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16/11/2000

Rachel de Queiroz faz 90 anos

A primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras, em 1977, ela é reverenciada como autora de O Quinze, marco do regionalismo brasileiro. Mas de todos os livros que escreveu, revela que seu preferido é Memorial de Maria Moura

   Rio - A irmã e parceira Maria Luiza não fala, mas é claro que, enquanto serve o primeiro café, Rachel de Queiroz se apronta. A escritora soube que um fotógrafo está à caminho e, portanto, que tem de estar muito bem arrumada - embora não goste de tirar retratos e tenha festejado o fato de o entrevistador haver chegado sozinho.

   A poucos dias de completar seu 90.º aniversário (ela nasceu em 17 de novembro de 1910, em Fortaleza), a cearense que surpreendeu os meios literários em agosto de 1930, lançando O Quinze, continua ativa, escrevendo as crônicas que publica semanalmente no Estado. E, quando conversa, seja com a irmã, seja com as visitas, suas respostas lembram as orações de seu romance de estréia - curtas e definitivas:

   Agência Estado - Como é chegar aos 90 anos? Rachel - Péssimo. Por quê? Dá uma sensação de ter vivido demais.

   Rachel cultiva essa imagem marcada pela negação, embora afirme procurar evitá-la. Em 1957, à O Cruzeiro, disse não ter medo de morrer, mas ter vontade. Reafirmou o mesmo nesse início de novembro, em seu apartamento no Leblon, zona sul do Rio de Janeiro, no edifício Rachel de Queiroz - que fica ao lado do prédio Rachel -, na mesma entrevista em que, mais uma vez, negou ter se realizado como romancista.

   Ela, pelo menos é o que diz, não gosta de nenhuma de suas obras e, se pudesse, não voltaria a lê-las (só o faz quando são reeditadas, uma obrigação), pois acaba sempre por encontrar defeitos: "Encontro má disposição de frases, subliteratura; sou uma crítica muito feroz do meu trabalho." Sobre O Quinze, por exemplo, escrito durante uma suspeita de tuberculose, publicado com a ajuda financeira do pai e que logo lhe garantiu um lugar na história da literatura brasileira, diz ser "uma obra juvenil": "Eu era quase uma garota, e isso se reflete no livro." Os personagens, explica, saíram do que ouvia dos numerosos primos. Conceição e Vicente seriam, assim, a fusão de vivências de parentes que a autora observou em Quixadá, no interior do Ceará.

   A obra é uma das pioneiras no romance regionalista brasileiro, precedida apenas por A Bagaceira(1928), de José Américo de Almeida. Graciliano Ramos, que publicaria Caetés apenas em 1933, custou a acreditar que uma mulher poderia tê-lo escrito. E, "o que na verdade causava assombro", era livro de "mulher nova". Nova e bonita: Rachel estreou no jornalismo depois de enviar carta a O Ceará, com o pseudônimo de Rita de Queluz, ironizando o concurso "Rainha dos Estudantes", promovido pelo periódico.

   A carta fez sucesso, e o diretor do jornal, Júlio Ibiapina, amigo de seu pai, a convidou para escrever no jornal. Três anos depois, atuando como professora de história na escola em que concluiu o normal, acabou, ironicamente, por ser eleita rainha dos estudantes (Rachel afirma, no entanto, que nunca foi bonita: "Era apenas tolerável, bonita é a Maria Luiza", diz sobre a irmã, co-autora do livro de memórias Tantos Anos, de 1998).

   A seca é o grande tema de O Quinze, que adota uma forma de se referir ao ano (1915) típica da região. Mais que um problema relacionado apenas ao clima, a seca está intimamente ligada à vida política nordestina. Rachel já havia lido sobre o assunto em obras como as de Rodolfo Teófilo, um médico sanitarista que conseguiu, a contragosto da oligarquia local, vacinar a população de Fortaleza contra a varíola. Mas eram obras marcadas demais pela ideologia determinista do romance naturalista, o que incomodava a jovem jornalista e professora.

   Eleita em 1977 para a Academia Brasileira de Letras, Rachel foi também a primeira mulher a vestir o fardão, após anos de debate em torno do regimento da casa. Depois dela, entraram outras mulheres, como Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon - que viria a ser eleita presidente da instituição, cargo do qual Rachel sempre procurou manter distância. Com todo esse cabedal, a autora poderia ter se transformado num ícone do feminismo brasileiro, mas buscou fugir dessa posição. Já contou, por exemplo, que, quando lia uma crítica a alguém feita por uma militante, dava um jeito de elogiar a pessoa, só para marcar posição. "Feminismo é uma masculinização da mulher, o que é uma besteira; além disso, as feministas eram muito chatas", afirma ela. "Homem é uma coisa, mulher é outra, o interessante é o par."

   Veia crítica - Rachel é capaz de fazer reclamações semelhantes às que reserva a O Quinze quando fala de outras obras suas, como João Miguel (1932), Caminho de Pedras (1937), As Três Marias (1939) e Dôra, Doralina (1975). Nenhuma delas lhe escapa, nem mesmo as que fez para o teatro - Lampião (1953) e A Beata Maria do Egito (1958), preenchendo o tempo em que esteve afastada do romance (o motivo, segundo ela, era a pura falta de inspiração), e o folhetim O Galo de Ouro, publicado em 1950, em 40 edições da revista O Cruzeiro, o que lhe pagou uma viagem à Europa.

   Após muita insistência, admite ter uma preferência, um livro que lhe deu mais prazer: Memorial de Maria Moura (1992), seu mais recente romance, que virou uma minissérie televisiva de sucesso. "É uma obra madura, talvez seja a menos defeituosa", pondera. Mas insiste que, se pudesse, reescreveria todos os seus livros. Só não o faz porque os editores não permitem. "Eles dizem: se quiser, faça outro."

   Cozinha - E ela faz. Neste ano, lançou um livro de cozinha, intitulado O Não me Deixes, em que mistura histórias e receitas saboreadas em suas propriedade no interior do Ceará. É, de certa forma, um retorno à Rachel de O Quinze, ao ambiente e à história que transformaram a professora em autora rapidamente reconhecida. Para Rachel, a fazenda cearense é mais pobre que a da propriedade açucareira, fato que se reflete na culinária. Uma das receitas que dá, por exemplo, ensina a aproveitar os restos do peru de Natal na feijoada. Cozinhar é uma das artes preferidas de Rachel, e nela sua veia crítica não se exercita.

   "Os grande cozinheiros são todos homens, mas eles não têm o amor pela cozinha que a mulher tem; a mulher gosta de cozinhar, de alimentar seu homem e seus filhos." O livro foi publicado pela Siciliano, sua atual editora, que deve lançar, no início de 2001, uma seleção de crônicas de Rachel. "Eles queriam que a coletânea saísse para o aniversário; não deu, ainda bem."

   O rigor com a própria literatura é uma antiga característica de Rachel, talvez a coerência mais claramente identificável em toda a sua trajetória, bem com o fato de dizer que escreve apenas por obrigação. "Se eu morrer agora, você não encontra um inédito aqui em casa", brinca ela. Quando o fotógrafo chega, interrompendo a entrevista, Rachel coloca-se inteiramente à sua disposição. Levanta, senta, vai à escrivaninha. Ajustando as luzes e as sombras, um abajur se desfaz. Ela não liga. Para quem disse não gostar de retratos, está bastante preocupada, numa postura que faz lembrar o modo como age em relação a tudo o que escreveu. (Haroldo Ceravolo Sereza, AE)

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