Selo de qualidade, lançamentos ‘premium’ e novas propostas de
consumo tentam mudar imagem do destilado
DÉBORA MISMETTI
DA REPORTAGEM LOCAL
A "marvada" pinga quer mudar sua imagem. Uma parceria entre Inmetro
e Sebrae procura incentivar os produtores de cachaça a aderirem a um
programa de certificação, que promete dar garantias de qualidade aos
consumidores da bebida.
Para ter o selo do Inmetro, o fabricante se submete a uma vistoria que
considera a higiene na produção, o controle do plantio da cana quanto ao uso
de fertilizantes e o cuidado com o ambiente. O produtor deve preservar rios
e mananciais próximos à plantação, fazer o descarte correto dos resíduos e
respeitar as leis trabalhistas.
As primeiras marcas a passarem pelo pente-fino foram aprovadas para
receber o selo no fim de 2006. Os dois primeiros registros foram dados para
Prosa&Viola e Terra de Minas, ambas de um mesmo produtor. A gerente da
Prosa&Viola diz acreditar que o selo vai ajudar a elevar a qualidade da
bebida. "A cachaça não é tão simples como se pensa, existem tecnologias e
controles químicos para assegurar que o produto não contenha substâncias
nocivas à saúde", diz Daniela Vilaça, 25.
Até hoje, só 26 marcas brasileiras têm o selo, segundo o Sebrae, que
começou a incentivar a certificação bancando 50% do custo para o produtor.
Em Minas Gerais, que concentra cerca de mil marcas de cachaça, só 12 foram
atrás do selo. "A cachaça tem saído da posição de bebida marginalizada faz
só dez anos. O consumidor ainda não entende que precisa pagar mais pela
qualidade", diz Rogério Gallupo, da gerência de agronegócios do Sebrae-MG.
Mesmo custando mais caro que as pingas industriais, produzidas com
destilação de coluna, as bebidas artesanais de alambique estão nos planos
até das marcas mais populares. A Sagatiba está lançando um kit da Sagatiba
Velha, sua linha de alambique, com dois copinhos tradicionais para cachaça,
por R$ 25. "O mercado da cachaça artesanal é mais limitado, mas estamos
fazendo ações para promover novas formas de consumo", diz Flávio Stadnik,
34, diretor de marketing da Sagatiba. Uma dessas formas é um "shot" com
morango e açúcar de pimenta, sugerido pela marca, à maneira da tequila com
limão e sal, tão popular.
Para degustar com mais cerimônia, a marca tem o rótulo Preciosa (R$ 500),
envelhecido por 23 anos em barris de carvalho. Apesar de não ter o selo do
Inmetro, a Sagatiba tem um certificado internacional do BTI (Beverage
Testing Institute) de Chicago.
Já que são "premium", as cachaças ganharam taças criadas especialmente
para sua degustação. Assim como as taças de vinho para "sommeliers", a
transparência e as curvas do bojo permitem a fruição dos aromas e a
observação da cor da bebida, que varia de acordo com o tipo de madeira usada
no envelhecimento. As taças, de cristal, são produzidas pela Cristais Hering
(R$ 17,80 na Preçolândia) e pela Strauss (R$ 24,67 na Presentes Mickey). "No
Brasil colonial, a cachaça era bebida em copos de cristal, mas ela teve a
sua imagem prejudicada pelos portugueses, que queriam valorizar seus
produtos na colônia", diz o especialista Renato Frascino, 59, que se
apresenta como analista sensorial de bebidas e consultor enogastronômico.
Frascino diz que as aulas de degustação de cachaças vêm abrindo espaço na
preferência de seus alunos, num mercado dominado pelos vinhos.
Para o consultor, bons destilados devem ser tomados ao lado de água
mineral e aperitivos. "Sopa, chocolate e charuto acompanham bem a cachaça".
(©
Folha de S. Paulo)
Opinião
ABRIDEIRA
Chef propõe viagem etílico-cultural pelas
glórias 'daquela-que-matou-o-guarda'
"Aí, sim! Agora vem a pontinha da
pirâmide social tupiniquim tomar cachaça. Acham exótico! E dizem que é boa
'quiném' uísque"
RODRIGO OLIVEIRA*
ESPECIAL PARA A FOLHA
Famosa e influente desde os primeiros séculos da colonização, a cachaça,
hoje, tem seu lugar ao sol. Mas não desfruta do mesmo status de seus pares
estrangeiros. Vodca na Rússia é assunto sério; uísque, na Escócia, orgulho
nacional, e os "brandies" da França são, para eles, os melhores destilados
do mundo. É assim que tem que ser. São o fruto da sua terra, são as bebidas
que seus heróis tomaram.
Aqui na terrinha, quando a tal
Independência chegou e a burguesia emergente foi buscar referências na
Europa, a caninha, que era o espírito da brasilidade, tornou-se bebida de
segunda, coisa de escravos.
Mas, sem guardar ressentimentos, a
água-que-passarinho-não-bebe voltou à mesa da elite. No primeiro momento, à
da elite intelectual. Artistas iniciaram, com a Semana de Arte Moderna, em
1922, um movimento pelo resgate da cultura brasileira em todos os seus
aspectos. O samba desceu o morro e a caiana saiu do armário. Nossa tão
querida engasga-gato, com sua embaixadora, a caipirinha, foi devagarzinho
ganhando o mundo, junto da feijoada e do Carnaval.
Aí, sim! Agora vem a pontinha mais alta da
pirâmide social tupiniquim tomar cachaça. Acham exótico! E dizem que é boa
"quiném" uísque! Ouvir isso de um irlandês, vá lá.
Nenhuma outra bebida no mundo desfruta dessa diversidade de madeiras para
envelhecimento. Se eles têm barris de carvalho, temos de bálsamo, umburana,
jequitibá, garapeira, sassafrás, ipê... Nenhum outro lugar do mundo tem sua
aguardente sendo produzida em regiões e condições tão diversas quanto a do
Brasil.
Quer visitar o Piemonte, passear por
Bourdeaux, legal.
Se puder, no caminho, passe em Parati (RJ),
berço da cachaça de qualidade. Dê um pulinho até Januária (MG), pra ver como
se faz a "marvada" às margens do rio São Francisco.
Já que está ali, suba um pouquinho mais e
veja pinga orgânica sendo feita em Rio de Contas (BA), na Chapada
Diamantina. Aproveite também e veja a maior coleção de cachaça em Lagoa do
Carro (PE).
Chegue na sertaneja Guarabira (PB), e prove
água-benta pra cabra-macho. Mais adiante, em Maranguape (CE), está o maior
tonel do mundo: 374 mil litros da purinha!
No Sul, tome "uma" em Morretes (PR),
comendo barreado. Seguindo viagem, passe em Luís Alves (SC). A pinga lá tem
nomes difíceis, de famílias que vieram de longe e fazem cachaça há três
gerações.
Quando o chão for se acabando, pare em
Osório (RS) e veja que não são só os vinhos que fazem esse povo ficar com as
bochechas rosadas.
Mais um convite: percorra páginas da
história etílica. Visite Câmara Cascudo em "Prelúdio da Cachaça". Dê uma
chegadinha em "Os Eufemismos da Cachaça", de Mário de Andrade, troque idéia
com Gilberto Freyre sobre as influências da cultura da cana. Na volta, ouça
Marcelo Câmara falar de sua paixão, ou de sua cachaça, como diria Drummond.
Tem mais gente falando disso. Falando bem,
claro. Nos últimos anos, mais de uma dezena de bons títulos se propõem a
ensinar o bê-a-bá daquela-que-matou-o-guarda.
Só não diga que tomou cachaça de banana ou cachaça da Noruega. Cachaça, só
de cana-de-açúcar, e feita no Brasil. Nem que pinga boa é a de "cabeça":
pinga boa vem do "coração" da destilação. Jamais diga que a nossa aguardente
é conhecida por pinga porque pingava nas costas açoitadas dos pobres
escravos. É pinga porque pinga mansinho na ponta do alambique. É aguardente,
"acqua ardens", desde que Plínio, o Velho destilou resina de cedro numa
chaleira há mais de dois mil anos, e não porque fazia arder as marcas da
chibata. E em hipótese alguma diga de uma cachaça superior que "é boa
"quiném" uísque!".
E como diz o verso popular: "A cachaça
geribita/ A neta de cepa torta/Faz uns perder o tino/E outros errar a
porta".
Beba com moderação. Mas se não tiver, beba
com limão e mel, que cura a gripe.
RODRIGO OLIVEIRA, 28, é chef do
restaurante e cachaçaria Mocotó
(©
Folha de S. Paulo)
Veja o texto
Açúcar Mascavo,
Melado e
Rapadura
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