... Tem uma música minha, Beira-Mar, que
diz: "E até que a morte eu sinta chegando, prossigo cantando." É o
começo, o meio e o fim. Vou parafrasear Bob Dylan: "Me sinto como se
estivesse no meio do caminho. Vamos para os próximos 60 anos!"
(©
Estadão)
Cantor e compositor Zé Ramalho
chega aos 60 anos exercitando a capacidade de renascer

Por
Willian Costa da Paraíba para o Diário de Natal
Há exatos 60 anos, na
madrugada do dia 3 de outubro de 1949, no município de Brejo do Cruz, no
Sertão Paraibano, distante 458 quilômetros de João Pessoa, sob a luz de
candeeiro, ao som do pio da coruja, e com o cordão umbilical cortado a
peixeira, nascia José Ramalho Neto, o futuro cantor e compositor Zé Ramalho,
de estilo inigualável, filho do poeta e seresteiro Antônio de Pádua Pordeus
Ramalho e da professora Estelita Torres Ramalho.
A morte do pai, por afogamento, no açude de Poços, torna a vida da família
muito mais difícil, obrigando dona Estelita a entregar Zé Ramalho aos
cuidados dos avós, José e Soledade Alves Ramalho, o Avôhai, este, o mentor
que educa o menino e o apresenta à fascinante paisagem sertaneja. O menino
cresce na fazenda de Avôhai (contração das palavras "avô" e "pai"), em
contato com as exóticas fauna e flora, ouvindo lendas e cantadores da
região.
Nos primeiros anos da década de 50, morando, agora, em Campina Grande, Zé
Ramalho começa a se interessar por assuntos bíblicos, mitologia
greco-romana, cantoria e literatura de cordel, temas e elementos musicais
centrais de suas primeiras composições como artista profissional. No início
dos 60, a família o envia para João Pessoa, onde passa no vestibular e
começa a estudar medicina na Universidade Federal da Paraíba.
Na capital, Zé Ramalho atiça o fogo que faz ferver o seu caldeirão cultural,
ouvindo todo tipo de música que brotasse no terreiro da inquietação, de
Roberto Carlos aos Beatles e Jimi Hendrix, de Renato e seus Blue Caps a Bob
Dylan e Rolling Stones, de Raul Seixas a Pink Floyd. Transforma-se em
assíduo espectador de "filmes de arte", e consome com avidez poesia
modernista e literatura esotérica, de Carlos Drummond de Andrade a Carlos
Castãneda.
No Colégio Marista Pio X, cria com amigos o grupo Os Jets. Desfeito o grupo,
entra para Os Quatro Loucos, liderado por Vital Farias, uma das bandas da
era de ouro dos bailes da cidade, passando, ainda, como guitarrista, por Os
Demônios eThe Gentlemen. No início dos anos 70, o filme Woodstock, de
Michael Wadleigh, injeta o ideário da contracultura definitivamente em sua
cabeça. Zé Ramalho, agora, quer voar...
As primeiras canções
Isolado em sua "Vila do Sossego", na praia do Cabo Branco, Zé Ramalho
compõe, em 1974, Zé Ramalho, algumas das músicas que, logo mais, injetaria
sangue novo na corrente sanguínea da música popular brasileira, entre
elas,"Avôhai", "Chão de Giz" e "Vila do Sossego". Com The Gentlemen grava um
disco pela extinta gravadora Rozenblit, do Recife (PE), e o lendário álbum
Paêbiru, com Lula Côrtes, inspirado nas inscrições da Pedra de Ingá.
Ao participar do filme Nordeste: Cordel, Repente e Canção, de Tânia
Quaresma, Zé Ramalho (re)descobre sua afinidade com o romanceiro popular
nordestino. Numa atitude antropofágica, mistura rock e repente, cordel e
poesia moderna, e, deste amálgama de linguagens, nasce o seu estilo musical
único, inconfundível, que dali a pouco, balizado pela voz gutural e um
visual de hippie-profeta, iria não só encantar, mas inquietar o Brasil.
O sucesso e a queda
Em novembro de 1977, Zé Ramalho entra finalmente no estúdio da CBS para
gravar, em oito canais, Zé Ramalho, seu disco de estréia. Entre os músicos
convidados, Patrick Moraz (ex-Yes) e Sérgio Dias (ex-Mutantes). O álbum é
lançado no ano seguinte, e a "estranheza" provocada por faixas como
"Avôhai", "Vila do Sossego", "Chão de Giz" e "A Dança das Borboletas",
chamaram a atenção do público e da crítica.
Mas o sucesso, mesmo, só viria em 1979, com o disco A peleja do diabo com o
dono do céu, com a faixa título, "Frevo mulher", "Admirável gado novo" e
"Garoto de aluguel" incendiando de vez o país. Morando em Fortaleza (CE),
mas cruzando o Brasil de norte a sul e de leste a oeste para atender o
crescente público que querem vê-lo ao vivo, Zé Ramalho grava o visionário A
terceira lâmina (1981) e o polêmico Força verde (1982), que o derruba do
cometa.
Acusado de plágio ao musicar, com o título "Força Verde", uma história de
Hulk publicada pela Marvel Comics (na verdade, um poema do irlandês William
Beats Yeats), Zé Ramalho é crucificado pela imprensa e inicia um longo
período de crise, ingressando no inferno das drogas. Sai de Fortaleza e
refugia-se no Rio. Grava Orquídea negra (1983), Por aquelas que foram bem
amadas ou... pra não dizer que não falei de rock (1984), mas o ostracismo
permanece.
Os álbuns lançados entre 1985 e 1987 - De gosto, de água e de amigos, Opus
visionário e Décimas de um cantador - também não acontecem. O vento da sorte
começa novamente a soprar a favor do artista em 1985, quando a Rede Globo
encomenda a Zé Ramalho uma música para a trilha sonora da novela Roque
Santeiro.
(©
Diário de Natal)
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Com relação a este tema, saiba mais (arquivo NordesteWeb)
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