Cento e vinte anos depois do mistério,
a Igreja estuda a reabilitação de padre Cícero
1889: a hóstia vira sangue
LIRA NETO
Naquela noite escura e sem lua, Cícero Romão Batista levantou as mãos
para os Céus e pediu perdão pelos pecados do mundo. Quem olhasse de fora
em direção às janelas abertas da capela de Nossa Senhora das Dores
avistaria, já de longe, o lampejo das centenas de velas acesas cortando
o breu. O forte cheiro de cera der-retida e o adiantado da hora
indicavam que os membros da irmandade de beatos, cerca de vinte deles,
haviam passado mais uma madrugada inteira em vigília, em louvor ao
Sagrado Coração de Jesus.
Meia hora antes do amanhecer, quando os galos se preparavam para
anunciar outra manhã de sol no sertão, Cícero decidiu que as sete ou
oito mulheres ali presentes mereciam receber a comunhão antes dos
homens, para retornarem às respectivas casas. Elas precisavam descansar
o corpo fatigado da prolongada sentinela. Com véus escuros sobre a
cabeça e alvos rosários entrelaçados nas mãos magras e morenas, as
beatas atenderam ao chamado e se aproximaram em fila indiana, uma a uma.
À frente delas, ia Maria de Araújo. Com os olhos fechados, foi a
primeira a se postar diante do padre e entreabrir a boca, contrita.
Quando a hóstia lhe tocou a língua, a beata abriu e revirou os olhos
espantados. Parecia ter entrado num estranho transe. Foi então que se
deu o fenômeno: segundo chegariam a jurar sobre a Bíblia as testemunhas
ali presentes, a hóstia na boca de Maria de Araújo mudou de forma e de
cor. Transformou-se em sangue vivo.
O sangue desceu dos lábios da mulher e, como ela tentasse contê-lo, este
lhe banhou o dorso da mão esquerda. Depois, escorreu ao longo do braço,
até cair ao chão da capela, que ficou respingado de vermelho. Com ar
aflito, a beata mirava e mostrava ao padre uma toalhinha branca dobrada
nas mãos, tingida pelas manchas rubras que haviam transbordado da boca e
que ela depois procurara enxugar. Foi um alvoroço. Quando os primeiros
raios de sol aqueceram a alvenaria da fachada principal do templo, a
notícia já corria pelo povoado cearense: na branca capela de Nossa
Senhora das Dores, entre os lábios da beata Maria de Araújo, a hóstia
consagrada pelo padre Cícero havia se materializado na carne e no sangue
divino de Jesus. Sangue que, a exemplo do que ocorrera dois milênios
antes e no alto da cruz, estaria sendo derramado para lavar os pecados e
as dores dos homens.
Foi no dia 1º de março de 1889, uma sexta-feira, véspera da Quaresma.
Como a desafiar a incredulidade dos mais céticos, o episódio se
repetiria por meses a fio, sempre às quartas e sextas-feiras. No Sábado
de Aleluia, o sangue teria jorrado de novo da boca da beata Maria de
Araújo. Numa das ocasiões, de tão abundante, chegara a atingir e embeber
o corporal - o tecido branco e quadrangular sobre o qual se colocam o
cálice com o vinho - e a patena, o pratinho de metal com as hóstias.
Seria impossível, diante de tão insistentes e misteriosas manifestações,
conter o êxtase coletivo. De imediato, uma palavra passou a ser voz
corrente na região: milagre. Juazeiro do Norte transformara-se em chão
sagrado.
Moradores das cidades e localidades mais próximas chegavam ao minúsculo
povoado, atraídos pelas narrativas que davam conta do sangue de Jesus
derramado em pleno agreste. Mas foi em 7 de julho, um domingo que
marcava o ápice da festa cristã do Precioso Sangue, que Juazeiro
assistiu pela primeira vez à chegada maciça e ordenada de milhares de
peregrinos. Foi a primeira de todas as romarias. Naquela manhã, cerca de
3 mil pessoas - quase dez vezes a população do lugarejo - apinharam-se
nas estreitas ruelas do local. A maioria era proveniente do Crato e
vinha sob as bênçãos expressas do novo reitor do seminário, monsenhor
Francisco Rodrigues Monteiro. Conhecido pela oratória inflamada,
monsenhor Monteiro conduziu uma procissão até a capela de Nossa Senhora
das Dores, naquele dia adornada com velas, flores e fitas coloridas. Ao
término da missa, com sua autoridade clerical e o estilo ardoroso de
sempre, Monteiro fez um sermão histórico, durante o qual exibiu, com
gestos arrebatados, uma toalha manchada de sangue. Segundo ele, não
havia dúvidas de que aquele era o verdadeiro sangue de Jesus Cristo.
As palavras do reitor do seminário do Crato contagiaram o mundaréu de
gente. A comoção se propagou como descarga elétrica no meio da multidão.
Centenas de pessoas se prostraram de joelhos, em choro compulsivo,
diante da visão do tecido ensanguentado. Levas de peregrinos se
sucederam à romaria inicial. Vinham sempre aos milheiros, a pé ou a
cavalo, de perto e de longe, com o intuito de adorar os panos
considerados sagrados pelo contato com o sangue divino. Colocadas em uma
caixa de vidro e postas à exposição pública na capela do Juazeiro sob a
guarda de Cícero, as relíquias tornaram-se alvo de devoção extremada.
Não foi tudo. O Céu parecia ter aberto a caixa de milagres. Pouco
depois, em 19 de agosto daquele mesmo ano, espalhou-se que outro
fenômeno fantástico ocorrera no povoado. Segundo assegurava Maria de
Araújo, dessa vez o próprio Jesus Cristo teria lhe aparecido em visão,
enquanto ela orava na capela. Dois dias mais tarde, em nova aparição à
beata, em plena celebração da missa pelo padre Cícero, Jesus teria
revelado a ela, reservadamente, que decidira fazer do Juazeiro um portal
por onde apenas os puros e justos entrassem no reino dos Céus. Monsenhor
Monteiro parecia convicto de que a beata falava a verdade. "Não há
dúvida de que a beata Maria de Araújo, humilde, pobrezinha, é uma santa,
é uma santa como a história ainda não registrou!", escreveu o reitor.
"Muitos livros não bastarão para neles se escrever o que há de
sobrenatural naquela simples criaturinha de Deus!"
Os romeiros não ousaram duvidar da nova maravilha. Se, de acordo com o
que pregava a Igreja, Jesus teria aparecido em outros tempos para um
punhado de bem-aventurados, por que não se
revelaria agora para Maria de Araújo, que já teria obtido a suprema
graça de abrigar o sangue sagrado no interior de sua boca? Se dois
séculos antes, em 1675, Jesus teria mostrado o coração exposto em chamas
para a freira francesa Margarida Maria Alacoque em um convento da região
da Borgonha, por que não poderia repetir o mesmo prodígio, tanto tempo
depois, numa capela do pequenino Juazeiro, que tinha o piedoso padre
Cícero como seu protetor?
Todos sabiam que a Igreja Católica aceitava, como fato, a crença de que
Jesus Cristo, com o peito incendiado de sangue e de luz, teria pedido à
francesa Margarida Alacoque que difundisse mundo afora o culto ao
Sagrado Coração, confiando-lhe a missão divina de reparar, pela oração,
os sortilégios humanos. Pois para os que acorriam em massa a Juazeiro
não era de se admirar que o mesmo Cristo houvesse voltado à Terra e
anunciado a Maria de Araújo, uma devota fervorosa do Coração de Jesus,
que iria fazer, por meio dela, um novo chamamento às almas desgarradas
do caminho e da palavra de Deus. Padre Cícero, confessor da beata, seria
o grande responsável pelas bênçãos que estavam se derramando sobre o
Juazeiro. Era ele que indicaria a todos o caminho dos Céus.
Não demorou para que as histórias espantosas percorressem léguas e mais
léguas, até chegar às letras de forma dos principais jornais do país. O
primeiro periódico a noticiar o caso foi uma importante gazeta da
capital do Império, o Diário do Commercio, que tinha redação,
escritório e oficina montados na nevrálgica rua do Ouvidor, no Rio de
Janeiro. "Recebemos a seguinte informação, em carta dirigida da
província do Ceará", anunciava o jornal carioca, na edição de 19 de
agosto daquele ano de 1889. "Quando o padre Cícero dava a comunhão à
virtuosa beata Maria de Araújo, transformou-se a sagrada forma em
sangue, que caiu na toalha e na murça da beata, fato que se foi dando
todas as sextas-feiras e depois diariamente." Informava-se ainda que "um
sem-número de habitantes da cidade do Crato, e de toda a
circunvizinhança, concorreu de modo que jamais se viu naquela povoação
tamanha aglomeração de fiéis".
Dez dias depois, era a vez do Diário de Pernambuco repercutir a
notícia, com maior alarde. "Fato estupendo", lia-se em negrito nas
páginas do prestigioso jornal do Recife. A descrição do milagre era
novamente seguida da informação de que caravanas de peregrinos não
paravam de acorrer ao local. "É provável que esta fiel exposição de um
acontecimento sobrenatural levante a incredulidade, e que esta o comente
a seu sabor. Mas o que é certo é que ele foi testemunhado por mais de 30
mil pessoas; e que o Juazeiro tem se tornado uma nova Jerusalém pela
romaria dos povos vizinhos."
Uma nova Jerusalém. A senha estava dada. A serra do Catolé, com seu
espinhaço de pedra recortando o horizonte do Juazeiro, seria o novo
monte das Oliveiras. O riacho Salgadinho, que banhava as terras do
povoado, o novo Jordão. Jesus Cristo teria escolhido o povo mais simples
e o lugar mais remoto para, sobre ele, derramar de novo Sua palavra.
Nada mais justo, acreditavam os peregrinos em romaria. Segundo rezava o
Novo Testamento, não foram também os primeiros apóstolos homens do povo,
humildes e incultos pescadores de peixe, transformados pela fé em
pescadores de almas?
Cícero não podia ter dúvidas de quem era o remetente daquela carta que
vinha de Fortaleza, datada de 4 de novembro de 1889, com o selo e as
armas eclesiásticas gravados no lacre de cera. O bispo do Ceará, dom
Joaquim José Vieira, com a autoridade que lhe competia como chefe da
Igreja na província, cobrava explicações a respeito dos boatos que lhe
chegavam sobre aquele distante povoado. Com caligrafia rebuscada, o tom
da correspondência era cortês, mas firme.
"Sou amigo de Vossa Reverendíssima; confio na sinceridade e na sua
ilustração e por isso o julgo incapaz de qualquer embuste", iniciava,
amistosa, a carta do bispo ao padre Cícero Romão. "Faça-me, com a maior
urgência, uma exposição minuciosa de todas as circunstâncias que
precederam, que acompanharam e subseguiram o fato, para que eu possa
tomar as providências atinentes ao caso", ordenava dom Joaquim.
"Enquanto se espera por esse juízo, proíbo expressamente a Vossa
Reverendíssima qualquer manifestação a esse respeito", advertia o
prelado, para finalizar: "Estou persuadido que Vossa Reverendíssima,
ilustrado e piedoso como é, não se escandalizará com esta minha
determinação, pois sabe que me incumbe o dever de velar sobre a pureza
da doutrina católica. Deixo de fazer mais considerações porque julgo ter
explicado bem claramente o meu pensamento."
Apesar das ordens cristalinas contidas na mensagem, o bispo recebeu
apenas o silêncio como resposta. Chegou a enviar uma segunda
correspondência oficial a Cícero, reiterando a mesma cobrança, que ficou
igualmente sem retorno. "Parece-me ser grande imprudência chamar a
atenção do público para a beata Maria de Araújo. Este fato pode trazer a
ela sentimentos de vaidade, em detrimento da salvação", insistia dom
Joaquim, na segunda carta. "Padre Cícero, parece-me prudente não se dar
ainda expansão ao fato, porque é possível que mais tarde se verifique
ser ele fruto de causas meramente naturais; e então grande ridículo
recairá sobre a nossa Santa Religião."
Ao contrário do minucioso relatório que exigia, dom Joaquim viu-se
obrigado a ler pela imprensa uma nova notícia sobre os episódios
fantásticos. Desta feita, o agravo vinha com assinatura e, portanto,
assumida autoria. Uma carta escrita de próprio punho pelo monsenhor
Francisco Monteiro, o reitor do seminário do Crato, endereçada a um
cônego paulista, acabara de ser publicada em um jornal de São Paulo.
Nela, falava-se abertamente em novos milagres. Na carta, reproduzida
pela folha religiosa Estrela da Aparecida, monsenhor Monteiro
dizia que, no dia 22 de agosto, em Juazeiro, a beata Maria de Araújo
chegara à capela de Nossa Senhora das Dores, pouco antes da missa, com a
roupa banhada em sangue. Segundo ela, Jesus Cristo havia-se revelado de
novo a ela, desta vez devidamente paramentado,
de sobrepeliz e estola, como se fosse um padre pronto para subir ao
altar. Pelo relato, Jesus oferecera à mulher um cálice de ouro, cheio de
vinho, que de imediato se transformara em sangue. Maria de Araújo bebera
a metade do líquido e a outra metade teria sido derramada pelo próprio
Jesus sobre a cabeça da beata. "Quero que bebas o meu Sangue e te banhes
com ele", dissera-lhe Cristo, ainda conforme a carta assinada e tornada
pública pelo reitor do seminário do Crato. "Quero fazer deste lugar,
Juazeiro, um chamado para a salvação dos homens. É este um esforço de
amor do meu coração", acrescentara Jesus à beata Maria de Araújo.
O bispo se convenceu de que estava diante de um grave caso de
indisciplina. Meses antes, recebera em audiência no palácio episcopal,
em Fortaleza, o mesmo monsenhor Monteiro, que não lhe fizera a mais leve
menção ao assunto. Dom Joaquim sentiu-se ludibriado. Tanto por Monteiro
quanto por Cícero. Este, em junho, três meses depois da primeira
ocorrência dos alegados milagres, chegara a lhe enviar longa carta.
Nela, também não havia nenhuma palavra sobre o caso. Apenas um dramático
apelo para que o bispado intercedesse junto às autoridades e conseguisse
uma possível ajuda contra a seca que mais uma vez assolava a província.
"Vossa Excelência Reverendíssima, por caridade e por Nossa Senhora das
Dores que é dona deste lugarzinho tão caro a seu sagrado coração, seja o
instrumento de que ela se sirva para nos salvar", implorara Cícero. "Eu
não sou nada, tenho consciência do pouco que sou e por isso não me
atrevo a dirigir-me aos que governam; são políticos, só com políticos se
entendem. Lembrei-me de pedir a Vossa Excelência, que sabe chorar com os
que choram, para se interessar por nós, nos alcançando algum recurso do
Governo", dizia a carta. "Temos pedido muito a Nosso Senhor e os meus
pecados impedem que ele ouça! Como posso ver esse pobre povinho que amo
tanto, como uma parte de minha alma, desaparecer?", escrevera o padre
Cícero. Sobre hóstias que se transformavam em sangue, nada.
Dom Joaquim sabia que uma circunstância histórica tornava o assunto
ainda mais explosivo e suscetível de contagiar multidões. As notícias
sobre o milagre se espalhavam com a mesma velocidade -daquelas que davam
conta de que, no Rio de Janeiro, um grupo de militares havia acabado de
derrubar o imperador dom Pedro ii e proclamado a República. Para
cristãos mais exaltados, a confluência entre os dois episódios
significava um claro sinal de que o fim dos tempos estava próximo. Os
republicanos, que estabeleceriam a separação constitucional entre Igreja
e Estado e instituiriam o casamento civil, passaram a ser a própria
representação do Anticristo. A Bíblia dizia que quando este chegasse à
Terra, o fim do mundo estaria próximo. O alegado milagre no Juazeiro
seria então a resposta dos Céus, a advertência celeste de que era
chegada a hora do arrependimento final.
Cícero, que durante os longos primeiros quarenta anos de sua vida havia
permanecido um sujeito anônimo fora das fronteiras do pequenino
Juazeiro, começava a desfrutar de uma notoriedade crescente. Para os que
acreditavam no milagre, ele era o santo benfazejo do Cariri. Para dom
Joaquim, ao contrário, ele era a ovelha desgarrada, aquela que ameaça
pôr a perder todo o resto do rebanho. Ao deixar de responder às duas
cartas enviadas pelo palácio episcopal, Cícero caíra em descrédito
perante o julgamento de seu superior imediato. Para o bispo, o
indesculpável silêncio equivalia a uma confissão de culpa. No entender
de dom Joaquim, o único remédio que restava era fazer cumprir a
proverbial sentença: "Antes que o mal cresça, corte-se-lhe a cabeça."
2001: Ratzinger reabre o caso
Foto: Arquivo Renato Casimiro/Daniel Walker
Eram nove horas da manhã. Como fazia todos os dias, o cardeal alemão
Joseph Ratzinger, 74 anos, atravessava a pé a praça de São Pedro, no
coração da Santa Sé. De batina preta, boina de feltro escuro sobre os
cabelos muito brancos, o proeminente teólogo era reconhecido como o mais
poderoso interlocutor de Sua Santidade, o papa João Paulo ii. Ratzinger
percorreu com passos firmes o caminho e, diante do portão de ferro do
Palácio do Santo Ofício, recebeu a habitual continência dos dois
soldados da Guarda Suíça. Transposto o pórtico principal, chega-se às
dependências da Congregação para a Doutrina da Fé - como desde 1965
passou a ser denominado o Santo Ofício, mais anteriormente conhecido
pelo nome original, que fazia tremer a alma dos acusados de heresia:
Inquisição Romana. No interior daquelas paredes de pedra, em pleno
século xxi, ainda existe um tribunal religioso encarregado de julgar os
que professam opiniões divergentes das consideradas oficiais pela
Igreja.
Na condição de prefeito da Congregação, o equivalente contemporâneo ao
cargo de inquisidor-geral, cabia a Joseph Ratzinger o papel de guardião
da ortodoxia católica. Por isso, alguns dos segredos mais caros ao
Vaticano eram conduzidos na velha valise de couro negro que ele sempre
levava à mão direita.
No escritório, em cima da vasta mesa de trabalho, a pilha de papéis
oficiais com o timbre da Santa Sé dividia espaço com um crucifixo de
ouro, uma luminária, um porta-lápis e um pequeno calendário. Neste
último, via-se a indicação: primavera de 2001. O cardeal, sentado em sua
cadeira estofada de espaldar alto, preparou à mão o esboço de uma carta
que seria enviada em caráter reservado à Secretaria-geral da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil, a cnbb. A correspondência dizia respeito
a um delicado tema: a pertinência de uma possível reabilitação canônica
de um sacerdote brasileiro falecido em 1934, aos 90 anos de idade.
Alguém que levou para o túmulo o estigma de ter sido um proscrito da
Igreja. Um clérigo julgado e condenado como insubmisso, contra o qual os
inquisidores da época pediram a pena de excomunhão. Um reverendo maldito
que, a despeito disso, continua a arrebanhar milhões de peregrinos e
devotos, incansáveis perpetuadores de sua memória: o padre Cícero Romão
Batista.
O diligente Joseph Ratzinger, é claro, tinha
notícia dos cerca de 2,5 milhões de fiéis que acorrem todos os anos a
Juazeiro do Norte, cidade a 520 quilômetros de Fortaleza, no interior do
Ceará. O número de peregrinos que chegam ao local onde viveu padre
Cícero impressiona. É como se toda a população de uma metrópole como
Roma se deslocasse em massa, anualmente, para reverenciar um sacerdote
banido das hostes da Igreja. Em Juazeiro, a multidão compacta paga
promessas, acende velas, renova a fé, faz novos pedidos e invoca a
proteção de seu guia espiritual.
No topo da serra que avizinha a cidade, foi erguida uma imagem
gigantesca do padre Cícero, com 27 metros de altura, uma das dez maiores
estátuas cristãs em concreto das Américas. Próximo à capela onde está
enterrado o corpo do reverendo, na chamada Casa dos Milagres, o
testemunho das centenas de milhares de graças alcançadas arrebatam o
olhar de quem chega à porta. São os chamados ex-votos: fotografias e
esculturas em madeira, cera ou barro, que reproduzem partes do corpo
humano. Pernas, braços, mãos, cabeças. Muitas cabeças. Foram deixados
ali por doentes terminais, alguns dos quais juram ter recuperado a
saúde, aleijados que afirmam ter voltado a andar, cegos que dizem ter
voltado a ver, loucos que asseguram ter recuperado o juízo. Para toda
essa gente, padre Cícero é o santo milagreiro, canonizado pela devoção
popular, embora proibido de entrar nos altares oficiais.
Difícil encontrar uma casa católica no sertão nordestino na qual não
exista uma imagem de padre Cícero. Retratado sempre com o cajado, o
chapéu e a batina, ele parece onipresente. Em Juazeiro, mais ainda. Ele
está na fachada das lojas, dos supermercados, dos cartórios, das
bodegas, dos comitês eleitorais. Estátuas de Cícero em gesso - e em
tamanho natural - adornam até mesmo as agências das grandes redes
bancárias instaladas na cidade. Ele só não está nas igrejas.
Para o Vaticano, tal veneração tem se tornado ainda mais eloquente
diante da constatação de que, a cada ano, o catolicismo perde milhares
de adeptos no Brasil. Segundo cálculos da própria cnbb, a sangria de
fiéis é considerada alarmante. O país continua a ser "a maior nação
católica do mundo". Mas a última década assistiu à queda vertiginosa no
percentual de católicos brasileiros, enquanto o contingente de
evangélicos se multiplicou em idêntica proporção. Deixar que o culto a
padre Cícero permaneça à margem da liturgia significa negar o
acolhimento pastoral a toda uma preciosa legião de devotos. Ratzinger
sabia disso. Tinha plena ciência da força do mito em torno do chamado
Patriarca de Juazeiro.
É óbvio que o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé não
desconhecia também as graves acusações históricas que recaem sobre o
homem Cícero Romão Batista. Elas não são poucas. Quando reunidas,
constituem notórios obstáculos à idéia de anistiar, post-mortem,
as penas que foram impostas ao padre, em vida, pelo Tribunal do Santo
Ofício. A primeira incriminação que incide sobre Cícero é a de ter sido
um mistificador, um aproveitador das crenças do povo mais simples, um
semeador de fanatismos. Homem de idéias religiosas pouco ortodoxas,
leitor de autores místicos, dado a ver almas do outro mundo e defensor
de milagres não endossados pelo Vaticano, Cícero estaria mais próximo da
superstição do que da fé, disseram dele os muitos adversários que
colecionou no meio do próprio clero. Decorre daí outra incriminação,
ainda mais incisiva: a de que nas vezes em que fora repreendido por seus
superiores eclesiásticos agira como um rebelde e caíra em desobediência.
Na rígida hierarquia clerical, desobedecer a um superior constitui
pecado gravíssimo. Almas indóceis à autoridade de bispos e cardeais não
vão para o Céu, assim determina a lei da Igreja.
A relação de Cícero Romão Batista com jagunços e cangaceiros tem sido
outro entrave à possível anistia cogitada por Ratzinger. Como absolver
das penas do Tribunal do Santo Ofício um padre sobre cujas costas os
detratores jogam a responsabilidade pela concessão da patente de capitão
ao mais feroz dos bandoleiros nordestinos, Virgulino Ferreira da Silva,
o Lampião, em troca do compromisso para que o "Rei dos Cangaceiros"
enfrentasse, em 1926, a célebre Coluna Prestes em sua passagem pelo
sertão? Como indultar um clérigo que mesmo antes disso, em 1914, teria
benzido rifles, punhais e bacamartes, aparato bélico entregue à
jagunçada para promover uma sedição armada que envolveu saques violentos
a várias cidades interioranas, produziu a morte de centenas de inocentes
e resultou na derrubada de um governo legal? Como redimir as penalidades
de um sacerdote que se transformou em líder político, fez-se o primeiro
prefeito de Juazeiro do Norte, elegeu-se deputado federal, tornou-se
vice-presidente (cargo então equivalente ao de vice-governador) do Ceará
e arquitetou um pacto histórico entre os poderosos coronéis do sertão?
Como perdoar um padre que acumulou vasto patrimônio à custa das esmolas
e das doações de fiéis? Para os algozes de Cícero, não faltariam
argumentos contrários a uma reabilitação canônica.
Entretanto, do mesmo modo, não são poucos os que definem a eterna
tempestade de acusações contra Cícero como frutos de inverdades
históricas, interpretações distorcidas e preconceitos elitistas que
foram se acumulando, ao longo do tempo, em torno de tão controvertida
figura. A carta que o cardeal Joseph Ratzinger escreveu naquela manhã de
primavera tinha o objetivo de retomar - com a chancela do brasão do
Vaticano - uma questão sobre a qual se debatem, por décadas a fio,
apologistas e difamadores de Cícero Romão Batista.
Quem foi esse homem misterioso que, mesmo tendo um decreto de excomunhão
assinado contra si, arrebatou o coração das massas e passou à memória
coletiva e ao panteão popular como o santo Padim Ciço? Era um
apóstolo visionário que soube entender a língua do povo, converteu
multidões com sua singela pastoral sertaneja, mas ainda assim foi
injustiçado por um clero intransigente, etnocêntrico, refratário às
diferenças? Ou foi um sujeito astuto que usou a batina em seu próprio
benefício, amealhou fortunas em terras, imóveis e gado, alimentando a
sede de poder na miséria e na ignorância de
seus devotos?
Não parece ter sido coincidência. Poucos meses depois de a carta de
-Joseph Ratzinger ter alcançado o devido destino - a sede da
Cnbb, em Brasília -, um novo bispo diocesano
desembarcou no pequeno terminal de passageiros do Aeroporto Orlando
Bezerra de Menezes, em Juazeiro do Norte. O homem nomeado por João Paulo
ii para administrar dali por diante a diocese do Crato, à qual está
subordinada a forania de Juazeiro, é um italiano sorridente e de fala
serena. Quando perguntado se vem com alguma missão específica - e se tal
missão tem relação direta com a possível reabilitação de padre Cícero -,
ele silencia. Em alguns casos, dependendo do interlocutor, vai além:
esboça um de seus enigmáticos sorrisos.
O recém-chegado, dom Fernando Panico, nascido em 1946 na cidade de
Tricase, sul da Itália, exibe um currículo exemplar. Além de sobrinho de
um cardeal com respeitáveis serviços prestados à Santa Sé - dom Giovanni
Panico, ex-núncio em Portugal -, traz na bagagem os diplomas de bacharel
em filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana e em teologia pelo
Pontifício Ateneu Santo Anselmo, ambos em Roma. Mestre em teologia
litúrgica e doutor em liturgia, Panico está no Brasil desde 1974. Aqui,
sempre trabalhou em dioceses nordestinas. Primeiro no Maranhão, onde foi
reitor de seminário. Depois no Piauí, como bispo de Oeiras e Floriano.
Conhece bem, portanto, o universo e os matizes da religiosidade popular
dos sertões. Está familiarizado com as singularidades das manifestações
de fé do catolicismo caboclo, que tem em padre Cícero uma de suas
maiores referências.
Tão logo tomou pose no comando da diocese, em junho de 2001, dom
Fernando Panico demonstrou, sem meias-palavras, claramente ao que vinha.
Do alto do púlpito, durante a homilia que fez na primeira missa como
novo bispo do Crato, anunciou o propósito de encorajar e apoiar novos
estudos críticos sobre a trajetória de Cícero Romão Batista. Em uma
carta pastoral aos fiéis, datada de 20 de outubro daquele ano, reafirmou
o mesmo propósito: "[Ele] merece nosso carinho, apesar de tudo o que
contra ele aconteceu e se tem escrito", observou o bispo a propósito do
ambíguo sacerdote. Tais afirmações causaram mal-estar nos membros mais
tradicionais do clero do Crato, que têm Cícero na conta de um
embusteiro. "Padre Cícero chegou ao Juazeiro missionário, tornou-se
visionário e acabou milionário", costumava dizer dom Newton Holanda
Gurgel, o antecessor de dom Fernando, que se viu compelido a renunciar
ao cargo ao completar 75 anos de idade e com isso, não sem visível
incômodo, passar a mitra ao sucessor.
Não há dúvidas de que os ventos da Igreja pretendem soprar em outra
direção. O que está em cena não é uma mera questão paroquial, uma nova
frente de batalha na eterna rivalidade entre cratenses e juazeirenses.
Naquele mesmo mês de outubro, dom Fernando embarcou para Roma,
acompanhado dos demais bispos do Ceará e Piauí, por ocasião da visita
ad limina ao Vaticano - uma obrigação imposta pela Igreja a seus
prelados a cada cinco anos, que devem se ajoelhar diante dos túmulos dos
apóstolos são Pedro e são Paulo, além de serem recebidos pelo papa para
reportar o estado pastoral de suas dioceses. Dom Fernando aproveitou a
viagem à Cidade Eterna e logo obteve uma audiência com o cardeal Joseph
Ratzinger, no Palácio do Santo Ofício. Na pauta do encontro com o
prestigioso prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o assunto foi
um só: padre Cícero.
Ratzinger não só estimulou dom Fernando a levar adiante os novos estudos
sobre Cícero como deu instruções detalhadas a respeito da forma de
conduzir o processo, de acordo com os rituais e procedimentos da
Congregação. Como conselho adicional, Ratzinger sugeriu que as
concorridas romarias a Juazeiro do Norte deviam ser incentivadas e
acolhidas, ao contrário do que fazia o bispo anterior, dom Newton. A
recomendação do cardeal foi obedecida à risca. Algum tempo depois da
volta ao Brasil, dom Fernando fez publicar uma segunda carta pastoral
aos fiéis, sintomaticamente intitulada "Romarias e Reconciliação". O
sinal de distensão entre a Igreja e os romeiros, principal herança
deixada pelo sacerdote proscrito, ficou evidente: "Mais do que nunca é
necessário reconhecer as romarias de Juazeiro do Norte como uma profunda
experiência de Deus e legítima experiência de fé", dizia a carta do
bispo aos diocesanos.
Para seguir os desígnios ditados por Roma, dom Fernando organizou uma
comissão multidisciplinar de estudos, a quem coube mergulhar nos
arquivos oficiais da diocese, mas também em acervos particulares e de
instituições públicas, para tentar legitimar a possível reabilitação de
Cícero Romão Batista. Pelos trâmites do Vaticano, reabilitar o padre
significaria o primeiro passo a caminho de uma presumível canonização.
Após ele ser devidamente perdoado pela Congregação da Doutrina da Fé, o
segundo passo seria a abertura do processo de beatificação, depois do
qual Cícero passaria a ser declarado um "bem-aventurado", o degrau
imediatamente inferior ao seu reconhecimento como santo, quando enfim
poderia ser elevado à honra dos altares.
A comissão organizada por dom Fernando, obedecendo às diretrizes de
Ratzinger, foi composta por especialistas, mestres e doutores em
diversas áreas do conhecimento: antropologia, filosofia, história,
psicologia, sociologia e teologia. Para evitar pressões oriundas do
clero do Crato, os membros passaram a se reunir em São Paulo, onde
recebem a visita de dom Paulo Evaristo Arns, o cardeal arcebispo-emérito
da diocese paulista, que já revelou simpatia pela reabilitação canônica
do padre Cícero. Durante cerca de cinco anos, a comissão de notáveis
trabalhou estrategicamente em silêncio, reunindo informações, acessando
papéis até então intocáveis, trazendo à luz novos elementos para um
julgamento póstumo de Cícero Romão Batista.
Às 21h37 de um sábado, 2 de abril de 2005, o papa João Paulo ii exalou o
último suspiro. Dezessete dias depois, o conclave de cardeais reunido no
Vaticano autorizou que a fumaça branca fosse lançada pela chaminé da
Basílica de São Pedro. Habemus Papam, logo entenderam os milhões
de católicos espalhados pelo planeta, que testemunharam
tudo pela televisão. O cardeal Ratzinger é eleito o 265º sucessor
de Pedro e coroado como Bento xvi. O homem que iniciou o processo de
reabilitação do padre Cícero é agora o chefe supremo da Igreja Católica
Apostólica Romana.
Em 30 de maio de 2006, pouco mais de um ano após Bento xvi iniciar seu
pontificado, uma comitiva brasileira liderada pelo bispo do Crato, dom
Fernando Panico, chegou ao Vaticano. Levava consigo onze grossos volumes
encadernados em capas vermelhas e identificados com letras gravadas em
dourado. São cópias de documentos religiosos e seculares, incluindo a
vasta correspondência trocada entre os protagonistas da história
tumultuosa de Cícero. Também estão ali os relatórios e os pareceres da
comissão de especialistas encarregada dos novos estudos em torno do
caso. Um volume à parte traz cerca de 150 mil assinaturas em prol da
reabilitação, às quais se soma um abaixo-assinado no qual se lê o nome
de nada menos que 253 bispos brasileiros favoráveis à causa.
Uma carta de dom Fernando ao papa completa a papelada. "Venho com toda
esperança e humildade suplicar a Vossa Santidade que se digne reabilitar
canonicamente o padre Cícero Romão Batista, libertando-o de qualquer
sombra e resquício das acusações por ele sofridas", escreveu o bispo.
"Posso testemunhar, Santidade, que as nossas romarias são um baluarte da
fé dos pobres, filhos queridos da Igreja Católica, cuja devoção contém e
freia, por assim dizer, o avanço das seitas evangélicas na nossa
região", explicita. Na carta, dom Fernando recordou que o mesmo Bento
xvi, então cardeal, é quem lhe sugerira reabrir os estudos históricos
sobre Cícero. "A comissão de estudiosos, ao realizar as novas pesquisas,
manteve-se numa discrição objetiva das fontes. À Congregação para a
Doutrina da Fé compete a análise de nosso trabalho. E a Vossa Santidade
a palavra conclusiva."
Nas prateleiras empoeiradas do antigo Tribunal do Santo Ofício, por
determinação de Bento xvi, os documentos secretos que resultaram na
expulsão de Cícero das fileiras da Igreja começam a acordar de um sono
de quase 100 anos