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06/11/2000

Os 30 anos do Movimento Armorial

   Uma questão que ainda hoje provoca dúvidas e discussões: por que Ariano Suassuna escolheu a expressão "armorial" para dar nome ao movimento cujo marco de fundação - um concerto e uma exposição de artes plásticas - foi no dia 18 de outubro de 1970, no Recife?

   Uma resposta dele, datada de 1974: "Esse termo é ligado aos esmaltes da heráldica, limpos, nítidos, pintados sobre metal ou, por outro lado, esculpidos em pedra, com animais fabulosos, cercados por folhagens, sóis, luas e estrelas. Foi aí que, meio sério, meio brincando, comecei a dizer que tal poema ou tal estandarte de Cavalhada era `armorial', isto é, brilhava em esmaltes puros, festivos, nítidos, metálicos e coloridos, como uma bandeira, um brasão ou um toque de clarim."

   Ariano Suassuna está falando, naturalmente, de poemas populares - da tradição da cultura popular nordestina. Queria, com o movimento (que não nasceu naquele momento, mas ganhou o nome num instante da vida nacional em que sentiu necessidade de dar aos criadores preocupados com a cultura popular uma bandeira, um estandarte, um porto.

   Em torno de Ariano, reuniram-se escritores, músicos, artistas plásticos, gente de teatro - Francisco Brennand, Gilvan Samico, Maximiano Campos, Ângelo Monteiro, Marcus Accioly, Miguel dos Santos, Raimundo Carrero, Antônio José Madureira eram os integrantes do primeiro núcleo, mesmo que alguns deles já viessem trabalhando sobre ideário parecido com o de Ariano antes da criação do movimento. Brennand, por exemplo, data sua primeira obra de 1947. O próprio Ariano publicou pela primeira vez um ano antes disso.

   O que Ariano pretendia era criar uma estética culta (de música, teatro, dança, literatura) partindo da tradição popular - como diz Antônio Nóbrega, reconhecendo e renovando a tradição. Antônio Nóbrega era um jovem violinista, de classe média que se preparava para ser concertista, quando foi convidado por Ariano para integrar o Quinteto Armorial (já havia uma Orquestra Armorial).

   O contato de Nóbrega - ainda que seu pai fosse sertanejo - com a cultura popular era quase nenhum. Por Ariano, trocou o violino pela rabeca e foi conhecer os ternos de pife, a música dos cavalos marinhos, as danças e as festas do interior.

   Quando o Quinteto acabou, Nóbrega migrou para o Sul, numa espécie de trupe mambembe (no caminho, conheceu sua mulher, que passou a integrar a trupe) e veio ter em São Paulo. Mantém, em Vila Madalena, o Teatro Brincante, palco dos espetáculos - que conta, dirige, protagoniza - que dão prosseguimento ao ideário do mentor. É, talvez, o mais visível dos seguidores-continuadores.

   "Talvez porque more em São Paulo eu apareça um pouco mais, mas há, por exemplo, na música, criadores, como o Antônio José Madureira, que vão mais longe", diz o artista.

   Antônio José Madureira, violonista, era também integrante do Quinteto Armorial e mantém um profícuo e importantíssimo trabalho de renovação - respeitosa renovação - da tradição da canção popular nordestina.

   Respeitosa renovação talvez possa parecer expressão formada por termos excludentes, uma contradição. Nóbrega explica que há três maneiras de abordar a cultura popular: rejeitando-a, pura e simplesmente; repetindo-a, o que a aprisiona no campo do folclore, da manifestação estanque, morta; ou renovando-a, que era o que propunha Ariano e é o que ele faz, o que Antônio José Madureira e seu irmão Antúlio Madureira (que trabalha com música, mas também com as festas populares, as danças, etc.) fazem.

   Nóbrega realiza, como se sabe, trabalho multidisciplinar, também (e planeja fazer um filme, tendo o personagem Tonheta, que aparece em duas de suas peças e incorpora traços comportamentais, gestualísticos, de vestiário, etc., de figuras do imaginário popular, como Pedro Malasartes ou como o João Grilo, personagem da mais conhecida das obras teatrais de Suassuna, o Auto da Compadecida, atualmente em cartaz, em versão cinematográfica, na cidade).

   Pretende, também, musicar poemas de Ariano, alguns inéditos, para lançá-los num CD duplo, durante espetáculo, programado para o ano que vem, que marcará o 30º aniversário do Movimento Armorial na sua vinda para São Paulo.

   Nóbrega acredita que haja, nos brasileiros, em todos eles, uma vocação atávica, uma predisposição natural para aquela música, aquela dança, aquela poesia - depois de três séculos em que a existência dessas manifestações foi, de alguma forma, do conhecimento dos brasileiros. Portanto, embora o Movimento Armorial tenha, como tal durado menos de cinco anos, na década de 70, sua herança não se desfez ou se desfará.

   Hoje, talvez, a mais importante questão pertinente ao armorialismo talvez seja esclarecer que não há nele ranço, passadismo, saudosismo, folclorismo.

   O que Ariano propôs (e retoma, nos últimos dois anos, quando assumiu a Secretaria de Cultura de Pernambuco) é que, ao ser ouvida uma quadra, um toque popular, encontre-se a maneira de fortalecê-los, ampliar seu repertório, colaborar na ampliação da singularidade nacional. (Mauro Dias, OESP)

Degustação e atuação

Estética lembra a nascente ibérica, mas com os horizontes ampliados

   Gestado desde o final dos anos 40, o Movimento Armorial foi declarado existente em 18 de outubro de 1970, no corpo de uma orquestra e uma exposição de artes plásticas.

   Naquele dia, em uma igreja de Recife e em nome de uma universidade, Ariano Suassuna propôs uma estética que em tudo lembra a nascente medieval da literatura ibérica, mas que não deixou de incorporar técnicas e conceitos que então pretendiam ampliar os horizontes da arte.

   Esse movimento apareceu assim, polifônico, para honrar sua matriz: a literatura de cordel -- um ser feito de poesia, música e xilogravuras, mas também de cuidados com a sobrevivência, a tradição e a espiritualidade.

   É revigorante lembrar que isto aconteceu na época do chamado "milagre brasileiro": no lugar da obsessão por grandes projetos burocráticos e, no fundo, desnacionalizadores, os armorialistas revelam uma vontade de dar razão e poder à desorganização criativa do nosso povo. Esse novo vigor nos serve para enfrentarmos o lado escuro da globalização.

   Diante das manifestações armoriais, sinto que os folhetos pendurados em barbantes, as rabecas, os pífanos e as violas são mais importantes para a nossa nação do que as escrivaninhas inventadas alhures. Talvez os brasileiros produzam mais durante os desafios que simulam encontros entre repentistas do que enclausurados em empreendimentos que exijam comportamento rígido, como os do padrão ISO 9000.

   Trata-se de uma arte que não suporta a resignação dos espectadores da sociedade de massas (perdoem-me o termo em desuso). A arte armorial precisa de participação, degustação. Suas obras nunca são objetos: são encontros entre artistas e degustadores ao redor do desejo de misturar criação e testemunho. É por isso que podemos dizê-la popular em qualquer sentido que se queira para o termo.

   Sinto que, 30 anos depois, apesar de um pouco esquecidas, suas apostas continuam válidas:
   o artista jamais deve abrir mão de seu dever sócio-histórico e espiritual;
a voz e a letra - o som e a escrita - não podem ser separadas;
   a arte deve ser regional sem ser regionalista - deve ser mestiça e, por isso, universal;
   as diversas formas de manifestação artística podem e devem estabelecer relações estreitas entre si;
   deve-se diminuir a fronteira entre a originalidade e a reescritura - os textos devem manter relações uns com os outros: um escrito deve retomar temas ou mesmo partes de outro num processo de transformações sucessivas;
   o conteúdo e a forma não se justificam sem a magia - mas o encantamento não deve deformar a realidade - o barroco no lugar do surrealismo;
   não podemos abandonar a dimensão heráldica - o termo armorial está, declarou Suassuna, "ligado aos esmaltes da Heráldica, limpos, nítidos, pintados sobre metal ou, por outro lado, esculpidos em pedra, com animais fabulosos, cercados por folhagens, sóis, luas e estrelas. Foi aí que, meio sério, meio brincando, comecei a dizer que tal poema ou tal estandarte de Cavalhada era `armorial', isto é, brilhava em esmaltes puros, festivos, nítidos, metálicos e coloridos, como uma bandeira, um brasão ou toque de clarim".

   Somente depois de sentimentos dessa natureza, a palavra armorial deixa de soar estranha; eles abrem em nós um espaço para que possamos dignificar - com um brasão imaginário - a memória e os gestos desse movimento que retira vida e mundo de um canto tão especial de nosso país. (George Barcat é professor de filosofia da Associação Palas Athena e empresário. OESP)

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