Após estudar textos do líder dos
canudenses, pesquisador da PUC-SP contesta a visão sobre ele apresentada
em Os Sertões
José Maria Mayrink
A leitura dos sermões de Antônio
Conselheiro, o líder de Canudos morto em 1897, quando o arraial de Belo
Monte foi arrasado pelas tropas do governo, mostra que ele era um
sertanejo letrado e bom conhecedor da doutrina da Igreja Católica no
século 19. O pesquisador Pedro Lima Vasconcellos, que em 2004 defendeu
na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo a tese de doutorado
Terra das Promessas, Jerusalém Maldita, sobre a conotação religiosa da
guerra no sertão da Bahia, chega a essa conclusão em seu trabalho de
livre-docência, apresentado em junho também na PUC-SP, onde é professor
do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião.
Nesse estudo - intitulado Abrindo as Portas do Céu: Apontamentos para a
Salvação, Subscritos por Antônio Vicente Mendes Maciel -, Vasconcellos
transcreve e analisa o conteúdo do manuscrito intitulado Apontamentos
dos Preceitos da Divina Lei de Nosso Senhor Jesus Christo, para a
Salvação dos Homens, datado de 1895, que o pesquisador José Calasans
(1915-2001), guardou e doou para a Universidade Federal da Bahia (UFBA),
que o conserva em Salvador, à espera de projeto e verbas para sua
publicação em livro. Além dos originais, a UFBA tem cópias eletrônicas
em CD-ROM, à disposição de estudiosos interessados no assunto. Em 2002,
Walnice Nogueira Galvão e Fernando da Rocha Peres publicaram, em
Breviário de Antônio Conselheiro, trechos do manuscrito em fac-símile.
Outro manuscrito, de 1897, atribuído ao Conselheiro, ou subscrito por
ele ao confiar a redação a copistas, foi editado em 1974 por Ataliba
Nogueira, que ao analisar os originais - Tempestades Que se Levantam no
Coração de Maria por Ocasião do Mistério da Anunciação - fez uma revisão
histórica da Guerra de Canudos. Os dois manuscritos foram encontrados
nas ruínas de Belo Monte, após sua destruição. "Antônio Conselheiro
infame bandido", anotou um soldado anônimo no verso da folha de abertura
do manuscrito de 1895, traduzindo nessas palavras o conceito que se
fazia do líder. Esta seria a imagem que Euclides da Cunha pintaria dele
em Os Sertões, o mais completo relato - com base na série de reportagens
que escreveu para o Estado - sobre a luta das tropas federais contra os
canudenses.
Na descrição de Euclides, que se baseou em testemunhos de terceiros,
Antônio Conselheiro era um "anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos
ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante;
monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao
clássico bastão, em que se apoia o passo tardo dos peregrinos...". Para
Pedro Vasconcellos, o caderno de prédicas do Conselheiro "desmente o
retrato mais famoso dele, pintado com tintas fortes por Euclides da
Cunha, apresentando-o como desequilibrado e ignorante". Segundo
Vasconcellos e outros estudiosos, como Fernando Peres (professor emérito
da Universidade Federal da Bahia), Vicente Dobroruba (Universidade de
Brasília) e Aleilton Fonseca (Universidade Estadual de Feira de
Santana), o pregador de Canudos tinha conhecimentos de latim e ensinava
uma doutrina coerente, numa linguagem acessível a seus adeptos.
"Se a Igreja censurou o Conselheiro e tentou acabar com Belo Monte, não
foi por causa do discurso ortodoxo que fazia, mas por julgar que, como
leigo, ele não podia pregar, assumindo uma função reservada aos padres",
observa Vasconcellos. O arcebispo da Bahia, que enviou missionários ao
sertão na tentativa de barrar o pregador, estava preocupado também em
defender a República, que ele combatia, ao insistir que só os monarcas
exerciam uma autoridade vinda de Deus. "Viu a República com maus olhos e
pregou, coerente, a rebeldia contra as novas leis", registrou Euclides.
"O escritor leu o relatório de um missionário que esteve em Canudos e
escreveu Os Sertões condicionado pelas teorias sobre psicologia das
multidões que, supostamente, explicavam a loucura do Conselheiro", diz o
professor da PUC-SP.
Com 807 páginas e dividido em duas partes, o manuscrito de 1895
transcreve de início trechos do Novo Testamento - os quatro Evangelhos,
Atos dos Apóstolos e os 12 primeiros capítulos da Carta aos Romanos. Por
que o Conselheiro interrompeu a transcrição nesse ponto? Pedro
Vasconcellos levanta uma hipótese que escapa a outros estudiosos: como o
capítulo 13 da carta de São Paulo prega a obediência às autoridades
constituídas, seria difícil para o líder de Canudos aplicar o texto à
República, regime que ele não reconhecia. O professor da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo observa também que o Conselheiro
interrompeu a cópia do Novo Testamento e iniciou os Apontamentos...,
segunda parte do manuscrito, três dias após ter conversado com frei João
Evangelista de Monte Marciano, o missionário que tentou dissolver o
arraial.
O caderno Apontamentos... divide-se em quatro seções. Na primeira, o
Conselheiro prega sobre os Dez Mandamentos, comentando cada um deles. Na
segunda parte, trata de temas variados, como a cruz, a missa, a fé, a
confissão e a justiça de Deus. Na terceira, o pregador se debruça sobre
episódios da Bíblia, como a criação e o pecado de Adão e Eva, a
paciência de Jó, a vocação de Moisés, as dez pragas do Egito, as leis do
culto divino e o dilúvio. A quarta seção é uma coletânea de versículos
bíblicos e uma última meditação sobre o pecado dos homens.
Vasconcellos supõe que, pelo seu conteúdo religioso, em contraposição às
prédicas sobre política no manuscrito de 1897, o manuscrito de 1895
tenha despertado menos interesse nos historiadores de Canudos. Alguns
trechos se repetem nos dois manuscritos, mas a pregação sobre a
República, o casamento civil, a família imperial e a libertação dos
escravos são temas que só aparecem em Tempestades, nos originais, hoje
extraviados, que foram editados por Ataliba Nogueira.
Como lembra o professor Aleilton Fonseca, citando Ataliba Nogueira, o
manuscrito encontrado em Canudos em 1897 pelo médico João de Sousa
Pondé, que participou da luta como cirurgião, foi doado ao escritor
baiano Afrânio Peixoto, que o repassou a Euclides da Cunha, quando Os
Sertões já estava publicado. "Euclides morreu poucos meses depois e não
se sabe se teve tempo de folhear os manuscritos do Conselheiro", diz
Pedro Vasconcellos. A leitura dos Apontamentos, segundo ele, reforça a
avaliação de Walnice Nogueira Galvão quando ela afirma que "Canudos e os
canudenses não entregaram a chave de sua decifração aos métodos
utilizados pelo escritor".
(©
Estadão)
As trilhas
de Euclides revisitadas
O fotógrafo Araquém Alcântara prepara
livro que registra mudanças na paisagem de Canudos
Antonio Gonçalves Filho
Muitas das grandes ruínas que hoje
decoram os desertos e florestas da Terra, diz o jornalista e historiador
inglês Ronald Wright, "são monumentos à armadilha do progresso". Olhando
a foto acima, de autoria do fotógrafo catarinense Araquém Alcântara, de
57 anos, a frase de Wright torna-se ainda mais assustadora por essa
ruína estar bem diante dos nossos olhos, uma lápide da civilização que
um dia se chamou nordestina. O sertão não virou mar, mas está em vias de
se transformar num imenso deserto em função da dinâmica cultural que tem
aproximado cada vez mais a erosão de suas terras à aridez que consome a
urbe. Ainda assim, em alguns pontos isolados, a beleza arcaica de um
mundo anterior a essa queda pode ser vista, como atestam outras 90
imagens do fotógrafo para o livro de fotografias Sertão Sem Fim,
patrocinado pela Qualicorp e que será lançado em dezembro com apoio do
Estado.
Decidido a registrar as transformações do cenário onde se deu a tragédia
de Canudos, contada por Euclides da Cunha no clássico Os Sertões (1902),
cujo ponto de partida está numa série de reportagens escrita para o
Estado, Araquém, autor do livro de fotografias sobre natureza
best-seller no País, Terra Brasil (Ed. DBA/Melhoramentos, 1997, 80 mil
exemplares vendidos), peregrinou por oito Estados brasileiros em busca
dos vestígios de um mundo perdido no tempo. Ficou impressionado com o
que viu, quase tanto como Euclides, que identificou a origem da tragédia
sertaneja na questão da terra - da violência do latifúndio ao forçado
êxodo a que estão condenados muitos milhares de brasileiros, isolados
pela seca, pela ignorância e pela indiferença da civilização urbana,
orgulhosa de seu progresso e esquecida de que as cidades do passado
sucumbiram justamente por causa dele, não suportando a carga ambiental.
No sertão, Araquém descobriu que as vestes são uma espécie de segunda
pele contra a natureza hostil que expulsa o homem, protegido no gibão de
couro de bode curtido e apertado no colete como um enforcado à beira da
apoplexia. Guerreiros cansados, envergam suas armaduras não como
antigamente, observa o fotógrafo, "mas como uma forma de dizer que essa
ritualística tenta preservar uma tradição condenada". Hoje, os vaqueiros
usam motocicletas para conduzir o gado. Vilarejos próximos das cidades
estão contaminados por signos de consumo, poluindo platibandas com
cartazes publicitários. Sucumbiram, enfim, à uniformização cultural
imposta pelo progresso, que exige que todos falem a mesma língua e
tenham o mesmo comportamento.
"Apesar disso, a religiosidade do sertanejo persiste", observa Araquém.
Ele registrou dois penitentes que fazem lembrar a via-crúcis do humilde
Zé do Burro em O Pagador de Promessas. Na trama da peça que lhe deu
origem e no premiado filme homônimo, Zé do Burro caminha 42 quilômetros
com uma cruz nos ombros, do sertão baiano a Salvador, para cumprir uma
promessa a Santa Bárbara. Já um dos penitentes de Araquém, Pedro da
Cruz, saiu de Caruaru curado de uma trombose. O fotógrafo encontrou-o em
Bom Jesus da Lapa, caminhando 10 quilômetros por dia e ajudado por outro
peregrino em sua missão de carregar a cruz. Já em Itiúba, na Bahia,
conheceu um novo Antônio Conselheiro, Adebaldo de Jesus, que, marcado
por uma visão epifânica, saiu pela caatinga pregando o evangelho com um
coração eucarístico preso ao peito.
Euclides da Cunha diria que o "misticismo feroz e extravagante" desses
seres isolados, que se perdem na turba de "neuróticos vulgares", tomou
conta de Pedro e Adebaldo. Araquém discorda. Eles não deslizariam para a
demência ou seriam replicantes do "falso apóstolo" Conselheiro, que
Euclides chamou de paranoico. Adebaldo saiu do sertão, foi para a
cidade, trabalhou num restaurante e retornou à terra. Segundo Araquém,
nenhum deles se assemelha aos "gnósticos broncos" descritos pelo autor
de Os Sertões. Adebaldo é articulado. Contradiz o perfil que Euclides
fez do líder da revolta de Canudos, traçado como o de um emissário das
alturas "desequilibrado, retrógrado e rebelde".
Encarregado de apontar o caminho da salvação para os pecadores, como lhe
revelou a visão epifânica, o missionário Adebaldo é um dos personagens
escolhidos pelo fotógrafo e autor do prefácio de Sertão Sem Fim, Eder
Chiodetto, também curador da retrospectiva de Cartier-Bresson em cartaz
em São Paulo, para integrar o livro. Chiodetto explica que a estrutura
da obra segue o fluxo narrativo de sua viagem imaginária, cujo
conhecimento do sertão é intermediado pelo olhar literário de um leitor
de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha. "Estabeleci essa narrativa
onírica partindo justamente da terra, tomada por pedras rochosas e
simetricamente dispostas como numa land art, introduzindo depois a
figura do cavaleiro, que passa por vários lugares e experiências para
formar sua ideia do sertão."
À medida que o livro avança, ele ganha a velocidade de um cavalo em
disparada. Araquém observa que essa aceleração corresponde à rápida
transformação cultural do sertanejo. "Em Serrita, Pernambuco, fotografei
um vaqueiro orgulhoso que chamou os amigos, colocou sua melhor roupa,
armou-se de bandeiras e posou como se cumprisse um ritual para não
deixar morrer a tradição." Difícil mesmo foi entender a linguagem dos
sertanejos isolados em vilarejos como Raso da Catarina, perto de
Canudos, um "cipoal de caatingas que se emenda em si mesmo". Ali, a
linguagem é a última fronteira de resistência contra a contaminação da
urbe. O espírito de Conselheiro ainda ronda por lá.
(©
Estadão)
Novas
veredas do grande sertão
Luiz Zanin Oricchio
O sertão é o mundo todo. O sertão vai virar
mar e o mar vai virar sertão. A primeira ideia vem de Guimarães Rosa e está
no centro do seu extraordinário romance Grande Sertão: Veredas. A segunda é
leve modificação de uma prédica de Antonio Conselheiro. O beato de Canudos
dizia: "O sertão vai virar praia e a praia vai virar sertão." No filme de
Glauber Rocha, praia foi trocada por mar e assim aparece na letra de Sérgio
Ricardo para a canção final do clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol, que
acompanha o vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey) em sua simbólica corrida rumo
ao mar.
Guimarães Rosa tinha razão. O sertão está em toda parte. Ou, pelo menos,
impregna a fundo o imaginário da cultura brasileira. Não apenas os livros de
Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e o citado Rosa como também os
principais filmes do Cinema Novo e os do período da "retomada do cinema
brasileiro", situado entre o início dos anos 1990 e princípio dos 2000. Pois
agora ele reaparece - e com todo o vigor - no novíssimo Viajo Porque
Preciso, Volto Porque Te Amo, da dupla Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, que tem
exibições programadas para a 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
nos dias 30 - sexta-feira próxima -, 31, 1º e 2.
Com esse título pouco usual, que lembra uma frase de para-choques de
caminhão, Aïnouz e Gomes dão seguimento a essa já longa tradição
cinematográfica que encontra no sertão o ambiente privilegiado para
determinadas histórias, um elemento tão forte que passa a ser, na prática,
um dos personagens, se não o mais importante desses filmes.
Podemos lembrar, por exemplo, de O Cangaceiro, de Lima Barreto, que conta as
peripécias de um bando que perambula por um "sertão nordestino" recriado,
para efeitos de cinema, no interior de São Paulo, mais precisamente na
região de Vargem Grande do Sul. A produção tornou-se carro-chefe da
Companhia Cinematográfica Vera Cruz, recebeu o prêmio de "melhor filme de
aventuras" no Festival de Cannes de 1953 e teve carreira internacional. Uma
de suas atrizes, Vanja Orico, ganhou fama internacional cantando Muié
Rendeira e Sodade, Meu Bem Sodade. A tal ponto que participa, cantando, de
Mulheres e Luzes, primeiro longa de Federico Fellini, feito em parceria com
Alberto Lattuada. O premiado trabalho de Lima Barreto inaugurou o chamado
"ciclo do cangaço", com filmes de qualidade variável e bom apelo popular,
contando histórias de violência e romance de cangaceiros - sempre situadas
no grande sertão.
Se o ciclo do cangaço tomava o sertão como palco das aventuras de amor e
violência, o ambicioso Cinema Novo fez dele outra utilização. São os casos
das três obras-primas filmadas e lançadas entre os anos 1963-1964 e que se
tornaram conhecidas, entre os especialistas, como a "Santíssima Trindade do
Cinema Novo": exatamente Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber, Vidas
Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Os Fuzis, de Ruy Guerra.
Aqui, o sertão funciona como locação de valor estratégico. Não por acaso ou
por motivos decorativos. Como diz o professor da Universidade de São Paulo e
ensaísta Ismail Xavier , "o sertão é um lugar mítico dentro do processo de
construção de identidade nacional, com forte presença nas formulações do
século 19 e da primeira metade do século 20: a vasta região do semiárido do
interior brasileiro (centro-oeste e nordeste) é a região emblemática da seca
e da miséria ligada à concentração da propriedade da terra, herança dos
tempos coloniais". Portanto, ideal para expor com clareza as contradições
sociais enfocadas por um cinema de alta voltagem política.
No caso de Vidas Secas, adaptado do livro homônimo de Graciliano Ramos, a
proposta era expressar a prisão sem paredes de uma família de retirantes,
castigada pela fome e pelo sol, condenada a repetir a cada vez o ciclo, em
aparência interminável, de sua miséria. Já em Os Fuzis, uma multidão
famélica é impedida de saquear um armazém protegido pelo Exército,
desnudando assim a relação entre o poder do Estado e a defesa da
propriedade. E, em Deus e o Diabo, um vaqueiro, essa figura física
emblemática do sertão, atravessa as várias etapas da miséria, passando pela
conversão religiosa e sua superação, até vislumbrar algo que, se não é ainda
uma saída revolucionária, pelo menos lhe aparece como possibilidade de
libertar-se do seu destino.
Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo pode ter essa referência ao sertão
do Cinema Novo como horizonte longínquo. Mas seu parentesco próximo é com os
filmes dos anos 1990 e 2000, que reatualizam a figura do sertão no cinema
brasileiro. Por exemplo, O Sertão das Memórias (1996), de José Araújo, Baile
Perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, Central do Brasil
(1998), de Walter Salles, Eu Tu Eles (2000), de Andrucha Waddington,
reciclam o cenário sertanejo usando-o para fins diferentes daqueles pensados
pelos diretores do Cinema Novo. Seja investindo na chave memorialística como
O Sertão das Memórias, ou repensando o cangaço em termos pop, reinventando
um "sertão líquido", caso de Baile Perfumado, usando a paisagem para
enquadrar um divertido ménage à quatre como Eu Tu Eles, ou indo ao interior
em busca de alguma pureza ou redenção, como em Central do Brasil, o sertão
dos anos 1990 e 2000 parece bem diferente daquela aridez sem clemência
buscada pelos cinema-novistas.
Se o sertão dos anos 1960 surgia como palco da exploração econômica, das
contradições políticas e relações sociais em transe, nos anos 1990 e 2000
ele passa a cenário de outros temas. Adoça-se, por assim dizer. Livra-se
daquela dureza insurgente e romantiza-se, como assinala a pesquisadora Ivana
Bentes, autora de vários estudos sobre a questão, entre eles The Sertão and
the Favela in Contemporary Brazilian Film (em The New Brazilian Cinema, org.
Lúcia Nagib, University of Oxford, 2003). Esse sertão "amigável" (friendly)
pode funcionar em tons coloridos, amenos, mostrando um mandacaru romântico
ou um pôr do sol na contraluz em tom publicitário.
Não é necessário que seja assim, pois o sertão amolda-se às circunstâncias e
desejos do artista. Marcelo Gomes, em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) já
havia percebido esse potencial ao ambientar nele a história que envolve um
alemão e um brasileiro, na época da 2ª Guerra Mundial, para fazer uma
reflexão sobre o Brasil e sua relação com o estrangeiro. Mas também para
falar da amizade e da solidariedade como valores fundamentais, mesmo em
ambiente árido e em tempo de guerra.
Em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, o sertão funciona como moldura
para um drama amoroso contado em primeira pessoa. "Zé Renato (Irandhir
Santos) é um geólogo, classe média, que viaja pelo sertão e vai se
contaminando por aquela paisagem, por aquele universo da estrada. As imagens
refletem os sentimentos de Zé Renato, que está passando por um momento de
desenlace amoroso, e aquela frase, que está no título, escrita num banheiro
e presente em muitos para-choques de caminhões, se cristaliza em seus
pensamentos", diz o diretor Marcelo Gomes.
Então, há a "paisagem" interna do personagem, desolada pela separação, que
se rebate na paisagem externa sertaneja, atravessada nesse road movie
existencial. Mas o filme não se conforma a um personagem ensimesmado. Ao
tentar o reencontro consigo, o geólogo Zé Renato não pode deixar de observar
o que se passa em volta: "Esse é um mundo em transformação. Um Brasil do
interior, mas que vive um processo de modernização desenfreada, esdrúxula,
uma fricção entre o rural e o urbano", diz Marcelo Gomes.
Cada época reinventa o seu sertão de acordo com suas possibilidades e
necessidades. Ele, o sertão, continua em toda parte, como sempre. É o mundo
todo.
(©
Estadão)
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