05/12/2000
Escritor escava o Frevo para chegar ao Mangue e descobre outro
Tropicalismo
É a vez de Pernambuco no projeto de revisão da história da
música popular brasileira. A editora 34 lança no próximo dia 11 mais um volume da
coleção Todos os Cantos, o livro "Do Frevo ao Mangue Beat", do jornalista
paraibano José Teles, 47.
Sua obra faz um passeio por (quase) tudo o que aconteceu no
pop pernambucano desde o advento da Rozenblit, gravadora local que relançou o frevo nos
anos 50 e chegou a ter projeção nacional na década de 60.
Chega a uma insuspeitada participação pernambucana no
tropicalismo. Por telefone, do Recife, Teles explica: "Foi um movimento forte aqui,
em João Pessoa (PB) e em Natal (RN). Mas não chegou a ser registrado em discos, então
ninguém sabe da história. O Movimento Armorial, liderado por Ariano Suassuna, surgiu em
seguida como um contraponto".
Teles enumera evidências de que tais tropicalistas
influenciavam e eram influenciados pela tropicália baiana/paulista: "Gilberto Gil
passou muito tempo aqui antes do tropicalismo, pegou muita coisa. Houve intercâmbio,
Caetano era muito amigo de Jomard Muniz de Brito. Caetano e Gil assinaram o segundo
manifesto tropicalista pernambucano".
Entretanto a motivação para fazer "Do Frevo ao Mangue
Beat" veio de outro lugar, segundo Teles. "Sempre fui fascinado pelos anos 70.
Recife nessa época teve a cena mais louca do país, e ninguém ficou sabendo. Meu livro
começou a partir daí."
Teles procura explicar a relativa ausência no livro de Luiz
Gonzaga (1912-89): "O forró é tão complexo, é um termo para uma porrada de
gêneros, com muitos nomes que nem são conhecidos no sul. Merecia um livro à
parte".
Continua: "Luiz Gonzaga saiu do interior de Pernambuco e
foi para o Rio. Preferi falar mais sobre gente que saiu do Recife". Isso explicaria,
para ele, ausências de pernambucanos como Antonio Maria e Fernando Lobo.
É que Teles data o início de sua história na inauguração da Rozenblit, gravadora de
capital nacional que fincou uma produção local no Recife dos anos 50 (já pós-Luiz
Gonzaga) e orientada majoritariamente para o frevo.
Pela Rozenblit passou (e deixou de passar) toda a história posterior da música popular
pernambucana, mas não só dela. Foram contratados artistas de vários gêneros, fossem
novatos ou os que nos anos 50 e 60 estavam transitória ou desagregados das grandes
gravadoras. Assim foi com artistas de velha-guarda (Silvio Caldas, Lúcio Alves),
sambistas (Ismael Silva, Zé Keti) e até artistas jovens (Jorge Ben, Claudette Soares,
Tom Zé).
Segundo o livro, a Rozenblit agregou núcleos de poder da música local e adquiriu tez
conservadora, pouco afeita às inovações de tropicalistas e artistas do underground.
"Nelson Ferreira, diretor artístico da gravadora, era ótimo, mas não era
vanguarda. A bossa nova daqui não teve registro em disco. O grupo de Naná Vasconcelos
nunca gravou aqui, nem Robertinho de Recife ou Geraldo Azevedo. O mangue beat não seria
registrado se fosse assim."
Já combalida pelas enchentes do rio Capibaribe (a fábrica
de discos ficava em local sujeito a cheias) e pela concorrência das multinacionais, a
Rozenblit distribuiu parte da produção "udigrúdi" dos 70. Nessa leva, lançou
só em circuito local nomes como Flaviola e O Bando do Sol, Marconi Notaro e o disco de
estréia de Zé Ramalho, feito em parceria com Lula Cortes, até hoje um herói do
underground recifense.
Apenas uma banda, a hoje mitológica Ave Sangria, chegou a
gravar no Sudeste, pela Continental. Ela marcaria uma fase de transição -seus músicos
tocaram seu "forrock" com Alceu Valença, que lideraria uma nova onda de
músicos pernambucanos migrando para o Rio, com Geraldo Azevedo, Robertinho de Recife.
Rozenblit já fechada, tudo parecia estar de volta à estaca
zero nos anos 80. "Foi uma década morta, praticamente. Quem ficou toca até hoje em
barzinho."
Bem, não propriamente morta, porque das entranhas surgia o
movimento que influenciaria todo o pop brasileiro dos 90 e que ocupa a parte final do
livro, o mangue beat de Chico Science e Fred Zero Quatro.
Dizendo que mangue beat mesmo foram só as duas bandas centrais (Nação Zumbi, de
Science, e Mundo Livre S/A, de Zero Quatro), faz um balanço final: "Eles eram muito
antenados. Elevaram nossa auto-estima, foi o renascimento de Pernambuco".
E em 2000 o que acontece? "Como estética, acho que não
apareceu mais nada de tanto impacto, mas a cena hoje é enorme. Só que são bandas de
rock mesmo." (Pedro Alexandre Sanches, FSP)
Autor
compõe história local livre do senso comum sulista
De cara, causa susto em "Do Frevo ao
Mangue Beat" a brevíssima passagem de Luiz Gonzaga (1912-89) pela "pequena
história da música popular pernambucana" aqui montada.
Depois, com algum raciocínio, vê-se que o livro impõe dois limites de foco que
explicam a suposta omissão. Uma é a influência da Rozenblit sobre a cena recifense,
colocando o frevo, mas não o "rei do baião", na boca de seu público.
Outra é a orientação pela importância local -e não a imposta pelo raciocínio
sulista- de cada artista. Ele examina tudo o que grassou em música no solo lodoso de
Recife, de Capiba a Quinteto Violado, de Nelson Ferreira ao Quinteto Armorial, de
Claudionor Germano a Robertinho de Recife. Daí pode-se inferir que sua maior simpatia
recai sobre o príncipe do "forrock" Alceu Valença, onipresente em dois
capítulos.
Mas mesmo ali Teles deixa passar uma nesga de crítica, abrindo voz a quem ache que
Alceu se apoderou de criação local anterior para moldar a música nordestina
eletrificada nos anos 70.
Nesse território movediço, o livro é um salto no escuro para o leitor não
pernambucano. Do obscuro tropicalismo local, nada ficou registrado em disco; do
"udigrúdi" dos 70, os discos lançados tiveram tiragens ínfimas.
São os capítulos do livro que fazem desejar que ele viesse com um CD, de algo que
documentasse essa cena de fato desconhecida. Evidenciam, mesmo indiretamente, que a
gestão reacionária de uma gravadora pode provocar mais estragos que qualquer cheia do
Capibaribe. Se se extrapolar tal tendência ao Brasil todo e aos anos 90/2000, é de
sentar e chorar, não só por Pernambuco.
Mas, na conexão dos tempos "udigrúdi" com o mangue beat, o livro dá
pista sobre a funda dimensão do movimento. Lê-se ali que, além de influenciar todo o
pop brasileiro de 94 em diante, ele trouxe auto-estima e efervescência a uma comunidade
que segue conservadora (como, aliás, o resto do país).
Teles remonta a história com texto nem sempre rigoroso, mas com entusiasmo e
profusão de detalhes. Que venham histórias das músicas populares de mais Estados,
contra o senso comum carioca-paulista.
(PAS, FSP)
Do Frevo ao Mangue Beat
Autor: José Teles
Editora: 34
Quanto: R$ 28 (360 págs.)
Lançamento: dia 11, na galeria Joana d'Arc (av. Herculano Bandeira, 513/13C, Pina,
Recife, tel. 0/xx/81/3327-1168) |
Pérolas da Rozenblit saem do baú
É mera coincidência, mas parte da história
contada por "Do Frevo ao Mangue Beat" pode ser conferida "ao vivo",
após décadas e décadas nos porões da extinta gravadora Rozenblit.
A iniciativa é da pequena gravadora paulistana
InterCD, que vem há poucos meses trazendo ao formato CD títulos preciosos (como
gravações argentinas de Toquinho e Vinicius ou coletâneas de velha-guarda e de samba de
nomes como Heitor dos Prazeres).
Da Rozenblit, a InterCD adquiriu os direitos de
relançar uma série de títulos que pertenciam, na origem, ao subselo Mocambo. O corte
é, outra vez, de orientação sulista, mas traz de volta mais de uma dezena de raridades
de importância nacional.
A lista é abrangente, começando na velha guarda de
Silvio Caldas ("O Seresteiro", 58) e chegando ao então novinho e comercial
iê-iê-iê de Bobby de Carlo ("Bobby de Carlo", de 66, que contém o mimo
"O Tijolinho").
O samba de tradição ganhou registros impecáveis
de Ismael Silva ("Ismael Canta... Ismael", 57), Herivelto Martins
("Carnaval de Rua") e uma coletânea de músicas carnavalescas de Haroldo Lobo e
Milton de Oliveira ("Eis").
Da música popular pré-bossa nova, aparecem Lúcio Alves ("Serestas", 57) e
Agostinho dos Santos (disco de 67, com participação do Quarteto Iansã, do então
iniciante Naná Vasconcelos).
Engajados na bossa nos 60, gravaram pela Mocambo
álbuns com os nomes do precursor Johnny Alf (66) e Claudette Soares (65).
Destaque especial fica por conta de "Sucessos
de Zé Keti" (67), em que o sambista de morro se lançava em carreira individual,
beneficiando-se da visibilidade trazida pelo show "Opinião" (65) e pelo
interesse de Elizeth Cardoso e Nara Leão por sua obra.
Os CDs vêm bem recuperados, em edições
caprichadas e capas iguais às originais (falta documentação mais clara sobre as datas
dos lançamentos de origem).
A lamentar, a ausência de "O Bidu" (67),
mítico disco parcialmente jovem guarda de Jorge Ben ("Tom Zé", de 68, outro
gol da Rozenblit, foi recentemente relançado pela Sony).
No mais, a InterCD ainda tem pencas de títulos
nacionais e regionais à mão, se quiser levar adiante esse projeto de recuperação de
memória. Tomara. |
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