Para
quem não conhece Canhoto da Paraíba, transcrevemos a seguir matéria publicada no site Agenda do Samba Choro, de 5 de
outubro de 2001.
Por Paulo Eduardo Neves
Se a escola de violões é a melhor do
mundo, Francisco Soares de Araújo, o Canhoto da Paraíba, é um dos mais surpreendentes
expoentes. Seus choros têm um sotaque nordestino delicioso. Seu estilo de tocar é
único. Como era obrigado a compartilhar o instrumento com os irmãos, não podia inverter
as cordas, o que o fez tocar em um instrumento afinado para destros. O pai não conseguia
ensinar-lhe: "Ih, meu filho, tem jeito não. Pra lhe ensinar tem que botá de
cabeça pra baixo ou diante de um espelho". Teve que aprender tudo sozinho.
Em 1959, uma legendária excursão de músicos nordestinos viajou dias de
jipe com destino à casa de Jacob do Bandolim no bairro de Jacarepaguá no Rio de Janeiro,
onde aconteciam os maiores saraus da época. Reza a lenda, que no primeiro sarau em que se
apresentaram para a nata dos músicos brasileiros, Radamés Ganttali ficou tão
impressinado que gritou um palavrão e jogou seu copo de cerveja no teto. Para recordar o
momento, Jacob nunca limpou a mancha no teto. Considerando o temperamento explosivo de
Radamés e o virtuosimo de Canhoto, a história até é factível, pena que parece que é
falsa. Histórias saborosas assim todo mundo deveria acreditar. O fato é que esta
reunião foi tão impactante que um moleque que assistiu, filho de um dos músicos
participantes, resolveu por causa disso aprender música. Hoje ele é conhecido como
Paulinho da Viola.
Estabelecido em Recife, desde 1958, somente em dez anos depois, Canhoto da
Paraíba conseguiu gravar seu segundo disco, Único Amor pela finada gravadora
Rozenblit. Este disco é que está sendo agora relançado em CD, com apoio de João
Florentino, dono da rede de lojas Aky Discos e do selo Polysom. Entre tantos ótimos
violonistas na cidade na época, Canhoto surpreendeu na escolha de quem iria
acompanhá-lo. Escolheu o jovem Henrique Annes, de 22 anos e formação clássica.
Francisco Soares sabia das coisas. Henrique veio a se tornar um dos maiores violonistas
brasileiros, e fez parte de alguns dos mais interessantes projetos instrumentais, como a
Orquestra de Cordas Dedilhadas de Pernambuco (que tem um maravilhoso disco relançado em
CD) e lidera o grupo Oficina de Cordas. Se achou esta dupla pouco, é que ainda não sabe
quem foi o produtor musical do disco. Nada menos do que o maestro Nelson Ferreira, que, na
minha opinião leiga, é o maior maestro/orquestrador de frevos que já existiu.
Canhoto veio a gravar apenas mais dois discos de carreira, ambos
antológicos. Em 77, Paulinho da Viola produziu para a Discos Marcus Pereira o "Com
mais de Mil". Esse disco já foi lançado em CD, mas os babacas da EMI trataram de
tirar de catálogo quando compraram o acervo da Copacabana. Pela finada Caju Music gravou
em 1993, seu último disco, "Pisando em Brasa", com as participações especiais
de Rafael Rabello e Paulinho da Viola. Ainda pode-se encontrar este disco em CD pela Kuarup.
Recentemente saiu em CD sua entrevista para o programa Ensaio da TV Cultura. Em 1998,
Canhoto sofre uma isquemia cerebral e fica com o lado esquerdo do corpo paralizado,
impossibilitando-o de tocar. O lançamento deste disco é também uma ação entre amigos
para ajudá-lo financeiramente.
Para o pessoal de Recife: o lançamento do disco será nesta sexta, 5 de
outubro, às 17h, com um sarau em frente da loja Opus Discos no Shopping Sítio da
Trindade em Casa Forte. Vocês não podem perder de jeito nenhum.
Se vocês, como eu, estão babando pelo disco, tenham um pouquinho de
paciência. Já entrei em contato com o Henrique Annes e vamos armar um esquema para que
todo o Brasil possa comprar esta preciosidade.
Se você não tá levando fé no que estou escrevendo -- Ora, como um
violonista que quase ninguém ouviu falar pode ser tão bom? -- vou transcrever aqui a
opinião de duas pessoas que entendem muito mais de música do que eu. Uma é o Paulinho
da Viola, que não só produziu seu primeiro disco, como rodou o país com Canhoto pelo
Projeto Pixinguinha. Paulinho dizia que era comum Chico Soares roubar o show, sendo muito
mais aplaudido do que ele. Paulinho também gravou em seu primeiro disco de 1971 o
belíssimo choro "Abraçando Chico Soares", que fez no estilo de composição do
amigo. Veja o que Paulinho diz sobre ele:
"Eu não queria participar daquelas rodas (de
choro) como músico. Quando vi o Canhoto tocar fiquei tão entusiasmado que me toquei. Era
tão sublime, tão tecnicamente perfeito. Acho que o Canhoto me influenciou a tocar, mais
do que meu pai e Jacob (do Bandolim)."
Quer mais? Então veja este trecho de entrevista de
um dos mais perfeccionistas músicos brasileiros, Jacob do Bandolim. Ele está mostrando
uma gravação e falando de 1959, quando recebeu a excursão de músicos nordestinos em
sua casa. Veja que ele se refere a Canhoto por seu apelido de "Sacristão", que
ganhou quando criança como assistente do padre de sua cidade. Fala aí, Jacob: "...
O problema aqui nesta gravação do Chico Soares reside apenas em que vocês pra
executarem estas músicas gravadas, vocês vão virar canhotos de uma hora para outra. E
só assim, porque o homem tem o diabo no corpo. ... Nós vivíamos a correr de um lado
para outro, a tocar para uns, para outros, e todos queriam conhecer o Sacristão, que
aliás era o vedete do grupo. E observe bem que você não vai encontrar qualquer erro da
parte dele. Quero afirmar a você, sob palavra, que durante os 15 dias que esse homem
permaneceu aqui, em nossa casa em Jacarépaguá, este homem repetiu estas músicas várias
vezes, dezenas e dezenas de vezes, em vários lugares, nas condições mais absurdas,
sentado confortavelmente ou não, num ambiente agradável ou não ... , nas condições
mais absurdas. De manhã cedo, às 6h da manhã, ele às vezes me acordava tocando
violão. Adormecia tocando violão. Dentro de uma simplicidade tremenda sem errar nem uma
nota! Eu nunca vi Sacristão errar uma nota! ... o homem tocava mesmo, não era
brincadeira. Os outros tinham suas falhas, suas emoções, suas emotividades, mas o Chico
Soares, não. Tocava rindo na minha cara, com um sorriso muito ingênuo de quem não
estava fazendo nada de mais. Um artista enterrado lá em Recife ... é digno de toda nossa
admiração, de todo nosso respeito, porque ele encarna nesta figura, uma porção de
brasileiros que vivem enterrados por estes rincões afora, verdadeiros valores
completamente no ostracismo ..."
Para conhecer mais sobre o Canhoto da Paraíba e este disco, recomendo a
leitura desta excelente
reportagem do Jornal do Comércio de Recife que nos foi enviada pela nossa leitora Ana
Paula Portella. Tirei dela boa parte das informações para escrever esta notícia. Leia
também na página do SESC de São Paulo, um ótimo artigo sobre ele por Arley Pereira e
um trecho de sua entrevista para a série de discos "Música Brasileira deste Século
vol. 4". Além deste disco "extra" do Sesc, o violonista Mauricio Carrilho
tem uma gravação de Canhoto e promete um dia lançá-la como um CD pela sua gravadora
Acari Records. Para relembrar: em breve dou mais notícias de como encontrar este primeiro
disco.
E viva Canhoto da Paraíba! (© Agenda do Samba Choro)
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