Por Carlos Alberto Dória
Autoridades sanitárias sentenciam o produto à morte, ao proibirem o uso de leite
cru na sua fabricação
Uma grande falácia da modernidade se esconde sob a discussão da qualidade dos
alimentos que ingerimos, a exemplo do que se verificou entre nós, em fins do ano
passado, com a condenação quase unânime da adição de soda cáustica ao leite dito
“longa vida”; ou a exemplo da intolerância histórica das autoridades sanitárias
com o “queijo minas” feito com leite cru -como os mineiros crêem que deva ser e
fazem há séculos-, agora ameaçado de morte por uma possível proibição total do
uso de leite cru em produtos lácteos.
Não é possível imaginar a França sem o seu camembert de leite cru. Ele se tornou
um ponto de honra do orgulho nacional contra o abuso das negociações do Gatt, em
1993, que queriam abolir a comercialização mundial de queijos de leite cru. Os
franceses se puseram em pé de guerra e venceram.
“Criei meus filhos com queijo de leite cru, e estão todos fortes, graças a Deus.
O que esses caras de Brasília entendem de saúde?” Afora essa indignação do velho
produtor, não nos parece grave ficar sem o queijo do Serro, o queijo da Canastra
ou o queijo de Araxá -todos “queijos minas” de leite cru, produzidos em várias
microrregiões do Estado de Minas Gerais. Se fosse grave, estaríamos em pé de
guerra como os franceses. Matar um produto tradicional, apreciado, equivale a
liquidar parte do nosso prazer ao comer e nos empobrece culturalmente.
Mas governo não é coisa uniforme; não raro, é desorientador. Enquanto, com uma
mão, tomba o queijo do Serro e o declara “patrimônio nacional”, com a outra nega
aos produtores o registro do serviço de inspeção sanitária (SIF) para o produto
circular nacionalmente.
Ao se cozer o leite, elimina-se microorganismos únicos e se perde a
especificidade do produto. Para escapar a essa morte, o “queijo minas” de leite
cru sai de Minas Gerais para uma longa viagem ilegal, clandestina, cheia de
peripécias que envolvem a polícia, o fisco e o mercado informal das grandes
cidades. Como pensar e fruir o “patrimônio nacional”, se ele está condenado à
clandestinidade?
A ”incorporação” como temor
Qualidade é um conjunto de características quaisquer, mas, no caso de
alimentação, sempre associada a algum juízo sobre a “incorporação”: como aquilo
que comemos fará parte do nosso corpo?
A “incorporação” é o contato mais íntimo com as coisas do mundo: penetração,
fusão, confusão de substâncias entre o absorvente e o absorvido e, claro, a
possibilidade de contaminação ou purificação. Assim, magicamente,
características psíquicas, morais ou simbólicas da comida passam ao comedor
através da incorporação.
Para me manter puro, preciso comer o puro; para me manter são, preciso comer o
são; para me tornar homem, preciso absorver os nutrientes viris; para crescer,
preciso comer as plantas que possuem vida; para ser corajoso, evitar a carne dos
animais covardes, e assim por diante. A incorporação é um eixo tanto da medicina
quanto da religião e da magia e, claro, do pensamento utópico alimentar1.
Graças à dimensão moral da incorporação, um enorme mecanismo de vigilância -que
inclui dietas e a supervisão dos poderes públicos- se monta em torno do comer
para assegurar a sua eficácia “nutricional”.
Mamíferos, tudo o que se refira ao leite nos toca muito de perto, quando o
assunto é incorporação. Mas o leite “longa vida”, convertido em horripilante por
conter soda cáustica, é o contrário do que o nome sugere. A capacidade de durar
significa interromper o seu processo natural de transformação. A “longa vida” é
a vida eterna do leite após a sua morte, como toda idéia de vida eterna.
A soda cáustica é um hidróxido (NaOH) usado na indústria como uma base química,
seja para a fabricar papel, tecidos, detergentes, biodiesel ou alimentos, como o
prosaico pão alemão -o pretzel–, seco, estaladiço, bastante cozido e salgado.
Ora, por que nós amamos o bicarbonato de sódio (NaHCO3) e parecemos odiar a soda
cáustica acrescida ao leite? Só porque esta serve para desentupir encanamentos,
e nos vemos, metaforicamente, como um sistema de encanamentos delicados que nos
parece melhor protegido pelo bicarbonato, especialmente quando exageramos na
feijoada? Por que lembramos, com nostalgia, dos biscoitos de amoníaco que nossas
avós faziam, apesar de se tratar de algo altamente tóxico em concentrações
elevadas? O que dizer da cal virgem, utilizada na fabricação do doce “duro” de
abóbora?
Incorporar a química não é idéia que desperte simpatias. A naturalidade “pura”
parece-nos infinitamente mais segura. Mas, então, por que a implicância com o
leite cru? Talvez a marca distintiva da psicologia da incorporação seja o temor
permanente do mundo externo.
O alimento construído
Atribui-se a Savarin a máxima “dize-me o que comes e dir-te-ei quem és”, embora
desde cinco mil anos antes de Cristo o homem produza a esmagadora maioria
daquilo que come, de sorte que produz a si mesmo, deixando distante a natureza
“livre”.
Por este aspecto construído do comer é que, já sob o Antigo Regime europeu,
quando o Estado se colocava ao lado da qualidade dos alimentos, era para
defender as corporações contra o livre mercado. Mais tarde, no século XIX, sob o
liberalismo, a proteção imperfeita da indústria parecia favorecer a fraude e a
falsificação.
Ora, quando a agricultura se transformou num ramo da indústria, o debate sobre a
pureza do leite e dos demais alimentos veio para o primeiro plano. Por exemplo,
o comércio do leite desnatado para se fazer manteiga foi considerado fraude,
pois mães proletárias desejavam um substituto do próprio leite para os seus
filhos, quando a jornada de trabalho fabril substituiu o cuidado da prole.
Assim, a qualidade do leite tornou-se sinônimo de “saúde da nação”, isto é, uma
espécie de tema da “segurança nacional”. O leite desnatado, herói de nove entre
dez dietas modernas, era inimaginável.
Por uma noção histórica de fraude alimentar
Mas o que é exatamente uma fraude? O dicionário nos diz: “Qualquer ato ardiloso,
enganoso, de má-fé, com o intuito de lesar ou ludibriar outrem, ou de não
cumprir determinado dever”. Já falsificar é “dar aparência enganadora com o fim
de fraudar, de fazer passar por verdadeiro o que não é”. Ou seja, fraude e
falsificação são ardis, enganos intencionais. Mas não é este o propósito da
química dos alimentos.
Após a Revolução Francesa a legislação sobre fraude e falsificação alimentar
curvou-se à idéia de liberdade contratual, podendo ser comercializado tudo o que
fosse bom e agradável que não fosse nocivo à saúde e, no plano econômico, não
representasse um delito contra a propriedade ou um “abuso de confiança”. Nesse
plano, a “fé pública” sempre foi o atestado da qualidade alimentar.
Ora, as pessoas que inventaram a margarina, por volta de 1870, na França, não
tinham a idéia de fazer uma falsa manteiga. Era apenas uma aplicação alimentar
do entendimento dos ácidos graxos, dos princípios da saponificação descobertos
por Eugène Chevreul, por volta de 1820. Tratava-se de um processo químico para
facilitar a incorporação de gordura animal, mas essas pessoas foram acusadas de
falsárias pelos produtores de manteiga, que, por sua vez, contaram com o apoio
do Estado para combater o novo invento.
Com o tempo, a margarina se fundiu à manteiga, gerando a “beurrine”. Nem assim
os produtores de manteiga se deram por satisfeitos. Mas as autoridades
reconheciam, por volta de 1905, que “no estado das ciências” era impossível
identificar a margarina misturada à manteiga em proporções inferiores a 10%. Era
preciso conviver com um certo grau de “fraude”.
No médio prazo, a margarina triunfou. Provocou a queda do preço da “verdadeira”
manteiga e, com a sua aceitação como produto comestível regular, como
alimentação proletária, o que passou a ser controlada foi a quantidade de
potássio empregado para saponificar a matéria gordurosa. O Estado se tornava ele
mesmo um químico... E a antiga “fraude” conquistava a cidadania alimentar,
barateando os alimentos das grandes massas.
Coisas como essas aconteceram em larga escala no século XIX, à medida que as
ciências avançavam e penetravam o universo da produção alimentar2. Assim, além
do controle de “pesos e medidas”, será a “inovação” que ocupará o centro dos
conflitos em torno da qualidade alimentar, da fraude e da falsificação.
O leite, a carne, o queijo, o vinho, todos foram objeto dessas “fraudes”
modernizadoras. Mas as leis posteriores à metade do século serão sempre
mecanismos de regulação da competição, motivadas por produtos químicos
adicionados à alimentação com o objetivo de melhorar o seu desempenho no
mercado.
A própria idéia de “produto alimentar de qualidade” vai se afastando da noção
limitada de “natural” e acaba se ajustando a essa nova realidade, onde qualquer
coisa comercializada que deixe explícito o que é adicionado, subtraído ou
substituído antes de ir ao mercado parece apta a ser incorporada.
Com o tempo, o próprio discurso alimentar se modificou. Em vez do elogio do
artesão, o marketing incorporou imagens de laboratórios, homens vestindo
guarda-pós e máscaras manipulando o alimento. A imagem da “segurança” passou a
ser tributária do modo de produção industrial.
No outro pólo, a produção artesanal aparecerá como algo “sujo” e contaminante,
ou até mesmo bárbaro, quando como sabemos, por exemplo, que os índios e
amazonenses cospem na mão com que manipulam a mandioca ralada para fazê-la
fermentar e elaborar as suas apreciadas farinhas; ou que o antigo coalho do
leite para queijos tipo “minas” era extraído do estômago de tatu.
A estratégia da moderação
Se a incorporação encerra perigos, a vigilância e seleção, a dieta, são tão
orientadoras quanto a de qualidade do produto. Os “health reformers”, pietistas
alimentares norte-americanos, propunham no século XIX, sob a liderança de
Sylvester Graham, o banimento do álcool, do chá, do café, da carne e das
especiarias: todos tidos como excitantes que favorecem as paixões sensuais, o
apetite e perturbam a ordem social e a vida sã. Assim, a sociedade pode ser
vista como uma imensa incorporadora que se faz moralmente pela boca.
Na mesma linha, o pai da “ciência da nutrição”, John Harvey Kellogs, entendeu
que o que se come deve servir à saúde, à moral e às finanças, e uma das suas
metas foi a construção da dieta operária, ainda que à custa do massacre das
diferenças culturais no seio das massas proletárias. Atribui-se a ele a
esclarecedora máxima: “O declínio de uma sociedade começa pela gourmandise”.
A alimentação, como a sexualidade, está imersa em discursos moralizantes. O
principal deles é o da moderação, como o da “dieta preventiva” norte-americana
que bane quase a totalidade das gorduras animais.
Mais recentemente, pesquisas mostraram como as “gorduras trans” -pelas quais se
optou, ao promover a margarina em substituição à manteiga- são mais nocivas à
saúde do que a manteiga, bem como o fato de que o baixo colesterol está
associado a uma maior ocorrência de certos tipos de câncer.
Assim, não há dúvida de que as utopias modernas, como a dieta preventiva ou a
dieta mediterrânea surgida nos anos 1950, ocuparam o coração da medicina, tendo
por ideal a longevidade e recorrendo à regulação alimentar como seu método,
segundo um modelo atualizado dos pietistas norte-americanos do passado.
A seleção artificial e a química
Um simples tomate, um frango, o boi, tal qual existem hoje, são construções,
produtos da engenharia humana; não são produtos naturais no sentido de coisas
desenvolvidas pela natureza sob ação da seleção natural. Já Darwin nos mostrou
isso com clareza, ao estudar a seleção artificial que prossegue, em linha reta,
até a engenharia genética moderna, cuja meta é acentuar os caracteres úteis das
coisas vivas e, acima de tudo, a sua produtividade.
Essa diretriz industrial impregna nossas vidas. Os produtos que consumimos
parecem tão normais ou “naturais” que sequer nos perguntamos, por exemplo, o que
seja a “canola”. Imaginamos uma planta bucólica, estampada no rótulo de um óleo
de fritura com baixo teor de “trans”.
Choca-nos saber que, na verdade, se trata de uma mera sigla -CANadian Oil Low
Acid- de modo que dizer “óleo de canola” é mera cacofonia. A planta da qual ele
se origina é a colza, usual na geração de um óleo industrial que foi
responsável, no passado, por verdadeira tragédia alimentar na Espanha. Claro, na
variedade agora produzida parece inocente, mesmo considerando que boa porção da
colza tem origem na transgenia.
Só quando os mecanismos industriais falham, inclusive no seu marketing, aparece
o aspecto artificial, “ameaçador”, dessa estrutura produtiva que nos separa da
velha natureza. Os episódios da “vaca louca” e da gripe aviária mostraram a
fragilidade dessa forma de encapsulamento industrial dos alimentos, aprofundando
o desejo de uma vida “mais natural” como forma de restaurar a confiança perdida.
No processo sem volta, slow food, produtos de “terroir”, “orgânicos” e uma
infinidade de outras denominações buscam aproveitar comercialmente a
oportunidade criada pela própria crise de confiança na indústria alimentar.
São estratégias que se aninham especialmente no consumo das classes de altas
rendas. E é claro que criam, também, uma senda para irracionalidades, como a
condenação geral da química alimentar expressa, por exemplo, na denominação “sem
conservantes”, estampada em rótulos. Por que deveríamos preferir as bactérias
patogênicas aos conservantes?
Ora, se perdemos a confiança na indústria alimentar, isso não quer dizer que
recuperamos a capacidade de reconstruir o alimento “sadio”. Apenas transferimos
a fé pública para selos, rótulos, marcas, etiquetas informativas e outras
declarações de agentes públicos sobre a qualidade do produto. Mas, afinal, não
foram esses mesmos agentes públicos que falharam tantas vezes, como no episódio
da “vaca louca”? Por que agora mereceriam crédito irrestrito? Seriam as ONGs
certificadoras merecedoras da confiança que o Estado perdeu?
Conservantes fazem parte da defesa do organismo humano. Assim como a vacinação
das vacas contra brucelose, tuberculose bovina e outras doenças animais. Os
produtos “in natura” –independentemente de serem frutos da engenharia ou de uma
“naturalidade” remota e bucólica- só podem existir quando o mercado consumidor
está próximo do produtor; quando as distâncias aumentam, os conservantes são a
melhor defesa humana. Sem eles, a urbanização jamais teria alcançado a escala
atual.
O leite cru e o queijo minas
Assim, o nosso leite “in natura” está longe de ser algo que saiu direto da teta
da vaca para o copo. Esta é uma memória mitológica do passado rural, bem
explorada pela publicidade que eterniza as condições de vida suprimidas pela
história. O que precisamos decidir é o que chamaremos de “leite” de hoje em
diante, considerando que ele também não pode dispensar a química.
Os europeus e norte-americanos reúnem uma enorme gama de produtos sob a
denominação “leite”. Inclusive o leite cru, que os norte-americanos tentaram
banir do mundo, rejeitando um indesejável contacto com o “natural”. Mecanismos
ardilosos, sofisticados, precisam ser montados nos EUA por aqueles que querem
preservar a incorporação do leite cru: são constituídos clubes de consumidores,
e as vacas são “alugadas” para os afiliados. Cada um toma o “seu” leite por sua
própria conta e risco. O Estado e a indústria se eximem de responsabilidades.
O Brasil precisa construir os seus conceitos de qualidade do alimento a ser
“incorporado”, ao definir as características desejadas dos produtos, não só do
ponto de vista sanitário, mas também organoléptico. O nosso leite não é uma
obra-prima de sabor, e sabemos que a saúde e o prazer de comer são duas faces da
mesma moeda; portanto, é preciso que a química dos alimentos cuide de
materializar esses valores naquilo que levamos à boca e que achamos que deva ter
a “nossa cara”.
Não definimos, ainda, se o prosaico “queijo minas” Canastra, Serro ou Araxá é
produto cuja incorporação favorece nossa identidade. Mas já admitimos que ele se
esconda, com seu leite cru, sob o amido do pão de queijo. Enquanto isso, na
forma “pura”, segue consumido largamente pelas classes populares,
clandestinamente, como se fosse um filho bastardo que escondemos no porão da
casa. Só porque é feito de leite cru, sem soda cáustica.
Talvez devêssemos nos perguntar, à maneira dos franceses zelosos do século XIX
que combatiam as fraudes e falsificações: quem se beneficia dessa quebra de
confiança no produto? E, brasileiramente, lamentar que o Estado faça o jogo de
interesses obscuros.
1 - Claude Fischler, "Pensée Magique et Utopie dans la Science - De
l´Incorporation à la ‘Diète Mediterranéene", in "Pensée Magique et Alimentation
Aujourd´hui", "Les Cahiers de l´OCHA", nº 5, Paris, 1996.
2 - Estamos acompanhando aqui a excelente análise histórica de Alessandro
Stanziani, "Histoire de la Qualité Alimentaire - XIXe – XXe Siécle", Paris,
Seuil, 2005.
Carlos Alberto Dória
É sociólogo, doutor em sociologia no IFCH-Unicamp e autor de "Ensaios
Enveredados", "Bordado da Fama" e "Os Federais da Cultura", entre outros livros.
Acaba de publicar "Estrelas no Céu da Boca - Escritos Sobre Culinária e
Gastronomia" (ed. Senac).
(©
Trópico)
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