Foto: Gabriel Rinaldi
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A cantora baiana Maria Bethânia, durante ensaio
fotográfico para a revista Bravo!
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Maria Bethânia
canta o amor e o misticismo em dois novos álbuns. Em entrevista a
BRAVO!, critica os que a atacam por usar a Lei Rouanet e elogia a
senadora Marina Silva, possível candidata à Presidência da República
Armando Antenore
Passa um pouco do meio-dia e, sob orientação do
fotógrafo de BRAVO!, Maria Bethânia caminha pelos jardins da Villa
Riso, a parte remanescente de uma fazenda do século 18 que se
transformou em espaço para festas. É lá, na estrada da Gávea, zona
sul do Rio de Janeiro, que a cantora costuma receber jornalistas. O
lugar fica próximo à casa onde mora desde 1972. "Por favor",
pede-lhe o fotógrafo, "sente-se debaixo daquele pinheiro." Bethânia
abana a cabeça negativamente: "Ali não". Com gentileza, mas
irredutível, esclarece que pinheiros a incomodam. "Em minha terra,
são árvores de cemitério."
Oriunda de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, a
irmã de Caetano Veloso - adepto de "uma irreligiosidade feroz", como
já se definiu - nunca separou rigidamente o místico daquilo que os
cartesianos chamam de real. Para a intérprete, o sagrado e o
corriqueiro se entrelaçam. Um explica e alicerça o outro. Tal
convicção, que a artista manifesta com uma naturalidade às vezes
desconcertante, estimula um divertido folclore em torno dela, uma
profusão de lendas que a tomam por feiticeira ou algo assim. "Quando
Bethânia inicia uma turnê, chove. Evite usar negro ao lado de
Bethânia. Sempre que Bethânia entra no estúdio, os monitores de
ouvido acusam interferências." Das inúmeras histórias, a cantora -
famosa por resguardar avidamente a própria intimidade - só confirma
que não veste roupas pretas. Dispensa a cor em respeito às
recomendações do candomblé, crença que abraçou junto com a devoção
pelo catolicismo. "Mas podem usar negro perto de mim", avisa, às
gargalhadas.
A faceta mística de Bethânia desponta claramente
no CD Encanteria, um dos dois que acaba de lançar. O álbum do
selo Quitanda agrega 11 composições inéditas - sambas e toadas sobre
orixás, santos e as celebrações que os homenageiam. Caetano e
Gilberto Gil cantam na faixa Saudade Dela. O outro disco,
Tua, sai pela Biscoito Fino. Também reúne 11 músicas inéditas e
conta com a participação do pernambucano Lenine. De sonoridade mais
urbana, tem como mote o amor.
Em conjunto, os delicados trabalhos reafirmam que
Bethânia já não cabe apenas nos rótulos de "romântica", "brejeira"
ou "artista de massa". Ela é hoje, aos 63 anos e 46 de carreira, um
clássico à altura de Edith Piaf, Nina Simone ou Ella Fitzgerald,
ainda que de abrangência menor.
Durante a entrevista de quase duas horas, a
cantora trajava uma pantalona azul e uma pashmina cor-de-rosa,
espécie de xale que lhe recobria os ombros. Pelas mãos, braços e
pescoço, espalhava algumas joias, a maioria dourada. Um dos anéis e
o relógio de pulso despertavam especialmente a atenção.
BRAVO!: Que anel curioso.
Maria Bethânia: Você gostou? Traz a imagem
do meu caboclo.
Um índio?
Exato, o caboclo que me protege, graças a Deus.
Veja só que história inusitada: uma vez, desembarcando em Miami,
topei na imigração com um policial branco, alto e muito forte.
"Virgem Santíssima!", pensei. "Olhe o tamanho do sujeito!" No
entanto, para minha surpresa, o homem sorriu. Quando pegou meu
passaporte, notei que ostentava um anel de prata enorme. Uma peça
luminosa, com o rosto de um índio. "Que anel incrível!", comentei em
português. O homem continuou rindo como se me compreendesse. De
repente, tirou o anel e me deu. Um gesto absolutamente improvável: a
polícia dos Estados Unidos distribuindo presentes no aeroporto?! Tão
logo retornei para casa, providenciei uma cópia do anel, menorzinha,
em ouro. É a que estou usando.
Qual o nome do caboclo? Pode revelar?
Quer saber demais sobre o meu caboclo! (risos)
Há décadas, pertenço à Nação Ketu do candomblé. Mas, ainda garota,
em Santo Amaro, costumava visitar um terreiro de outra nação, a
Angola. Ali os fiéis não cultuavam somente os orixás. Também
recebiam o espírito dos índios que habitaram o Brasil, os caboclos.
É uma tradição maravilhosa, que me comove. Por isso, conservo o
anel. Sem contar que tenho uma bisavó indígena, da etnia pataxó.
E o relógio?
Comprei para marcar um acontecimento...
Que acontecimento?
Não vou entrar em detalhes. Foi algo bonito que
me ocorreu e que se relacionava com o tempo. Precisava de uma coisa
que simbolizasse aquilo.
Como uma tatuagem?
Tatuagem, não,
o candomblé proíbe. Engraçado
que, bem jovenzinha, sonhava em fazer uma. Cresci num lugarejo
repleto de rios, mas passava as férias na praia. Sempre amei
perdidamente o mar. Meu pai dizia que a terra e o oceano se
espelham. "Tudo o que existe aqui em cima existe no fundo do mar."
Eu o escutava, e minha imaginação corria solta: "Tudo, pai?
Coqueiro, abelhas, montanha?". Ele jurava que sim. Não à toa, os
marinheiros me encantavam. Admirava as tatuagens que carregavam nos
braços. "Quando mandar em mim, arranjarei uma igual", planejava.
Àquela época, poucas mulheres ousavam exibir tatuagem. Eu, atrevida,
desejava uma nas costas, do lado direito, perto da bunda. Cogitei,
primeiro, desenhar uma sereia. Sou fascinada por sereias. Depois
mudei de opinião: "Vou botar uma estrela, ou um sol, ou uma lua".
Acabei não desenhando nada.
Sereias a fascinam?
Imensamente. Criança, ganhava umas de minha mãe,
pequeninas, de barro. Agora ganho dos amigos e dos fãs. Em casa, há
um punhado: de metal, gesso, madeira. Sereias são as donas da voz...
Senhoras da emissão, que cantam por minha boca. Só sei cantar graças
às sereias. Elas me ensinaram. Minha voz apenas mora em mim. Não é
minha. É das sereias. É de Deus.
Uma metáfora, não? Ou você realmente acredita que
sereias existam?
Acredito. Certas pessoas conseguem ouvi-las,
enxergá-las. Eu nunca as enxerguei. Mas as sinto, talvez porque
queira senti-las. Creio que hoje esteja no mesmo lugar em que as
sereias se encontram. Uma bênção!
Julga-se predestinada?
Sem dúvida. Nasci para o que faço. Já na
infância, me comportava de maneira incomum. Andava maquiada por
Santo Amaro como uma vedete, confeccionava minhas próprias roupas e
imitava os personagens das peças que o grupo local de teatro
montava. O povo da cidade morria de vergonha. Evitavam a minha
companhia. Somente o Caetano me apoiava. Eu avisava: "Não adianta
reclamar, pessoal! Sou do palco, vou viver do palco". Não suspeitava
ainda que iria cantar. Pretendia virar trapezista. Circo me atraía
muitíssimo. Uma ocasião, caí de amores por um palhaço, o Poli, mal o
avistei no picadeiro. Paixão doida, de cinema! Fiquei tão envolvida
que arrumei um jeito de conhecê-lo sem máscara. Era um homenzinho
calvo, quase sexagenário. "Vou fugir com o senhor!", repetia. O
coitado, lógico, apenas gargalhava. Quando o circo partiu de Santo
Amaro, me desmanchei de tanto chorar.
Em que momento você resolveu se tornar cantora?
Com uns 15 anos. Ou melhor: Caetano resolveu por
mim! (risos) Ele compunha a trilha de um curta [Moleques de
Rua, do diretor Álvaro Guimarães, o Alvinho] e me pediu para
gravá-la. Topei na hora. Quatro anos mais velho, Caetano me
influenciava bastante. Nós o considerávamos o gênio da família.
Desde cedo, o danado pintava como ninguém, tocava, escrevia canções.
Lembro-me de vê-lo redigir uma peça inteira com 8 ou 9 anos. "Você
vai fazer o papel da estrela", me prometia. Eu, um toquinho de
gente, concordava. (risos) O negócio é que acabei gravando a
trilha em Salvador, no ateliê de Mário Cravo Jr. [escultor].
Que período bom, rapaz! Pouco depois, em 1963, Alvinho encenou
Boca de Ouro, a tragédia do Nelson Rodrigues, e me chamou para
cantar um samba de Ataulfo Alves no prólogo. Iria interpretá-lo da
coxia, sem aparecer. Mesmo assim, não deixei de caprichar nos
trajes. Pus luvas, brincos, colar...
Foi em Salvador, na década de 1960, que você se
aproximou de Gal Costa. Continuam amigas?
Continuamos, só que não como antigamente.
Perdemos o convívio. Éramos grudadas, irmãs. Agora... Gal se
distanciou muito de mim e de Caetano. Não brigamos nem nada. Ela
apenas se isolou. Diminuiu o ritmo, se afastou da música, adotou um
filho [Gabriel, em 2007]. Mora lá na Bahia e cuida do menino,
linda. Um dia lhe perguntei: "Do que você mais gosta hoje, do canto
ou da maternidade? Me responda, mulher!". Não respondeu. (risos)
Tenho a impressão de que Gal, uma cantora inigualável, não se
entusiasma tanto pelos novos autores. Deve avaliar que suas
composições não estão à altura da voz dela, daquele cristal
perfeito. É compreensível. A emissão de Gal exige de fato canções
tão sofisticadas quanto as de Caetano, Chico Buarque, Dorival
Caymmi, Tom Jobim, Ary Barroso. Eu, em contrapartida, não enfrento o
mesmo problema. Sou uma intérprete antes de tudo. Uma intérprete de
textos, de ideias, que também pode cantar. Não sou uma purista.
Você nunca pensou em gerar ou adotar um filho?
Pensei em dar à luz com meus 18, 19 anos. Desisti
mais tarde e não me arrependo. Filho são meus discos, é minha
carreira. Não disponho da sabedoria de meus pais para educar uma
criança. E o mundo em que vivemos... A correria, a violência, a
competição, o ar irrespirável... Colocar um bebê nesse inferno? Em
um planeta sufocado? Fico apavorada quando constato algumas
inversões de valores. O dinheiro, por exemplo. Virou o centro do
universo. Uma loucura! Às vezes, acho que a atual crise financeira é
um alerta do próprio dinheiro: "Prestem atenção! Entendam a minha
natureza. Posso dormir um hoje e acordar outro amanhã". Enfim... Sou
cruel com os amigos e sobrinhos que têm filhos. Cobro que zelem
pelas crias e não admito que se queixem. Decidiram ter? Então se
redobrem para ampará-los.
Os dilemas ecológicos parecem preocupá-la. Você
apoiará a possível candidatura à presidência da senadora Marina
Silva, que acabou de ingressar no Partido Verde?
Marina me arrebata. É nobre, firme, sóbria. E
domina a área dela, a do meio ambiente. Como Gilberto Gil [ex-ministro
da Cultura], passou pelo governo federal sem se manchar, sem
cometer erros crassos. Jurei que não votaria mais em candidato
nenhum, nem do Executivo nem do Legislativo. Mas a Marina talvez me
anime a voltar atrás. Fechei com Lula nas eleições de 2002 e,
depois, parei de votar. Os políticos me irritam. Imaginam que somos
idiotas.
Recentemente, você sofreu críticas da imprensa
por recorrer à Lei Rouanet para bancar alguns de seus espetáculos...
(Interrompendo) Sofri... Uma palhaçada!
Uma tristeza! "Governo de esquerda só pode ajudar quem não faz
sucesso." Que raciocínio torto! A lei deve acolher gregos e
troianos: o ministério avaliza os projetos e cada artista sai à caça
de patrocinador, como manda o figurino. Qual o drama? Por que tanta
chateação?
Porque se trata de verba pública.
Verba pública? Nunca trabalhei com verba pública!
A lei prevê que os patrocinadores descontem os
gastos do Imposto de Renda - um dinheiro que, em tese, iria para o
setor público.
Renúncia fiscal, menino! É um mecanismo ótimo! O
mínimo que a cultura merece.
E quanto à alegação de que shows como os seus ou
os de Caetano, Ivete Sangalo e outros cantores famosos se pagariam
apenas com a bilheteria, sem a necessidade de patrocínio?
O quê? Apenas com a bilheteria? Qualquer espetáculo de certo
porte no Brasil consome uma fortuna. Nossos custos são de ópera! A
plateia pede um cenário elegante, uma iluminação de primeira, um som
magnífico. Não condeno, não. Estão corretíssimos! Mas qualidade tem
preço. Para subir num palco, preciso ensaiar 40 dias ou mais. Você
sabe o que significa arcar com 40 dias de estúdio, técnicos,
equipamento, músicos? Um absurdo! "Ah, a cantora também leva uma
bolada." Leva? Quem menos ganha é a cantora. Com despesas tão
elevadas, você julga
viável depender só da bilheteria? Não há Canecão lotado que cubra um
espetáculo. Não há teatro
no país que cubra - e olhe que os ingressos não são baratos,
infelizmente. Sem patrocínio, amargaríamos prejuízo caso quiséssemos
manter o alto nível dos shows. E, sem a lei, não conseguiríamos
patrocínio nenhum. Zero! Portanto...
(©
Bravo Online)
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